🇵🇹 OPINIÃO
Várias pessoas me têm assinalado nos últimos dias uma similitude que, confesso, à partida não encontrei. Em 2021, demiti-me das funções públicas que então exercia, após concurso público, como director-geral no Ministério da Justiça, porque houve um lapso numa carta redigida pelos serviços que eu dirigia, remetida para a representação portuguesa junto da União Europeia, em Bruxelas.
Nessa carta, mencionava-se, em erro, a categoria profissional e o tratamento de cortesia de um magistrado: em vez de “procurador da República”, era designado como “procurador-geral adjunto”, a categoria profissional seguinte.
E indicava-se que este procurador teria sido responsável pelo inquérito e julgamento de um processo judicial, quando apenas teve intervenção na fase de inquérito, não na fase de julgamento.
Documentos anexos, como o currículo da pessoa em causa, demonstravam sem qualquer dúvida que, na carta de rosto, havia menções, mesmo que irrelevantes para o processo de nomeação em causa, desconformes com a realidade.
No entanto, dada a repercussão e o aproveitamento político feito deste lapso, tendo colocado publicamente em causa a dignidade e a probidade de um serviço público, entendi que deveria pedir à senhora Ministra da Justiça o fim das minhas funções, como dirigente deste serviço, o que foi aceite.
Eu, apesar de naturalmente não ter tido intervenção na elaboração concreta dos documentos em causa, era o responsável por tudo o que ali decorria, o bom, o mau e o mediano. E era, de facto, profissional e eticamente responsável.
Parece, entretanto, que a Procuradoria-Geral da República demitiu um Governo, afiançando que o primeiro-ministro era indicado por alguém, numa escuta, como sendo uma pessoa que poderia desbloquear um processo administrativo.
Coisa exótica, aliás, haver um primeiro-ministro interessado em resolver demoras administrativas, de projectos de investimento relevantes para o seu país…
Eis que parece que, afinal, analisado o excerto da escuta que foi amplamente divulgado na imprensa, e que parece tratar apenas da repartição legal de competências entre ministérios das Finanças e da Economia, houve um lapso. Um pequeno lapso. Em vez de dizer António Costa, o escutado diz António Costa Silva.
Um lapso, diz o sindicato dos procuradores (que deve ter procuração da PGR, presume-me, para falar em seu nome, presumindo que os sindicatos não despacham processos judiciais), que é irrelevante, porque, apesar desse excerto errado e desse nome saídos — e de que mão? — do processo para todos os jornais e televisões, se afinal se for ouvir a escuta gravada, está lá o Silva! Um canal francês de televisão fez aliás uma rábula cómica, nestes dias, sobre o Costa e o Costa Silva, que mereceria mais atenção.
Ora invocar-se e publicar-se, em comunicado, o nome do primeiro-ministro é irrelevante, claro. Pode ser Costa, pode ser Silva, pode ser Costa Silva, pode até não ser nada, pode ser uma mera simbiose freudiana de cavaquismo e costismo…
O que interessa é que houve uns almoços e umas pessoas a falar sobre concretizar depressa um investimento de 3,5 mil milhões de euros, mesmo que sem aparente ilegalidade. Cai o Governo? É irrelevante. É ridicularizada a investigação, o processo, o Ministério Público? É risível, mas irrisório.
Alguém é responsável pelo lapso, pela gralha, pelo erro? Que contribuiu decisivamente para a demissão de um primeiro-ministro e de um governo sustentado numa maioria absoluta no parlamento?
O Governo podia estar a governar bem, mal, assim-assim. Podia ser do PS, do PSD, do que fosse. O primeiro-ministro podia demitir-se na mesma, desde logo por não dever ter chefes de gabinete que guardam envelopes de dinheiro na sede do governo. Não pode é um governo, um país, um cidadão que seja, viver com esta irresponsabilidade do Ministério Público.
Escrevi já, há vários anos, que não percebia porque não vai o Procurador-Geral da República prestar contas, pelo menos anualmente, ao parlamento, sobre a actividade do Ministério Público.
Sobre os dados objectivos dos seus resultados, sobre o uso dos recursos, sobre a eficácia da sua acção – na investigação criminal, na protecção dos menores e dos trabalhadores, na protecção dos direitos dos consumidores ou do ambiente, na defesa dos interesses do Estado. E sobre as propostas que tenha e necessidades que sinta. Seria isto condicionar materialmente a sua acção?
Seria isto retirar a autonomia que tem na investigação e na acusação? Não o creio. Seria apenas uma forma simples de contrariar a aparente tendência para o populismo judiciário, com factos, dados e explicações, que se devem, em democracia, a todos.
Professor da Faculdade de Direito Universidade de Lisboa
DN
Miguel Romão
17 Novembro 2023 — 00:27
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published in: 2 semanas ago