– “… Voltando a Milei, ficou provado que zurrar é um trunfo político.”
🐎 Zurrar! Palavra adequada ao blá, blá, blá dos políticos! E quanto mais zurram, mais alienados ficam os que os ouvem zurrar.
🇵🇹 OPINIÃO
A dias de somar mais um número à minha velhice, queria lembrar, como António Guterres o fez em relação ao Hamas, que o meu nascimento não aconteceu num vácuo. Aliás, tudo tem um contexto.
No meu caso, o presépio ocorreu numa casinha pobre, de uma rua modesta de Évora, na altura uma urbe parada dentro das suas muralhas e perdida nas quintas à volta, no meio de um Alentejo que se sustentava a pão com azeitonas e pouco mais.
A paisagem social de Évora era mais ou menos uma reprodução da que existia na região: composta por umas dúzias de famílias ricas, que viviam num arquipélago de ilhas abastadas e inacessíveis, rodeadas por um mar de gente que procurava sobreviver, muitas vezes com ajuda dos suplementos alimentares doados pelos EUA, e que eram controlados pelos padres de cada paróquia. Esta gente, em que a minha família alargada se inseria, olhava para a política como coisa de ricos e de doutores.
Ou de um ou outro excêntrico – as arcadas da cidade produziam um certo número de fulanos esdrúxulos, que passavam o dia num vaivém debaixo dos arcos, uns com manuscritos debaixo dos braços que, diziam-nos, se fossem publicados, lhes garantiriam um Nobel da literatura, outros, a murmurar umas coisas contra a ditadura que imperava na época.
Cresci e fiz-me adulto nesse ambiente de exclusão social.
Passadas mais de quatro décadas a andar pelo mundo, voltei ao país e noto que a minha análise da política actual coincide, em muitos pontos, com a que já então fazia naqueles dias. Tempos que deveriam pertencer a uma era longínqua, mas que continuam, afinal, bem presentes no nosso quotidiano.
O poder político ainda reside em ilhas alcantiladas, que exigem um livre-trânsito só acessível aos fiéis do chefe e na base das relações de casta, no nome de família, na subserviência ou ainda na devoção ideológica incondicional.
A política subsiste como uma actividade à parte, coisa de gente fina e, tantas vezes, incompetente e supremamente arrogante, mas com poder. Agora uma fotocópia a cores do passado a preto e branco.
As únicas dimensões que mudaram são facilmente identificáveis. Por exemplo, é de bom tom enveredar-se por um alinhamento partidário radical, quando se descende da burguesia urbana de raízes provinciais ou dos altos funcionários do antigamente.
Outro exemplo: outrora, tocava-se na política, com um entusiasmo moderado ou para não parecer mal, por se pertencer às classes sociais com posses; agora, envereda-se pela política para se obter posses e mais posses. E ainda um terceiro exemplo: hoje, a manipulação das opiniões é mais subtil, graças às televisões e às plataformas digitais.
Alimenta-se, assim, a ilusão de que há espaço para os diversos pontos de vista e que a democracia é coisa de todos, não apenas propriedade dos caciques dos partidos e dos afilhados das cadeias televisivas.
E o pão e as azeitonas foram substituídos pela comida de aviário.
Lembrei-me de tudo isto por 2024 ser um ano de eleições. E não apenas em Portugal, claro. Cerca de metade da população do universo será chamada às urnas no ano que vem. Muito do que aqui escrevo fará pensar no nosso caso. Mas não se trata de Portugal apenas.
Acontece na Holanda, com eleições esta semana e a ultra-direita a duplicar o seu peso, na Alemanha, Bélgica ou em França, e assim sucessivamente. Mas talvez ocorra de modo mais marcado em países com menos oportunidades económicas fora do sector público, como vemos cá por casa.
Os compadrios de outrora jogam-se hoje com outras tácticas e em diferentes tabuleiros, mas com os mesmos resultados. A renovação das elites políticas é uma ilusão que se vende nos ecrãs e nos comícios de parolos.
E a eleição do novo presidente da Argentina, Javier Milei, trouxe-me à memória as figurinhas insólitas que na minha juventude vagueavam pelos lugares públicos de Évora.
A única diferença é que naquele tempo as palhaçadas não iam muito além do centro da urbe, da Praça do Geraldo, enquanto agora as televisões apostam na amplificação das tontarias. Levaram Milei ao colo até à Casa Rosada.
E isso não pode deixar de nos preocupar. Como já nos havia preocupado no caso de Donald Trump – e a farsa deste néscio está de novo em marcha.
Voltando a Milei, ficou provado que zurrar é um trunfo político. Temos aí um triste exemplo do impacto nefasto que os maus editores-gerais das redes de televisão podem ter: levar um louco, um brutamontes ou um desmiolado à chefia de um país.
Hoje, aconteceu na Argentina, amanhã poderá ser nos EUA, ali ou acolá, ou em Portugal.
A rádio, uma novidade na altura, permitiu a chegada de Adolfo Hitler ao poder e a propagação das suas ideias criminosas. Agora, o digital, a inteligência artificial e a televisão abrem a via a uma outra geração de alienados igualmente perigosos. Vamos ficar tranquilos e deixar que isso aconteça?
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU
DN
Victor Ângelo
24 Novembro 2023 — 00:26