– Não entendo! Na escolha de médico pelo doente, a deontologia diz que sim mas a prática diz que não?
“Deontologia é uma filosofia que faz parte da filosofia moral contemporânea, que significa ciência do dever e da obrigação. A deontologia é um tratado dos deveres e da moral. É uma teoria sobre as escolhas dos indivíduos, o que é moralmente necessário e serve para nortear o que realmente deve ser feito.“
SAÚDE // DEONTOLOGIA // MÉDICOS // PRÁTICA // DOENTE // ESCOLHA
Um doente pode escolher o seu médico. É o que diz o artigo 15 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, mas uma coisa é o princípio em abstracto, outra a realidade. Mas uma coisa parece certa: em primeiro lugar deve estar “a decisão técnica” e o “melhor tratamento ao doente”.
O DN conta aqui a saga de uma família que levou três anos para conseguir que uma médica do CHUC voltasse a acompanhar a filha, portadora de uma doença rara, ouvindo também o bastonário e um professor de Ética.

Código deontológico da Ordem dos Médicos define que doente tem direito a escolher o médico.
É ao telefone que o pai de uma criança que é acompanhada por uma médica, que diz ser alvo de assédio laboral, no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), conta ao DN a história da sua filha e da família para poder continuar com esta profissional, que um dia se cruzou ocasionalmente nos seus caminhos.
Este pai, que prefere não ser identificado, diz conhecer a médica desde que a filha é bebé e lhe fez o diagnóstico de uma doença rara de sangue.
Depois, quis o acaso que fosse uma das médicas de serviço na urgência de adultos do CHUC quando a mulher teve um episódio de doença aguda e teve de lá ir, acabando por lhe ser detectado um problema de sangue.
“Esta médica já tinha visto a minha filha, mas foi ela quem salvou a vida à minha mulher quando ela teve de ir à urgência com uma situação grave. A partir daqui a relação entre nós ainda ganhou mais confiança”, explica ao DN. A filha, hoje com seis anos, “foi sempre muito bem tratada”, mas, a certa altura, começaram a perceber que algo se passava.
“Começaram a marcar-nos consulta para outros médicos. Sem perceber porquê, em 2018 tomei a iniciativa de fazer uma exposição ao Centro Hospitalar, à Ordem dos Médicos e à Entidade Reguladora da Saúde para reclamar o direito de a minha filha poder continuar a ser acompanhada por esta médica”, explica, argumentando até com o facto de “dever existir alguma continuidade no acompanhamento médico, até por várias razões, como do conhecimento à confidencialidade”.
Houve respostas que chegaram e outras que não, mas, mesmo as que chegaram, não o satisfizeram, e em 2020 fez outra exposição, em que reforçava o artigo 15 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos para sustentar o acompanhamento por aquela médica. Tempos depois recebe a convocatória para uma consulta com a filha e pensa que será com a médica em causa, mas não.
“Era outra médica, e assim que percebi falei com a administrativa que estava para lhe perguntar se seria melhor ir-me embora, porque não queria aquela consulta, ou se explicava a situação à médica que ali estava, por uma questão de respeito”, explica.
A administrativa falou com a médica e disse-lhe que se pudesse esperar esta gostaria de falar com ele. “Esperei. Qual é o meu espanto quando, depois de ter dito que não queria consulta com aquela médica porque não era a médica que acompanhava a minha filha, entro no consultório e a médica inicia a conversa como se fosse uma consulta normal. E fiquei mesmo incomodado”, desabafa.
O artigo 15.º do Código da Ordem dos Médicos é sobre a livre escolha pelo doente e refere que “o doente tem o direito de escolher livremente o seu médico, e este o dever de respeitar e defender tal direito. O médico assistente deve respeitar o direito do doente a mudar de médico, devendo antecipar – se, por dignidade profissional, à menor suspeita de que tal vontade exista“.
“Voltei a explicar que queria que a minha filha fosse acompanhada por outra médica e que só queria saber como poderia marcar consulta para ela. A clínica insistiu que queria saber por que é que eu queria a outra médica, expliquei as minhas razões e ela responde-me que não era possível agendar uma consulta para um colega específico. A única forma era tentar falar directamente com a tal médica. Levantei-me e disse que era o que iria fazer.
Quando me dirijo à porta, a médica coloca-se entre mim e a porta e pergunta-me se numa urgência também iria ficar à espera daquela médica, mas num tom intimidatório. Não gostei e disse-lhe que não era burro, uma urgência é uma urgência.”
Este pai voltou a fazer uma exposição para voltar a ter a médica que pretendia para a sua filha, desta vez ao Gabinete de Utente do CHUC, que lhe respondeu que não era matéria da sua competência e que tinha enviado a reclamação para o Gabinete de Utente do Hospital Pediátrico que integra o CHUC. Daqui recebeu a informação de a sua missiva ter sido recepcionada e remetida como queixa registada à plataforma da ERS.
Desta entidade recebeu resposta um mês depois, e era-lhe explicado que a reclamação enquanto tal estava terminada, mas que o assunto necessitava “de uma análise adicional, assim, e após decisão de apensação, o processo foi terminado no âmbito do processo de reclamação mas os factos continuarão a ser avaliados pela ERC”.
Não desistiu. Fez nova reclamação contra os directores do serviço onde a filha é acompanhada no hospital pediátrico do CHUC para a Ordem dos Médicos do Centro, com conhecimento para o Conselho Disciplinar da OM, em Fevereiro de 2022, porque, sustenta, “continuava sem feedback do hospital e parecia-me que ali o meu pedido tinha caído em saco roto. E nesta reclamação para a Ordem exponho que a actuação até agora do serviço é de conduta ética e deontologicamente condenável”.
Mas a primeira resposta que recebe foi a informá-lo de que tinha sido “pedido um esclarecimento à administração do CHUC, depois, na segunda, dizem-me que não há violação deontológica por parte dos serviços hospitalares, uma vez que há limitações à livre escolha do médico, pois poderia acontecer que todos os doentes escolhessem o mesmo médico. Achei inacreditável esta resposta, porque não era de todo o caso da médica que pretendia”.
Três anos para a filha voltar a ser acompanhada pela médica
Neste entretanto, que correu de 2018 a 2020, a filha voltou a ser acompanhada pela médica que queria, “por eu ter conseguido entrar em contacto directo com ela”, afirma, mas “estava longe que todas as tentativas de tirarem a minha filha da agenda da médica podia ter a ver com uma situação de assédio laboral”.
Como especificou ao DN, “apenas queríamos ver cumprido o artigo 15 do Código Deontológico, que diz que o doente tem direito a escolher o seu médico pela competência e tratamento que já nos tinha demonstrado”.

Bastonário dos médicos defende que a decisão técnica deve ser preservada em relação a qualquer outra.
A médica em causa chama-se Maria e é especialista em doenças raras, nomeadamente na área do sangue, em idade adulta e pediátrica, e o seu advogado diz que está a ser vítima de assédio laboral.
É a mesma clínica sobre quem o DN contou, na sua edição de ontem, que viu ser recusada a prescrição de um medicamento inovador, aprovado pelo Infarmed em Fevereiro deste ano, a duas crianças com hemofilia A grave, que acompanha desde bebés.
Segundo o advogado, “é o assédio levado ao extremo”, porque “não estamos a falar de tratamentos da ordem dos quatro milhões de euros, como aconteceu com as gémeas brasileiras em Santa Maria”.
O medicamento tem o custo de 190 mil euros ao ano e “melhoraria muito a qualidade de vida destas crianças”, explicou o seu advogado. “Em vez de terem de se injectar entre três a quatro vezes por semana, com este medicamento as crianças apenas precisam de uma injecção mensal”, especificou ainda o jurista, que integra também o gabinete do Sindicato dos Médicos do Centro.
“A medicação tem uma configuração grave. O doente não pode ser diagnosticado e deixar de receber um medicamento por haver problemas. O doente não pode ser prejudicado. A primazia da decisão técnica sobrepõe-se a qualquer outra, administrativa ou jurídica.”
A justificação da recusa do fármaco às crianças é sustentada pelo serviço e pelo conselho de administração anterior num protocolo que define que só médicos do centro de referência podem prescrever este tipo de medicamento. Maria foi fundadora do centro de referência, mas retirada do mesmo pela direcção do serviço.
O caso de assédio foi levado ao Tribunal do Trabalho de Coimbra, onde foi feito um acordo que o advogado diz não estar a ser cumprido pelo CHUC. O seu caso vai ser levado à nova administração, numa reunião agendada para dia 18 de Dezembro, pois “já lá vão seis anos que é vítima de assédio laboral”.
“A decisão técnica deve estar acima de tudo”, diz bastonário
Este é o caso de Maria e a saga que a família de quem contamos aqui a história passou foi para a ter como médica. Mas, afinal, o utente pode ou não escolher o seu médico? O DN colocou a questão ao bastonário dos médicos, Carlos Cortes, e ao médico e professor de Ética da Faculdade de Medicina de Lisboa Miguel Oliveira Silva.
O objectivo era perceber se o artigo 15 do Código Deontológico dos Médicos é somente um princípio teórico ou se há mesmo algo que o faça ser cumprido.
Pois bem, tanto Carlos Cortes como Miguel Oliveira e Silva, e sem quererem referir-se especificamente a qualquer caso, mas no abstracto, concordam que “o doente tem direito a escolher o médico, mas dentro de algumas regras”.
Por exemplo, “o doente tem direito a escolher um médico desde que este tenha a diferenciação adequada para a sua patologia e tendo em conta a organização interna dos serviços, porque é assim que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) funciona”, refere o bastonário, sublinhando: “Se um utente não estiver satisfeito com o médico que o acompanha, pode recorrer a outro, mas não pode escolher um que não seja do serviço onde tem de ser acompanhado ou que não tenha as competências necessárias para acompanhar a sua patologia.”
Miguei Oliveira e Silva diz que, no SNS de hoje, é cada vez mais difícil fazer valer o direito de que o doente pode escolher o médico.
O professor de Ética Miguel Oliveira e Silva é taxativo quando responde: “Tudo depende se estamos a falar em se aplicar esse direito no SNS de 2023 ou ao sector privado.”
Isto porque “no SNS, e cada vez mais devido à escassez de recursos que existe, este direito não é possível de exercer, até porque o médico que o doente gostaria de escolher pode já não estar lá, pode estar com outras funções ou pode não ter a competência necessária para o tratar”.
Se tal acontecer, destaca, “é o médico que tem de ter a honestidade, a transparência e a humildade de dizer ao doente: “Essa situação não é para mim. Tem de ir a outro colega””. Em relação ao privado, “é o doente quem escolhe o médico”.
“Uma coisa é o direito do utente em abstracto poder escolher o local e o médico que o consulta, outra é concretizar esse direito no dia a dia do SNS e nas suas dificuldades.”
Mas, no entender de Carlos Cortes, há algo que deve estar acima de qualquer decisão ou de problemas entre clínicos. “A medicação tem uma configuração grave. O doente não pode ser diagnosticado e deixar de receber um medicamento por haver problemas. O doente não pode ser prejudicado. A primazia da decisão técnica sobrepõe-se a qualquer outra, administrativa ou jurídica.”
O bastonário reconhece não ser habitual exposições ou pedidos de cidadãos para que sejam acompanhados por um determinado médico. “Não conheço casos desta natureza, mas não coloco a possibilidade de estes não existirem, só que não é habitual chegarem à Ordem.”
Miguel Oliveira e Silva refere ao DN que nas suas aulas na faculdade “o assunto é abordado, claro”, até para alertar os futuros médicos de que “uma coisa é o direito de o utente poder escolher, em abstracto, o médico e o local onde quer ser consultado, outra é concretizar esse direito no dia a dia e nas dificuldades do SNS”.
A médica de quem falamos, e segundo o testemunho deste pai e do advogado que a defende, “tem toda a competência para acompanhar estes doentes” e, em relação à organização do serviço, “integra o serviço em que se tratam estas patologias e, por acordo em tribunal, tem um dia de consulta dedicada ao centro de referência onde estas crianças devem ser acompanhadas”, sublinha o jurista do SMC.
O DN sabe que a médica tem vindo a perder doentes – dos 15 a 20 que tinha há seis anos restam-lhe agora quatro. “Todos os novos doentes vão para outros médicos.
E o Hospital Pediátrico de Coimbra, que integra o CHUC, dá-se ao luxo de ter uma clínica diferenciada a não trabalhar no total das suas capacidades nem sequer com horário atribuído para os primeiros três dias da semana, definido em acordo assinado no Tribunal do Trabalho por acção deste assédio laboral”, sublinha Miguel Monteiro. E defende ainda que a questão que envolve os doentes deveria ser abordada pela Ordem dos Médicos.
O DN questionou o CHUC sobre o caso de assédio laboral que esta médica está sujeita há seis anos, segundo o seu advogado. E ainda sobre a sua posição relativamente ao artigo 15 do Código Deontológico das Ordem que invoca o direito do doente a escolher o seu médico, mas ao fim de uma semana não tinha ainda obtido qualquer resposta.
DN
na Mafalda Inácio
03 Dezembro 2023 — 00:13
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer, Investigator,
Astronomer and Digital Content Creator, desinfluenciador
published in: 3 dias ago