286: Ministério Público: como chegámos aqui?

 

🇵🇹 OPINIÃO

Peço emprestado o título de Maria José Fernandes, em crónica no jornal Público, para que fique registada desde já a minha solidariedade com a procuradora-geral Adjunta.

As críticas que ela fez naquele texto são bem duras e dão que pensar, mas basta atender ao que sobre ela foi dito e escrito, por alguns dos jornalistas que alinham com alguns procuradores nos julgamentos em praça pública, para percebermos que ninguém está interessado em fazer autocrítica.

A principal reflexão da procuradora naquele texto prende-se com o respeito pela hierarquia do Ministério Público (MP) e a necessidade de o tornar efectivo, para evitar que as (más) decisões de alguns arrastem todo o MP.

Os problemas levantados por Maria José Fernandes fazem-nos recuar três anos, ao momento em que uma directiva da actual procuradora-geral da República determinou que a hierarquia pode intervir nos processos, “modificando ou revogando decisões anteriores”.

O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público decidiu impugnar a directiva que Lucília Gago queria “seguida e sustentada pelo MP” e, desde aí, que a Justiça está para decidir quem tem razão.

Na altura, o magistrado Rui Cardoso, ex-presidente do sindicato, considerou que se vivia “o dia mais negro da história democrática do Ministério Público português” que “morreu como magistratura”. Não caiu o Carmo e a Trindade.

Considerações assim tão definitivas, em defesa da corporação, têm sempre como pano de fundo a autonomia do MP, como se essa autonomia se aplicasse em exclusivo à base da pirâmide. A hierarquia teria de assumir toda a responsabilidade, sem poder intervir no processo, como se, afinal, não fosse importante a autonomia do MP, de todo o MP.

De igual maneira, quando Rui Rio propôs que no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) os magistrados do MP perdessem a maioria da sua composição também era a Democracia que estava a ser atacada, a autonomia a ser desfeita, os políticos a quererem controlar o MP.

O CSMP é “o órgão superior de gestão e disciplina por intermédio do qual se exerce a competência disciplinar e de gestão de quadros do Ministério Público”, mas poucos estranham que sejam os próprios a apreciar o mérito profissional dos magistrados. Depois desta “afronta”, aconteceram as buscas a casa de Rui Rio e à sede do PSD, por causa de uma prática comum a todos os partidos?

É só um exemplo da discricionariedade com que podem actuar alguns magistrados do MP. Tudo isto acontece com as televisões avisadas para poderem filmar. Como se isto não chegasse, leia-se o exemplo que trouxe Maria Lurdes Rodrigues.

A reitora do ISCTE dizia este fim de semana, na TSF, que “não é aceitável que a Justiça tenha 70% dos processos inconclusivos”. Alguém pode dizer o contrário? E o que é que acontece aos magistrados que, por incompetência ou outra coisa qualquer, conseguem falhar de forma tão persistente? Nada! Quando tudo acontece em nome da sacrossanta autonomia, tudo é tolerado.

Azar mesmo é querer pôr o dedo na ferida, separar o trigo do joio, criticar o caminho seguido por alguns magistrados, lembrando que outros fazem um trabalho altamente meritório. Para quem ousa revelar a sua independência, sem medo de assumir a responsabilidade pelo que diz, há um processo disciplinar que pode levar à sua demissão. Foi assim que chegámos aqui.

Não vem mal ao mundo que se avalie se Maria José Fernandes cometeu alguma infracção disciplinar, a mim parece-me apenas o exercício da liberdade de expressão. O que falta mesmo é que se avalie tudo o resto.

Jornalista

DN
Paulo Baldaia
27 Novembro 2023 — 07:00


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 3 dias ago

Loading

40: Quando se mata porque alguém matou, importa saber quem começou?

 

🇵🇹 OPINIÃO

A conversa de Marcelo Rebelo de Sousa com o representante da Autoridade Palestiniana em Portugal comporta todo o cinismo com que se faz a discussão sobre culpas na guerra que, agora, domina as atenções do mundo.

O Presidente não disse apenas a metade do que queria dizer, acrescentando pouco depois o que já sabia que tinha de ser dito. Marcelo disse o que pensava, não desvalorizando o sofrimento dos palestinianos, mas imputando-lhes uma culpa.

O “alguns”, com que quis corrigir o todos que estava no “vocês” da frase inicial, é um pronome demasiado indefinido para atribuir uma responsabilidade a quem tem nome próprio. Até porque o “vocês” a quem o Presidente se dirigia é a primeira vítima desse tal Hamas.

Há quem veja mais do que cumplicidade nos que nunca condenaram, ou o fizeram de forma pífia, a acção terrorista do Hamas e quem seja ainda mais exigente com os palestinianos, porque o terror foi semeado em nome deles. Lembram-se do vácuo referido por António Guterres?

O contexto para que nos convocava deveria servir para condenar todas as atrocidades e não para desculpar as que aparecem como resposta à atrocidade anterior. A morte de inocentes só pode ter como resposta legítima o castigo dos culpados.

É preciso nunca esquecer que a barbárie do Hamas, matando indiscriminadamente, olhos nos olhos, com indisfarçável maldade e supremo prazer, justifica a resposta do exército israelita mas não desculpa a matança despreocupada de inocentes com bombas lançadas de avião.

Há, ainda por cima, na conversa do Presidente da República com o representante da Autoridade Palestiniana em Lisboa, um tom de condescendência, quase arrogância, que fragiliza a posição de Marcelo perante a opinião pública do seu país. Não é segredo que os portugueses, como muitos outros povos pelo mundo fora, perante um conflito, têm normalmente uma empatia forte com a parte mais fraca.

As imagens que chegam diariamente pela televisão mostram um dos exércitos mais poderosos do mundo a massacrar uma população que não tem para onde fugir. E a solidariedade que lhes é devida não esmorece nem um pouco a solidariedade com os reféns que o Hamas mantém em seu poder, nem com os familiares das vítimas de 7 de Outubro.

Enquanto se radicalizam posições no Médio Oriente, cresce em todo o mundo uma cultura de ódio contra uns e outros. O anti-semitismo e a islamofobia fazem caminho numa Europa que se prepara para eleger o seu Parlamento dentro de sete meses.

Em Portugal, mas não só, convém que os políticos com maiores responsabilidades não comecem a dar tiros nos pés, fazendo intervenções não ponderadas, iniciando conversas que não tencionam (ou não sabem como) acabar, usando frases ambíguas, polarizando ainda mais um debate político onde os populistas estão em vantagem. A Marcelo deveria bastar o elogio que recebeu do Chega nesta matéria para saber que errou.

Quando se matam judeus porque eles mataram muçulmanos e se matam muçulmanos porque eles mataram judeus, quando se mata porque alguém matou, importa saber quem começou? Não me parece! A Humanidade leva séculos a ver que atrás da morte vem a morte dos que acham que é matando que se acaba com as mortes.

Jornalista

DN
Paulo Baldaia
06 Novembro 2023 — 07:06


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 3 semanas ago

 

Loading