411: Carta aberta a um amigo que escreve de histórias e memórias

 

🇵🇹 OPINIÃO

Caro Francisco:
Optei por escrever-te uma carta aberta a propósito do teu livro de memórias e histórias Antes Que Me Esqueça. É que não é fácil falar do livro de um amigo, com quem partilho a mesma condição diplomática e muitas experiências de vida. E pior ainda se é para dizer bem…

O grande achado deste volumoso livro de memórias e o que torna a sua leitura mais aliciante e envolvente é a opção escolhida de não agrupar os momentos evocados numa ordem cronológica ou temática, antes deixar fluir livremente as recordações e as análises e fazer de nós, leitores, atentos ouvintes de histórias inúmeras e fascinantes, como o sultão das Mil e Uma Noites a ouvir os contos de Xerazade. E sem o nosso autor ter de sofrer a angústia de Xerazade…

Lawrence Durrell, no seu Antrobus (Cenas da Vida Diplomática) deu-nos uma visão cheia de humor e malícia da vida dos diplomatas. Em Francisco Seixas da Costa encontramos o mesmo sentido de humor e o mesmo divertimento, mas sempre aliados a uma sólida e estruturada visão da nossa política externa e do estado de um mundo que mudou profundamente no tempo de vida da nossa geração.

É um livro com tantas histórias que nos custa acabá-lo quando chegamos às últimas páginas e aos últimos contos: é um livro que nos diverte e ao mesmo tempo nos informa e nos transmite conhecimento.

Quem quiser ter uma visão realista, fundamentada e sem preconceitos da nossa vida diplomática nas últimas décadas encontrará neste livro muita informação, reflectida e ponderada. Mas não encontrará um ensaio ou um tratado sobre a diplomacia em abstracto: encontrará histórias que são como instantâneos fotográficos da História com maiúscula dos últimos anos.

Espreitar assim os bastidores das decisões e discussões que fizeram a nossa História é o que as memórias normalmente oferecem, mas nem sempre com este tom natural e quotidiano com que o nosso autor as conta. De tantos factores pessoais e subjectivos são afinal feitas essas grandes decisões que preparam o nosso futuro ou nos defendem do nosso presente!

Quem quiser ter uma visão realista, fundamentada e sem preconceitos da nossa vida diplomática nas últimas décadas encontrará neste livro muita informação, reflectida e ponderada.

A escolha de Francisco Seixas da Costa de não arrumar as suas memórias em capítulos cronologicamente organizados, mas de as deixar brotar e surgir “antes que me esqueça”, para desenvolver a partir da cada memória o seu sentido de humor ou a sua reflexão pessoal, torna a obra num livro tão diverso quanto inesperado.

É que, se encontramos neste texto informações preciosas sobre a nossa história diplomática dos últimos anos, a partir de uma experiência profissional fora do comum, não ficamos por isso reduzidos, enquanto leitores, a estas matérias. As memórias são extremamente vividas e concretas, pois nada do que é humano lhes é estranho, e fazem-nos sentir a nós, leitores, bem por dentro dos variadíssimos ambientes que evocam.

E é de assinalar que nunca a sombra e o azedume de qualquer ressentimento assomam nestas páginas, atravessadas de humor e da alegria de estar vivo.

Caro Francisco, isto é o que eu escreveria sobre o teu livro no Diário de Notícias. Mas ousarei fazer assim o elogio de um amigo? Não me ficará isso mal e não te comprometerá a ti? Não falarão de “compadrio”?

Deixo-te a ponderar estas graves questões e envio o texto, assim mesmo, para o Diário de Notícias. Desta vez não ouvirei os teus conselhos…

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
05 Dezembro 2023 — 00:19



Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer, Investigator,
Astronomer and Digital Content Creator, desinfluenciador



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299: Moderação e convicção

 

🇵🇹 OPINIÃO

Porque és morno e não és frio, nem quente,
vomitar-te-ei da minha boca.

Apocalipse, 3.16

Cedo aprendi a fundamental distinção de Max Weber entre “ética de convicção” e “ética da responsabilidade”. Segue uma ética da convicção o político que abstrai das consequências dos seus actos para seguir rigidamente as suas convicções; segue a ética da responsabilidade o político que considera e pondera todas as consequências, antes de tomar uma decisão.

Se podemos ver aqui reflectida a distinção entre radicais (os da convicção) e moderados (os da responsabilidade), convinha pensarmos de que lado está hoje a moderação e de que lado está hoje o radicalismo.

Quando uma personalidade representativa da Iniciativa Liberal aplaude a eleição de um anarco-capitalista que quer destruir o Estado, podemos considerar moderada esta posição?

Quando um Governo submetido a uma troika de credores pretende ir além dessa troika e declara o empobrecimento do país um objectivo necessário para crescimentos futuros (mais “amanhãs que cantam”?), poderemos considerar moderada esta política?

Eu creio que depois do Governo de Vasco Gonçalves, o mais radical Governo que tivemos foi o da além-troika, que dizia que as reformas têm de doer (naturalmente, aos trabalhadores) e que nós, o povo, vivíamos acima das nossas possibilidades. Será isto um Governo moderado?

Eu creio que depois do Governo de Vasco Gonçalves, o mais radical Governo que tivemos foi o da além-troika.

A social-democracia perdeu o sentido quando abdicou das suas convicções, não pela ética de responsabilidade, mas por uma activa cooperação e cumplicidade com a especulação financeira, contra os direitos dos trabalhadores.

Foi o New Labour de Tony Blair, foi a famigerada “terceira via” teorizada por Anthony Giddens. Os resultados estão à vista e vieram à tona com a crise financeira mundial.

Foi esta gestão política da social-democracia prudente e conforme à ética da responsabilidade ou apenas veio mostrar a inutilidade de uma “terceira via”, que na realidade fechava as portas a qualquer alternativa?

A ética da responsabilidade é necessária, mas quando é invocada para esquecermos as nossas convicções transforma-se em oportunismo e, ao não se distinguir das políticas económicas e sociais da direita, a social-democracia comete um suicídio com espectadores.

O problema de se querer pensar ao centro é que são precisos dois para dançar o tango e há muito que as lideranças da nossa direita abandonaram o centro, iluminadas pela convicção ultraliberal, verdadeira estrada de Damasco que os transfigurou. Os moderados do PSD perderam a partida desde o Governo de Passos Coelho.

Face ao descontentamento popular com a política, não é abandonando as nossas convicções socialistas democráticas que poderemos enfrentar o extremismo neoliberal e o racismo e a xenofobia da extrema-direita.

A reafirmação dos nossos ideais, que não pretendem abolir os mercados, mas se recusam a depender deles absolutamente, que não querem diminuir o investimento privado, mas se recusam a abandonar o investimento público e a necessária missão reguladora e estratégica do Estado na economia, que não pretendem desacertar as contas públicas, mas consideram que pode ser mais urgente acudir ao SNS ou à Educação, mesmo que umas centésimas se percam na redução do deficit, todos estes pontos representam a verdadeira moderação, contra o extremismo dos seguidores cegos do neoliberalismo da Escola de Chicago.

É preciso que a ética da responsabilidade socialista triunfe sobre a ética da convicção neoliberal. Os inimigos da democracia crescem com a impotência dos Estados e o sentimento de que os políticos “são todos iguais”. A ética socialista deve mostrar que existem alternativas para o futuro.

Esta é a verdadeira moderação de que carecemos, contra os radicalismos da nova direita.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
28 Novembro 2023 — 00:50


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

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206: O cronista confessa-se

 

🇵🇹📚 OPINIÃO

Que tempo este em que falar de árvores é quase um crime,
porque seria esquecer tantas
injustiças.

Bertolt Brecht

O cronista gostaria de soltar a sua escrita e falar, não de árvores, mas de viagens, não de flores, mas de memórias. Mas interpõe-se e impõe-se à sua escrita, como o elefante no meio da sala de que falava na última crónica, o momento político que atravessamos.

É um estranho país, este em que vivemos desde o dia 7 de Novembro. Sou filho de juiz e nos tempos de meu pai havia uma regra, que se perdeu, chamada “segredo de justiça”.

Hoje, basta ser mencionado por um suspeito ou por uma testemunha num processo, para se ser publicamente incriminado. Eu sei o que o meu pai pensaria disto, mas não o tenho já neste mundo para poder falar com ele.

Já tivemos uma “república de juízes”, a Itália dos processos das “Mãos Limpas”, que destruiu, ou fez implodir, o sistema político italiano. Seguiu-se a este terremoto o incorruptível Berlusconi e, depois de Governos chefiados por técnicos económicos e não por políticos, chegámos ao Governo de extrema-direita da sra. Meloni.

É fácil de compreender o mecanismo que leva a generalizar a corrupção que temos à vista com todo um sistema político na sua globalidade e avançar o combate contra ele, sem ponderar a legalidade do procedimento, nem os seus efeitos prováveis.

Quando eu era jovem, também acreditava que só a destruição total do sistema económico capitalista poderia levar à construção de um mundo novo, em que os amanhãs começassem a cantar.

Com o tempo e seguindo o aforismo de Willy Brandt (“quem não foi comunista aos 20 anos não tem coração; quem não se tornou social-democrata aos 40 não tem cabeça”) tornei-me social-democrata. Não quero destruir o capitalismo, mas regulá-lo e pô-lo ao serviço do interesse público.

Mas a social-democracia não pode ser uma máscara para dar um rosto humano ao neoliberalismo extremo, que nos Anos 80 do século passado, veio substituir o liberalismo com algumas preocupações e compromissos sociais, por uma ideologia claramente anti-social.

Entre nós, essa transformação do liberalismo com preocupações sociais em liberalismo declaradamente anti-social chegou com a troika e seus servidores.

Friedrich von Hayek, o grande economista liberal, ao ver nascer o Sistema Nacional de Saúde no Reino Unido, considerou que estava a ser dado um passo fatal no “caminho para a servidão” que conduzia aos totalitarismos.

Essa ideia de combate ao Estado Social, afastada algum tempo pelos próprios liberais face às necessidades do pós-guerra, voltou a comandar as políticas liberais desde Margaret Thatcher, aquela que duvidava da própria existência de uma sociedade…

A social-democracia, que tem um pensamento próprio e que defende (ou devia defender) um Estado estratega e interventor e combate (ou devia combater) a rendição da economia real e produtiva aos especuladores financeiros, tem de assumir claramente as suas diferenças em políticas públicas com os extremistas neoliberais.

Por isso, o momento que atravessamos é fundamental para o nosso futuro. Os servidores da troika continuam e continuarão a querer ir além da troika. Os inimigos da democracia continuam e continuarão a colocar-se como a única alternativa a um sistema corrupto.

Só uma afirmação claramente social-democrata, que rejeite a mentira do TINA (There is no alternative), poderá dar esperança aos descrentes do sistema e oferecer um caminho viável para enfrentar as crises que ameaçam a democracia, bem como os seus fautores.

Como prometi uma confissão, faço-a e chamo-lhe declaração de interesses: sou socialista (que surpresa, leitor!) e, não obstante toda a amizade e consideração que tenho por José Luís Carneiro, com quem tive o gosto de trabalhar, sou apoiante de Pedro Nuno Santos. E que o futuro nos traga o equilíbrio e a moderação necessários para que eu possa falar de árvores sem remorsos.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
21 Novembro 2023 — 00:43


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
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121: Onde estavas no ​​​​​​​dia 25 de Abril de 1974?

 

🇵🇹 OPINIÃO

O cronista recorre à memória, quando a actualidade o excede. A crise política é o elefante que não está já só no meio da sala: ele passeia-se agora por toda a sala, a esmagar recordações e realidades, esperanças e promessas.

Estamos nas vésperas do cinquentenário do 25 de Abril. Como podemos olhar com confiança para o futuro, enquanto o elefante continua a sua marcha arrasadora à volta da sala? Como poderemos defender a pequena luz bruxuleante (Jorge de Sena) dessa liberdade que reconquistámos e não queremos perder? Como manter a esperança no meio da desolação?

Num momento em que as ameaças à democracia nunca foram tão fortes, lembro-me da pergunta canónica de Baptista Bastos, que deu título a esta crónica, e escrevo de uma memória feliz contra um presente sombrio.

No jornal República, onde eu colaborava então, a convite do Mário Mesquita, os nossos colegas comunistas defendiam a inconsistência da “ilusão militarista”, porque só um “levantamento nacional armado” (que não víamos muito bem donde viria) poderia pôr fim à ditadura. Álvaro Guerra e Carlos Albino, por dentro da conspiração, abanavam a cabeça e sorriam daquela juventude convencida e dogmática.

Eu, sem as informações, ainda que crípticas, de Melo Antunes, que fora transferido para os Açores, e considerando o falhado “Golpe das Caldas” de 16 de Março, tendia para o cepticismo.

Nesse tempo, ter um telefone em casa implicava uma longa espera, e havia já dois anos que eu tinha pedido a sua instalação, sem consequências. Por isso, foi a vizinha de cima que veio bater à minha porta naquela manhã e me disse para ligar o rádio.

Lembro-me de andar todo o dia a pé pela cidade e ver as ruas cheias de gente deambulante e excitada, como quem acorda de um sonho e tarda a reconhecer a realidade que o rodeia.

A liberdade espalhava-se pelas ruas, brilhava no reflexo das armas e dos capacetes dos militares, dividia-se nas multidões várias que corriam, no boca a boca que nos trazia as boas notícias e os desvairados rumores, ressoava nos aplausos e nos gritos de alegria, como nos tiros perdidos, aqui e ali.

Não fui para o Largo do Carmo, fiquei pela redacção do República, na Rua da Misericórdia. Os populares vinham aplaudir às nossas janelas e em seguida desciam o Chiado em direcção ao edifício da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, donde vieram os primeiros tiros e os únicos mortos daquele dia. De todo os outros jornais saíam edições anunciando “não-visado pela Comissão de Censura”, com a alegria de uma primeira vez.

Lembro-me de nesse dia almoçar no restaurante Mealhada com um grande grupo e ficar confuso por podermos falar de política em voz tão alta, sem recear os ouvidos à volta, tal como, quando da chegada de Mário Soares a Santa Apolónia, continuei com o reflexo de procurar ao longe, atrás da manifestação, os vultos da polícia de choque, para poder preparar a fuga.

Os PIDEs, tão presentes nas nossas vidas e nos nossos medos, espreitando das mesas do café para as nossas mesas, espreitando por dentro das manifestações e das reuniões de alunos, entrando violentamente, à bofetada e ao pontapé, nas salas de estudo que tínhamos transformado em sedes de propaganda clandestina, disparando por vezes e matando, como fizeram ao colega Ribeiro dos Santos, os PIDEs tinham desaparecido da nossa vista, detidos para não serem massacrados.

De que valem estas recordações do passado nos dias cinzentos que estamos a viver? Talvez elas possam reacender a pequena luz bruxuleante, talvez lembrar Abril seja hoje, mais do que uma comemoração, um ato de resistência.

Contra o elefante no meio da sala, contra a degradação da democracia, contra tudo o que contra Abril se levanta. Ou, como escrevia o poeta Manuel Gusmão, contra toda a evidência em contrário a alegria.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
14 Novembro 2023 — 00:27


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