Fui ver o filme Napoleão e gostei, sobretudo das impressionantes cenas de batalha. Devo sublinhar que sempre foram os feitos militares do corso a causa de certo fascínio pessoal pela personagem, a ponto de na última primavera, durante umas férias na Bélgica, ter subido os 226 degraus do Monte do Leão. Do cimo da colina artificial avistam-se os campos onde foi travada a Batalha de Waterloo, que é retratada quase no final do filme.
Em 2015, no bicentenário da derrota definitiva do imperador francês, os mais fanáticos pelas coisas da guerra até puderam ali assistir a uma reconstituição (em pequena escala) do embate entre os cerca de 72 mil franceses às ordens de Napoleão e os 113 mil britânicos, prussianos e outros comandados pelo duque de Wellington e pelo general Blücher.
Vencido, Napoleão partiu para o exílio em Santa Helena, nunca mais vendo a sua imperatriz austríaca e o filho pequeno, ambos entretanto devolvidos a Viena. Josefina, a sua primeira mulher e grande amor, morreu pouco antes. Um extraordinário museu explica tudo ali mesmo, em Waterloo.
Para felicidade de outro tipo de fanáticos por Napoleão, o filme realizado por Ridley Scott dá especial atenção, por entre as batalhas de La Grande Armée, à sua obsessiva paixão por Josefina, incluindo certas preferências sexuais que o museu em Waterloo ignora. Li algumas biografias do imperador e talvez haja generosa liberdade criativa da parte do guionista, David Scarpa.
Mas sim, admita-se que há algo de muito especial na relação do general corso com as mulheres, pense-se no papel dominador da mãe, que se vislumbra no filme e está bem documentado fora dele. Josefina parecia ser também a outra generala lá em casa, só falhando por ser incapaz de dar um herdeiro ao imperador, dai o divórcio e o casamento com Maria Luísa, uma Habsburgo.
Sobre a virilidade de Napoleão há muitos estudos, até aqueles com a assinatura de Oxford, que tratam da importância da masculinidade e do sexo para a motivação do Exército Francês, então o mais poderoso da Europa (não esquecer que foi preciso o General Inverno para derrotar o corso na Rússia e, depois, pelo menos a soma de um Exército britânico e de um prussiano para desferir o golpe final em Waterloo).
Descobri recentemente, num romance de Leonardo Padura, que há um grande museu napoleónico em Cuba, com milhares de peças ligadas ao imperador francês.
Nesse Pessoas Decentes, também a certa altura das investigações de Mario Conde se fala do suposto pénis de Napoleão, que teria sido amputado durante a autópsia em Santa Helena, em 1821. Chegou a estar na posse da família, depois foi vendido e até esteve quase para ser leiloado. Bizarro!
Seja então pelo génio militar ou por outras razões mais comezinhas, o tal fascínio por Napoleão existe e persiste. E o êxito do filme só o comprova.
Logo a começar por França, em que o sobrinho de Napoleão, que ganhou as primeiras eleições presidenciais do país, no século XIX, não resistiu a proclamar-se imperador, e na qual o estilo imperial permanece até hoje como um modelo para o chefe do Estado, do general De Gaulle a Macron, passando por Mitterrand.
Numa entrevista que fiz a um dos mais recentes biógrafos, Adam Zamoyski, este não hesitou em afirmar que “Napoleão foi um grande propagandista que criou uma imagem de si mesmo que inspirou o seu povo”.
Mesmo na Grã-Bretanha, onde a imagem de Napoleão como um ditador está enraizada, o sucesso de vendas de livros como o de Zamoyski ou as filas para visitar uma exposição no Museu Britânico dedicada aos cartoons de época sobre o corso, confirmam a popularidade da figura dois séculos depois da morte.
Portugal não é indiferente a Napoleão (D. Pedro IV casou-se primeiro com uma irmã de Maria Luísa e depois com uma neta de Josefina, filha desse Eugénio que no filme surge ainda miúdo a pedir a Napoleão a espada do pai guilhotinado). Até já conheci portugueses chamados Napoleão.
E apesar de as invasões francesas terem obrigado a família real portuguesa a mudar-se para o Brasil e terem deixado memória nas Beiras de massacres como nunca os Exércitos Espanhóis fizeram, a faceta liberal do francês sobrepõe-se no imaginário popular – basta lembrar como Gomes Freire de Andrade, general que combateu na Campanha da Rússia ao lado do imperador, é um dos nossos mártires da pátria, executado por suspeita de ser campeão da liberdade.
Napoleão Bonaparte, nascido Buonaparte, morreu com apenas 51 anos. Corso, cresceu a falar um dialecto italiano antes de dominar o francês. A família pertencia à pequena nobreza da Córsega, ilha só francesa a partir de meados do século XVIII, mas o pai, Carlo, chegou a frequentar a corte de Luís XVI.
Este filme (obra de ficção, não um documentário, sublinhe-se), em que Joaquin Phoenix encarna com graça o imperador, provavelmente falha sobretudo em transmitir um ponto muito actual: a impressionante ascensão social de Napoleão, fruto do turbilhão que foi a Revolução Francesa de 1789, mas também da sua fortíssima personalidade.
Na História da Europa antes do século XX é difícil encontrar equivalente ao que chamaríamos hoje um sucesso extremo do elevador social e mesmo nos Estados Unidos só o nome de Abraham Lincoln me vem à cabeça.
Noutras geografias, comparável talvez só o fundador da Dinastia Ming, Zhu Yuanzhang, ou o mongol Temunjin, conhecido por Gengis Khan. Não falemos da célebre virilidade deste último, mesmo que Borte fosse um pouco a sua Josefina, tirando a parte de lhe ter dado herdeiros.
Director adjunto do Diário de Notícias
DN
Leonídio Paulo Ferreira
30 Novembro 2023 — 00:02
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
Como parece hoje distante o discurso de despedida de George Washington em 1796, aconselhando os Estados Unidos à cautela nas relações externas, evitando deixar-se envolver em disputas que não eram as suas!
Claro que o poder da América agora não tem comparação com o da época em que o primeiro presidente governou e por isso Joe Biden pode reclamar um papel-chave nas negociações para a libertação parcial dos reféns israelitas nas mãos do Hamas e outros movimentos palestinianos.
O Qatar, e também o Egipto, têm grande mérito na evolução das negociações. Mas sem o envolvimento da diplomacia americana é difícil imaginar possível qualquer acordo entre o governo israelita e os grupos palestinianos que atacaram a partir de Gaza e espalharam o terror no sul de Israel há mês e meio, matando mais de 1200 pessoas e sequestrado mais de 200.
A resposta militar israelita, num esforço de eliminação do Hamas, provocou mais de dez mil mortes na Faixa de Gaza e gerou, apesar do apoio de Biden e outros líderes ocidentais a Israel, grande pressão para uma pausa nos ataques por razões humanitárias.
Desde o primeiro momento desta nova guerra entre Israel e o Hamas, os Estados Unidos fizeram questão de alertar que não permitiriam aproveitamentos por potências regionais da fragilidade momentânea do Estado Judaico. Um primeiro porta-aviões foi deslocado de imediato para o Mediterrâneo Oriental e um segundo juntou-se-lhe depois.
Mesmo assim, grupos como o Hezbollah no Líbano e os Houthis no Iémen, ambos com ligação conhecida ao Irão, têm disparado mísseis contra Israel, tendo vários sido interceptados por sistemas anti-mísseis dos destroyers que integram as esquadras do USS Gerald R. Ford e do USS Dwight D. Eisenhower.
Conscientes de que a solução para o conflito israelo-palestiniano não é apenas militar, os Estados Unidos puseram em marcha também a sua máquina diplomática e, a par dos encontros nos bastidores, tem sido visível o trabalho do secretário de Estado Antony Blinken, visitando várias capitais do Médio Oriente.
E o próprio Biden, que já esteve em Israel depois do 7 de Outubro, agarra com frequência no telefone para, a partir de Washington, procurar a colaboração dos líderes regionais, incluindo Mahmud Abbas.
A Autoridade Palestiniana, a que este último preside, foi criada pelos Acordos de Oslo de 1993, patrocinados pelo americano Bill Clinton, e apesar de hoje só controlar a Cisjordânia é indispensável a uma solução de futuro para o povo palestiniano, dado o Hamas ser considerado terrorista tanto pelos Estados Unidos como pela União Europeia e aos olhos de Israel ser o inimigo a abater.
Esta combinação de poder militar e de influência diplomática faz dos americanos actores no Médio Oriente sem comparação possível sequer com russos ou chineses.
Vistos como o grande protector de Israel desde pelo menos a década de 1960, com intervenções decisivas nas guerras dos Seis Dias e sobretudo do Yom Kippur, os Estados Unidos são simultaneamente um grande fornecedor de armamento ao Egipto.
No caso do Qatar, país onde vive parte da liderança do Hamas, os Estados Unidos têm mesmo a sua maior base no Médio Oriente.
A possibilidade de sucesso das actuais e futuras negociações entre Israel e quaisquer grupos palestinianos depende, pois, do nível de empenho da Administração Biden. Isto mesmo sabendo-se que os ódios acumulados desde os anos 1940 (quando os países árabes recusaram na ONU o plano de divisão da Palestina histórica e atacaram o recém-criado Israel, que os derrotou em toda a linha) não desaparecerão como num passe de mágica e até a solução dos dois Estados (não já a dos anos 1940, mas a prevista nos Acordos de 1993) está longe de ser consensual entre israelitas e palestinianos.
Conta a favor dos americanos o seu historial de sucesso na promoção de entendimento entre países árabes e Israel, dos Acordos de Camp David em 1978 aos recentes Acordos de Abraão.
“Somos os Estados Unidos da América, por amor de Deus! A nação mais poderosa na história do mundo. Conseguimos lidar com as duas guerras e manter a nossa defesa internacional”, garantiu há dias a um jornalista Biden, referindo-se à capacidade da maior economia mundial para lidar ao mesmo tempo com este conflito no Médio Oriente, salvaguardando Israel, e continuar a apoiar a resistência da Ucrânia aos invasores russos.
É curioso como, e regressando aos primórdios dos Estados Unidos como nação independente, um dia no Congresso James Madison, futuro secretário de Estado e futuro presidente, propôs que, em vez de se criar uma marinha de guerra, a defesa dos interesses navais americanos fosse contratada à Armada Portuguesa.
Director adjunto do Diário de Notícias
DN
Leonídio Paulo Ferreira
23 Novembro 2023 — 00:02
Fundadora e directora-executiva da Memorial, uma ONG premiada com o Nobel da Paz em 2022, Elena Zhemkova critica o encerramento por ordem do governo russo, condena a invasão da Ucrânia, e relembra o grande trabalho feito desde 1987 para denunciar os crimes da era soviética. Esteve em Portugal há dias para participar no Meeting Lisboa, promovido pelo movimento católico Comunhão e Libertação.
A Memorial é fundada no final dos anos 1980, por um grupo inspirado por Andrei Sakharov, físico e famoso dissidente soviético. Recorda-se desse tempo inicial da ONG?
Sim, claro. Foi em 1987, há mais de 35 anos. Foi um grupo pequeno de 11 pessoas que iniciou a fundação da Memorial e eu estava entre eles, ainda era jovem. Mas temos de perceber que esse grupo pequenino só cristalizou uma ideia e um movimento bastante grande de muitas pessoas. Por isso, no fundo, eu sempre tenho certa vergonha de dizer que éramos nós, 11 pessoas, que começámos esse grande projecto. Na verdade, na União Soviética, naquela altura, todas as pessoas queriam saber a verdade sobre o passado recente e através das nossas publicações, através de vários artigos, nós andávamos a descobrir a verdade.
Estamos a falar do período já de Mikhail Gorbachev como líder soviético, em que há uma abertura do regime comunista.
Sim, certo, exacto. Foi uma resposta. Quando disseram às pessoas “sim, vocês podem falar”, as pessoas começaram a falar. Era muito parecido com a corrente de um rio onde aquelas 11 pessoas, nós, decidimos, ok, vamos buscar um barco e nesse barco vamos avançar pelo rio.
Havia mesmo liberdade na União Soviética de Gorbachev, ou as pessoas, até os fundadores da Memorial, ainda sentiam medo de falar?
Não, claro que não, não havia liberdade nenhuma e nós quando começámos a falar – eu ainda estava a fazer o doutoramento na universidade – vieram umas pessoas a dizer “porque é que tu estás a fazer essas coisas?”. E quando nós saímos à rua para recolher algumas assinaturas, a nossa ideia era essa, simples: não queremos repetir o passado. E escrevemos um texto sobre isso. Eu agora não tenho vergonha daquele texto, por acaso, mesmo visto de agora, tudo bem. Agora nós já conhecemos muito mais coisas, mas ainda percebemos que naquele texto foi tudo escrito certo. A ideia era muito simples – não queremos repetição do passado, em que todo o poder, todo o governo, eram criminosos, desde o início até ao fim.
Desde a Revolução Bolchevique?
Desde o primeiro dia de Revolução, sim. Desde 1917. Sofreram todos os níveis de sociedade e sobretudo as pessoas simples. E para não repetir o passado , temos que analisar isso tudo, temos que conhecer muito bem o nosso passado e temos que respeitar os direitos humanos. Ou seja, os criminosos têm que ser castigados e as vítimas têm de obter alguma compensação por aquele sofrimento que elas tiveram.
Então a Memorial queria desde o início revelar os crimes da União Soviética? Queria que as vítimas fossem identificadas e que os líderes que ordenaram os crimes fossem castigados?
Certo, exacto.
Construíram um arquivo, investigaram muito, para chegar a identificar esses crimes. Foram as famílias das vítimas que vos deram a conhecer o passado? Ou foram historiadores? Como é que fizeram o levantamento das vítimas e dos crimes ao longo dessas décadas?
Foi tudo, foi tudo. Mas temos de dar um passo trás na conversa: quando na altura falámos daqueles que têm direito de ter uma resposta por aqueles crimes, éramos muito suaves. Na altura dissemos “nós não queremos punir ninguém, só queremos identificar o nome deles para as pessoas saberem quem foi”.
Está a falar de identificar os culpados?
Sim, os culpados. Provavelmente foi um erro nosso, devíamos ter tomado uma posição mais dura e dizer, logo no início, que todos os culpados tinham de ser castigados. Mas no início nós só queríamos falar, dizer os nomes. Na altura pensámos que as pessoas já sofreram tanto, tiveram tantas repressões, que não era necessário mais e mais castigos.
No Ocidente, quando se pensa na história da União Soviética existe a ideia feita de que foi durante a era de Estaline que foram cometidos os piores crimes. Corresponde à verdade, ou há épocas comparáveis?
O período inicial foi péssimo, logo após a Revolução, porque era uma época sem qualquer tipo de direito.
Com Lenine vivo ainda, portanto.
Sim. É claro que o período da Guerra Civil foi horrível, como qualquer guerra civil no mundo. Porque pelo menos no período de Estaline nós tínhamos uma aparência de Direito, mas na altura logo após a Revolução e durante a Guerra Civil não tínhamos Direito nenhum. E o problema é que se sobre o período de Estaline nós ainda temos alguns documentos, os documentos dos outros períodos ninguém os guardou. Temos poucos materiais sobre o período logo quando os bolcheviques tomaram o poder. Não conseguimos encontrar os nomes das vítimas. Provavelmente este período vai ficar no escuro.
“É claro que o período da Guerra Civil foi horrível, como qualquer guerra civil no mundo. Porque pelo menos no período de Estaline nós tínhamos uma aparência de Direito, mas na altura logo após a Revolução e durante a Guerra Civil não tínhamos Direito nenhum.”
Fala-se muito do sofrimento na Ucrânia, no Holodomor, mas os bolcheviques na verdade não perseguiam etnias. Por exemplo, no Cazaquistão, também morreu muita gente com a sedentarização forçada e com a passagem de nómadas a sedentários. Ou seja os bolcheviques, na sua acção, afectaram todos os povos da União Soviética?
E na Rússia também, não só na Ucrânia ou no Cazaquistão. Eles estavam a perseguir os grupos sociais.
Não os grupos étnicos?
Não. Mas, por outro lado, também estão a perseguir os movimentos nacionais étnicos porque os bolcheviques sabiam que podiam ser muito perigosos. Não é por acaso que as pessoas que representavam, por exemplo, a cultura e literatura ucraniana foram mortas. Mas também foi a mesma coisa na Bielorrússia, com os tártaros, os judeus… Os bolcheviques eram internacionalistas, eles não se reviam em qualquer nação, a etnia não existia. Por isso, por exemplo, a frase que se diz agora que “os russos fizeram muitas repressões, mataram muitas pessoas e etcetera”… não eram russos, eram várias pessoas de vários grupos que se juntaram ao movimento bolchevique. Estaline era georgiano e Dzerzhinsky era polaco.
O trabalho da Memorial começa durante a Perestroika. Quando acaba a União Soviética em 1991 e a Rússia se torna independente , com Boris Ieltsin como presidente, o vosso trabalho torna-se mais fácil? Havia verdadeiramente liberdade na Rússia nos anos 1990?
Na verdade, nós sempre trabalhámos de modo normal porque o governo não queria saber nada de nós. E, como a vida mostrou agora, é sempre melhor trabalhar quando o governo não quer saber nada de ti.
O governo não vos achava importantes, não vos dava atenção?
Não, não dava. Mas claro que num país normal, para se trabalhar com um trauma como este da violência política, com a dor da tragédia que sabemos que o país sofreu durante décadas , é importante trabalhar em conjunto com o país, com os líderes, o governo. E, claro, eu posso dar aqui o bom exemplo da Alemanha, porque tudo aquilo que eles têm é o resultado da colaboração da sociedade com o governo. A sociedade manda e o governo faz.
Portanto, podemos dizer que tanto com Ieltsin como depois com Vladimir Putin, a Memorial até recentemente foi tolerada pelo poder russo?
As repressões afretaram milhões e milhões de pessoas durante décadas. E quase cada família. Provavelmente não foi o pai ou avô, mas sim algum familiar. Qualquer pessoa podia sofrer repressão, por isso no nosso país, todas as pessoas de todas as famílias, têm alguma coisa a ver com isso. Por isso nós recebemos sempre muito apoio e muita ajuda, das pessoas normais, simples, sem ser o governo ou o Estado.
Mas se a Memorial estuda sobretudo os chamados crimes do comunismo, porque é que o actual governo decidiu encerrar a Memorial?
Porque nós não estamos a falar só dos crimes do comunismo. Nós estamos a falar dos crimes feitos por um governo, um país, que perdeu o controlo. Claro que estamos a falar no nosso trabalho do país soviético, mas isso mostra que igualmente um país não soviético pode perder o controlo. E alertamos sempre que, por exemplo, cá em Portugal também pode acontecer. A nossa ideia é que é uma pessoa é superior ao Estado e o Estado tem de servir as pessoas e esta nossa ideia não coincide nada com as ideias de Putin.
O prémio Nobel da Paz que a Memorial recebeu no ano passado teve consequências internas positivas e negativas? Ou seja, deu-vos mais credibilidade, mais popularidade, mas ao mesmo tempo chamou a atenção das autoridades?
É simbólico, podemos dizer assim. Soubemos que íamos receber o prémio Nobel no dia 7 de Outubro e naquele dia eu estava em Tbilissi, na Geórgia, a abrir uma exposição da Memorial. Ia num táxi e telefonou-me o nosso director financeiro e disse-me “Vai lá ver as notícias.” E a primeira coisa em que pensei foi “aconteceu alguma coisa muito, muito má”. Porque quando telefona o director financeiro e diz “vai lá ver as notícias” não significa que vai acontecer alguma coisa boa. E nós naquele dia tivemos um processo judicial. E naquele dia a juíza tomou uma decisão que nós íamos ficar sem o nosso prédio em Moscovo, o nosso espaço, e aconteceu no mesmo dia. E claro que aquela decisão foi fora das leis, ignorando os nossos direitos, porque aquele prédio onde nós recolhemos o nosso arquivo, onde nós fazíamos os nossos encontros, era um prédio da memória, da preservação da memória dos direitos humanos. Nós comprámos aquele prédio. Era a nossa propriedade. Nós recolhemos dinheiro, foram coisas dadas por pessoas normais do mundo inteiro. Ele custou três milhões de dólares. Pode imaginar quão difícil foi recolher esse valor das pessoas. Nós comprámos assim, foi uma coisa oficial, pagámos todos os impostos, nunca tivemos nenhum tipo de dívidas. Depois foi como no ano de 1917, vem alguém e diz “Foi teu? Agora é meu, não tens direito nenhum.”
E o arquivo acumulado ao longo de anos, como é que resguardaram?
O arquivo pertence-nos, ainda.
Mas não nesse edifício original?
Claro que não. Mas graças a esse arquivo, conseguimos trabalhar numa versão digitalizada. E no próximo ano, é o nosso plano, queremos abrir o arquivo, o arquivo digitalizado, para o mundo todo.
A confirmação do encerramento da Memorial aconteceu dias depois do início da Guerra na Ucrânia, em finais de Fevereiro de 2022. A Memorial tem posição sobre a guerra?
Nós temos uma posição muito concreta que articulámos em 2014, quando a ONU qualificou como uma agressão a invasão da Crimeia. E claro que a guerra tem de terminar e claro que a Ucrânia tem de receber todas as compensações por causa do sofrimento que tem vivido. E por causa dessa posição nós fomos considerados agentes estrangeiros. E depois, por causa dessa posição, o Estado mandou imensas coimas para pagar, e no final nós não conseguimos. Eles mandaram imensas coimas, mas vieram pessoas simples, deram dinheiro e aos poucos e poucos conseguimos pagar, e depois eles fizeram a liquidação. E é interessante terem feito a liquidação uns dias depois da guerra começar.
No seu caso, que é directora-executiva da Memorial, está exilada? É perseguida judicialmente?
Eu não posso voltar à Rússia, não posso. Mas também não posso dizer que sou uma exilada, porque eles não me podem mandar fora, fui eu que tomei a decisão.
É um exílio voluntário?
Sim, mas sei que vou ser perseguida, não posso voltar. Estou pronta para passar tempo numa prisão mas posso ser muito mais útil fora da prisão. É melhor assim. Eu sou directora. E como eu sou directora, é muito fácil fazer-me um processo, não só político, mas também financeiro. Podem dizer que eu fiz uma coisa abusiva, porque lutei pelo nosso prédio. Porque fiz também um processo jurídico contra o Estado e um processo pelos salários dos funcionários da Memorial. Na Rússia nós tratámos de cada funcionário, cada trabalhador, atendemos a todas leis e tudo. Trabalhavam 50 pessoas na minha organização, mas fecharam a organização num momento só. E liquidaram as contas e tudo. Eu tinha, por exemplo, muitas mulheres que não receberam o salário, grávidas ou com crianças pequenas, e lá nas contas eu tinha todo o dinheiro para pagar, e iniciei um processo via judicial e perdi. E o que é que disse a juíza principal da Federação Russa? “Os funcionários recebiam bem quando estavam a trabalhar nessa organização, o que é que eles queriam?” Ou seja, temos leis, temos direitos, mas não são para todos. É um regime fascista.
Uma pergunta mais virada para o futuro. Acha que o povo russo ambiciona que não se repitam os erros do passado e sonha que se construa uma sociedade democrática?
Eu acho que a ideia principal que a sociedade russa tem agora, hoje em dia, é medo. Acho que a sociedade russa não sonha muito, mas se tiver algum sonho, o sonho principal é o fim da guerra. Mas não podemos pensar que é assim um sonho muito cor de rosa, “vamos acabar com a guerra”, muito pacífico, não é bem assim. É mais um sonho tipo ah, ok a guerra acaba e vai ficar tudo como era. Não é um sonho que percebe que nós russos vamos ter de pagar por tudo aquilo que foi feito.
Para concluir, podemos dizer, que no seu caso, estava mais optimista, mais esperançosa em 1987 sobre o seu país do que está agora?
Em alguns casos sim, em alguns casos não. Claro que eu era mais jovem, e claro que todos os jovens pensam “ai a vida é tão boa, vamos ter muitos anos para viver.” E eu sou uma pessoa que sabe mais ou menos como derrubar paredes. Por que para derrubar ou para atravessar as paredes nós só temos de ter duas condições: saber qual é o objectivo e não ver os obstáculos, e assim vamos conseguir. Mas agora estou mais optimista porque tenho a minha experiência. Por que eu encontrei muitas pessoas que ajudaram imenso nesta nossa luta. E na altura eu nem esperava estes encontros com vidas e destinos fantásticos. Conheci tantas pessoas corajosas, até conheci Andrei Sakharov, e claro que isso dá um certo optimismo.
– Se a estupidez pagasse imposto, esta gaja – a cientista – estaria toda carimbada…
🇵🇹 OPINIÃO
Meio milénio depois da sua morte, o português Fernão de Magalhães é descrito como “um violento colonialista” pela astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que defende que as duas galáxias-satélites anãs da nossa Via Láctea baptizadas em nome do navegador passem a ter outro nome.
Foi o jornal britânico The Guardian quem ontem deu a notícia, mas a ofensiva da professora Reyes contra Magalhães (ou Magellan, ou Magallanes, como também é conhecido mundo fora) surgiu antes num artigo na publicação especializada APS Physics, no qual é feito um apelo à União Astronómica Internacional – a entidade que nomeia os corpos celestes – para renomear as Nuvens de Magalhães (a Grande e a Pequena).
E a cientista salienta falar em nome de muitos astrónomos que “acreditam que nem os objectos, nem as instalações astronómicas devem ser nomeadas em honra de Magalhães, nem de qualquer outro com um legado colonialista violento”. No debate entra também a questão dos nomes que os povos do Hemisfério Sul davam aos corpos celestes antes da chegada dos europeus.
O próprio The Guardian lança questões pertinentes sobre a lógica por trás da proposta da astrónoma: o telescópio gigante baseado no Chile (e o outro a caminho) que se chama Magellan tem de ser renomeado? E como chamar ao Pacífico, baptizado pelo português quando ao serviço da coroa espanhola saiu da passagem que liga o Atlântico ao maior dos oceanos? E já agora, acrescenta o jornal, o Chile terá de dar outro nome ao célebre Estreito de Magalhães?
Magalhães, navegador que conheceu os mares do Oriente ao serviço de Portugal e depois, por zanga com D. Manuel I, ofereceu os serviços a Carlos V, foi morto nas Filipinas, quando se envolveu numa guerra local.
Foi o espanhol Juan Sebastian Elcano quem terminou a viagem, avançando para Ocidente pelo chamado “mar português” (assim definido pelo Tratado de Tordesilhas entre as coroas ibéricas) e completando em 1522 uma circum-navegação inédita, que não estava programada sequer pelo monarca espanhol.
O objectivo de Magalhães era atingir as ilhas das especiarias navegando por uma rota alternativa à do Cabo da Boa Esperança, ou seja por “mar espanhol”.
Entre 1519 e 1521, foi o seu conhecimento, a sua determinação e a sua liderança que permitiram à expedição navegar por mar desconhecido entre o Rio da Prata e as Filipinas, ou seja metade da circunferência da Terra.
“É graças a Magalhães que conhecemos a Terra tal como ela é”, afirmou-me em tempos, numa entrevista, o historiador José Manuel Garcia, autor da biografia Fernão de Magalhães – Herói, Traidor ou Mito: a história do primeiro homem a abraçar o mundo.
O americano Laurence Bergreen, autor do sucesso de vendas global intitulado Over the Edge of the World: Magellan”s Terrifying Circumnavigation of the Globe (publicado em Portugal como Fernão de Magalhães – Para Além do Fim do Mundo), falou-me talvez ainda com mais entusiasmo sobre o navegador do século XVI, pelo menos com uma admiração que certamente não pode ser vista como nacionalista.
Numa conversa em Nova Iorque, Bergreen surpreendeu-me quando contou que foi durante uma investigação para um livro sobre a história da NASA que começou a pensar em escrever sobre Magalhães.
A razão: cada vez que começava a falar com um cientista da agência espacial americana vinha à baila o nome do navegador português como inspirador, pelo seu espírito de aventura, mas igualmente pelo conhecimento científico em que baseou o planeamento de toda a expedição.
Há aqui, pois, um grande mistério para mim: grandes cientistas como James Garvin, da NASA, são capazes de olhar para Magalhães como um homem da sua época e dizer isto: “Magalhães era o que, na minha área, chamaríamos um grande engenheiro de missão aeroespacial. Ele encontrou uma forma de ir a sítios difíceis.
Hoje temos esses homens e mulheres a liderar as nossas missões a Marte, de volta à Lua, para construir excelentes telescópios, estudar a Terra e o Sol. Portanto, penso que os mesmos elementos de base estão lá”. Já a astrónoma Reyes vê apenas um “colonialista violento”.
Director interino do Diário de Notícias
DN
Leonídio Paulo Ferreira
13 Novembro 2023 — 00:15
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
– “… “No boletim do PS não estava lá a cara do António Costa”.”
E é verdade! quem votou nas últimas Legislativas, votou no Partido e não no secretário-geral! Mas tinha de ser feita a vontade a Sua Excelência para ver se consegue colocar o seu partido no poder! Contra-natura, eu, que deixei de votar PS desde há anos, em Março votarei PS para que a esquerda reaccionária e a extrema-direita fascista não consigam o almejado poder governativo.
🇵🇹 OPINIÃO
Os portugueses voltam a escolher um Governo, e a data marcada é 10 de Março de 2024. Serão as terceiras Legislativas em menos de cinco anos, depois das de 6 de Outubro de 2019 e das de 30 de Janeiro de 2022.
A grande diferença é que desta vez António Costa não estará a encabeçar o PS, como o próprio anunciou quando se demitiu esta semana. Outra diferença substancial é que o país vai de uma situação de maioria absoluta de um só partido para um muito provável Parlamento fragmentado, com dificuldade de encontrar uma solução governativa estável.
Para justificar a decisão de convocar eleições antecipadas, contra a vontade do PS e perante um Conselho de Estado partido ao meio, Marcelo Rebelo de Sousa escolheu vários argumentos, o principal a ser aquele em que considerou que havia uma legitimidade pessoal de Costa no cargo, o que não se aplicaria a uma outra figura socialista que fosse indigitada para completar a legislatura.
Costa não concordou, e deixou-o bem claro tanto dentro como fora de portas: “No boletim do PS não estava lá a cara do António Costa”.
O Presidente da República vencedor de duas eleições à primeira volta e o primeiro-ministro que pode reivindicar uma das raras vitórias por maioria absoluta da democracia portuguesa mostraram assim total oposição de ideias. Mas a situação e a Constituição deram a palavra final a Marcelo.
Os cinco meses até à ida às urnas serão assegurados por Costa, e com condições para ver o Orçamento do Estado para 2024 aprovado. Depois o futuro será o decidido pelos portugueses. O que agora acontece terá de ser avaliado em função também do que acontecer a 10 de Março.
Director interino do Diário de Notícias
DN
Leonídio Paulo Ferreira
10 Novembro 2023 — 00:02
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator