377: No Casal da Mira todos os dias são 25 de Novembro

 

🇵🇹 OPINIÃO

Casal da Mira, sábado, dia 25 de Novembro, às 20 horas, na avenida principal, a Marechal Costa Gomes, uma noite como muitas outras. A polícia entra no bairro como exército de ocupação. Em poucos minutos, as pessoas são despejadas dos cafés, encostadas à parede para serem revistadas. Velhos e jovens esperam, afirmam, mais de uma hora assim.

Uma mulher de mais de 60 anos, doente oncológica, queixa-se de ter sido repetidamente insultada e ter levado um pontapé, e ameaçada de levar pancada, por uma agente, se abrisse a boca.

No Casal da Mira, com cerca de 2400 habitantes vindos maioritariamente da Azinhaga dos Besouros, como em muitos bairros dos subúrbios da Área Metropolitana, as pessoas são culpadas mesmo que haja provas em contrário.

É mais que uma suposta questão de segurança, a polícia humilha de forma activa, todos os dias, as populações dos bairros pobres, trabalhadores, com muitos filhos de imigrantes, para lhes mostrar de uma forma persistente que não são cidadãos iguais aos outros.

– vídeo não compatível para inserir neste espaço.

A lei é supostamente igual para todos, mas está demasiado distante: aqui na terra há a repressão e a discriminação. Não se trata de segurança, trata-se de criminalização da pobreza.

Que o digam os moradores da antiga Curraleira, quando a polícia executa um mandado de busca para um suspeito, destrói a porta da rua, as caixas de correio, o elevador e os equipamentos sociais de todo o prédio. Actua com uma violência que não seria tolerada na Avenida de Roma, a poucas centenas de metros.

– vídeo não compatível para inserir neste espaço.

Nos territórios da Área Metropolitana de Lisboa denominados de “bairros sociais”, independentemente da localização geográfica, foram sendo construídas, por discursos oficiais e não oficiais, a criminalização e a estigmatização social e territorial.

Os territórios onde vivem os trabalhadores mais pobres são vistos como “zonas urbanas sensíveis”, em que a presença do Estado social é pouca e a da repressão policial é muita.

Há muito que as cidades gravaram pedra e no urbanismo as desigualdades sociais, mas a situação tem vindo a agudizar-se.

É como uma pedra que embate num lago. Vão expandindo-se, na superfície das águas, as ondas de choque em círculos. A gentrificação da capital vai expulsando pessoas para os subúrbios, com impacto nos bairros populares.

Hoje, um T1 já é arrendado por quase mil euros na Damaia e já há reformados franceses que compram casas na Arrentela. Não tarda muito para que os trabalhadores que aí vivem sejam também corridos.

Os bairros mais pobres são estruturalmente conduzidos para uma não participação política. Os trabalhadores não votam porque são expulsos da justa representatividade.

Exemplo disso são os poucos parlamentares pertencentes à classe trabalhadora, e a maioria da população fica com a ideia de que, independentemente de em quem votem, a política do Estado será sempre a mesma e contra ela.

Talvez por isso nos bairros mais ricos, como Estrela e Avenidas Novas, haja 67,53% e 70,48% de votação nas eleições legislativas de 2022, respectivamente, e uma participação muito mais reduzida, como Marvila e Carnide, em que pouco ultrapassa os 50% de eleitores.

Editor-chefe do Diário de Notícias

DN
Nuno Ramos de Almeida
03 Dezembro 2023 — 00:28

– Só se publica este artigo de opinião pelo motivo da sua divulgação pública. Os vídeos desta crónica e outros vídeos inseridos no Diário de Notícias, deveriam ter um link que permitisse a sua publicação, o que não acontece. Já basta escreverem em brasuquês e ter de corrigir ortograficamente todos os textos para português de Portugal.


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer, Investigator, Astronomer and Digital Content Creator, desinfluenciador


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266: Fabricar um passado à medida

 

🇵🇹 OPINIÃO

Passaram quase 50 anos, durante essa eternidade ninguém, nem o engenheiro Carlos Moedas, sentiu uma grande necessidade de comemorar o 25 de Novembro de 1975 e muito menos de o erigir em momento fundador da liberdade em Portugal.

Ninguém convocou, em quase meio século, uma manifestação popular para vitoriar os vencedores do 25 Novembro, num país em que até os admiradores do golpe de 28 de Maio, que nos condenou a 48 anos de ditadura, fizeram jantares ou iniciativas alusivas à data ou ao nascimento do ditador António Oliveira Salazar.

Resumindo, ninguém se sentiu compelido, até muito recentemente, a discutir com paixão um dia que tinha ficado arrumado no passado.

É verdade que os sectores políticos que triunfaram a 25 de Novembro tinham pouco a ver com os que hoje se atrelam, com ansiedade e fervor, à data. Mas isso não explica tudo.

A história costuma ser feita pelos vencedores, mas quem ganhou naquele dia tinha coisas mais urgentes em que pensar, e não viu necessidade de mudar a importância histórica do dia para que ficasse um momento diferente e muito mais importante do que tinha sido.

Aquilo que se verifica agora tem pouco a ver com recuperar o passado esquecido. Não se trata de ir assinalar uma data importante a que, por uma razão ou por outra, antes não se tinha dado o seu verdadeiro valor histórico.

O que se faz, neste momento, é uma fabricação da história para a encaixar na nova correlação política de forças existentes, com o crescimento significativo de uma extrema-direita assumidamente contra o 25 de Abril. Estamos em plena criação de um passado feito à medida de uma operação política.

Do que nos querem convencer é que temos democracia apesar da Revolução do 25 de Abril de 1974 e não democracia porque houve a Revolução de Abril. Esta manobra permite excluir muitos e recuperar alguns para o eixo da governação.

Fazer com que aqueles que combateram a ditadura portuguesa de 48 anos passem a ser vistos como revolucionários e poucos democráticos; e aqueles que se reconhecem no antigo regime sejam vistos, afinal, como uns democratas que pregavam a evolução na continuidade da ditadura para a democracia.

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, aproveitou a convocação de uma comemoração, organizada pela edilidade, sobre o 25 de Novembro, para convocar a erupção de um “activismo moderado”.

Esse apelo permitiu-lhe não ouvir o discurso de Luís Montenegro, em que este afirmou que Pedro Nuno Santos era “gonçalvista”; mas politicamente significou uma manobra arriscada do ponto de vista político.

Adoptar ideias históricas ou partes programáticas da extrema-direita, para travar o seu aumento e incorporar os seus votos nunca costuma resultar. Os eleitores conseguem distinguir a cópia dos originais e votar nestes últimos. Aquilo que costuma fazer é normalizar pontos de vista que antes era inaceitáveis.

Namorar sectores anti-25 de Abril pode construir maiorias parlamentares aritméticas, mas pode, também, levar os autores a deitarem pela borda fora a história desta democracia.

Esta iniciou-se a 25 de Abril de 1974 e com milhares de portugueses a irem para rua saudar os carros de combate que derrubavam a ditadura.

Editor-chefe do Diário de Notícias

DN
Nuno Ramos de Almeida
26 Novembro 2023 — 00:00


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186: Receitas argentinas

 

🇵🇹📚 OPINIÃO

Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para torná-las benéficas para a República era o título curtinho do panfleto de Jonathan Swift que propunha, em 1729, acabar com a fome e minorar a pobreza.

O panfleto começava com palavras ditadas pela comoção: “É uma melancolia para aqueles que caminham através desta grande cidade ou viajam pela província quando vêem as ruas, as estradas e as portas das carruagens apinhadas de mendigas, seguidas por três, quatro ou cinco crianças, todas em trapos e importunando os passageiros por uma esmola.”

O autor fazia notar que os pobres eram demasiado pobres e as suas crianças muito incomodativas, mas que a solução para tornar menos famintos os pobres estava no apetite dos ricos.

“Tendo-me sido assegurado por um americano muito sábio, em Londres, que uma criança saudável e bem alimentada é, com um ano de idade, uma comida deliciosa, nutriente e completa, seja estufada, grelhada, assada ou cozida.”

Para Swift, a solução era simples: os pobres venderiam as crianças famélicas aos ricos famintos.

“Quem quer que possa encontrar um método justo, barato e fácil para transformar estas crianças em membros saudáveis e úteis à comunidade deverá não só merecer a aprovação do público, como ver ser-lhe erguida uma estátua como salvador da nação”, eram as pias intenções do autor das Viagens de Gulliver.

O actual candidato de extrema-direita na Argentina, Javier Milei, propôs durante o seu percurso eleitoral: acabar com os serviços públicos de saúde, extinguir a educação pública, permitir que as pessoas pudessem comercializar os seus próprios órgãos e, eventualmente, vender as suas próprias crianças.

O que é mais extraordinário é que tal candidato tem a intenção de voto de cerca de metade dos argentinos, num país em que os ricos são muito poucos. Desde o final dos anos 70, a maioria das democracias mostram uma persistente impotência.

Os eleitores votam e os bancos centrais, FMI, Banco Mundial e outras instituições tratam de ditar uma política sempre igual, que garanta que cada dólar investido não seja prejudicado por políticas redistribuitivas nem lutas sindicais.

Democracias que não funcionam e em que não há alternativas políticas geram apenas a raiva e a pestilência.

Numa antiga telenovela brasileira, salvo erro o Bem-Amado, os eleitores podiam acrescentar candidatos ao boletim de voto. Resultado: o candidato mais votado foi um asno com nome de Nezinho. Não consta que tivesse tomado posse, até porque era supostamente um animal irracional.

A deriva populista de muitas democracias, seja na Argentina ou em Portugal, mostra que as pessoas estão tão raivosas que podem votar num burro perigoso só para mostrarem que estão fartas.

Editor-chefe

DN
Nuno Ramos de Almeida
19 Novembro 2023 — 00:08


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
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