300: A vítima perfeita

 

🇵🇹 OPINIÃO

Não é o absurdo que impressiona, mas a tentativa de normalizar do absurdo. Com as suas decisões, três procuradores da República deitaram abaixo um governo, dissolveram a Assembleia da República e convocaram novas eleições.

E o que é absolutamente extraordinário é que o país se comporte, duas semanas depois, como se nada de incomum tivesse ocorrido. Que admirável poder este, o de transformar em normal a situação mais incomum.

Na verdade, reconheçamo-lo, é o jornalismo que decide o que é ou não é escândalo porque só ele tem poderes para criar escandalizados e, como sabemos, não há escândalo sem escandalizados. No final, dizem eles, criticar o Ministério Público é “atacar a justiça”. Toda a crítica é blasfémia.

Isto quanto ao jornalismo. Quanto à política, esta parece globalmente empenhada em seguir em frente, marchando em ordem unida e tentando regularizar o que nada tem de regular. A oposição, com óbvio interesse na crise, desenvolve a sua acção dizendo que se fechou um ciclo.

Como esse ciclo se encerrou, se de forma legitima ou ilegítima, parece não vir ao caso. Quanto ao senhor Presidente da República, que há muito esperava uma oportunidade, nem acredita no pretexto que lhe caiu do céu para fazer, sem custos, o que há muito desejava fazer.

Todavia, a conduta mais extravagante, o comportamento mais surpreendente, é o do próprio Partido Socialista que, sendo o alvo designado da operação, se comporta como a vítima perfeita – nada de contestação, nada de protestos. É tudo normal e é tudo aceitável, ainda que ontem tivesse maioria absoluta no Parlamento e hoje tenha umas eleições para disputar.

Dois dias depois da renúncia, o partido tem já o primeiro candidato ao lugar e, uns dias depois, apresenta-se o segundo. Não há tempo a perder. O líder que parte não tem sequer direito a velório. Uma semana depois dos acontecimentos, a notícia não é a demissão do governo, mas a disputa da liderança que ficou vaga.

E, no entanto, a operação não parece ter corrido bem. Apesar do esforço da política e do jornalismo para normalizar o que se passou, as primeiras sondagens mostram desconfiança.

O costumeiro aplauso às buscas e às prisões não foi unânime como costumava ser e a famigerada proclamação de confiança na justiça também já não é o que era. Desta vez não houve juízas a escrever nas suas redes sociais que “Há dias perfeitos. Hihihihi”. Pelo contrário, no jornalismo e na política apareceram uns quantos recalcitrantes.

A crítica ao que aconteceu foi maior que o esperado. Não, não correu bem. E, no entanto, bem vistas as coisas, o falhanço da operação ficou a dever-se a um detalhe, um pequeno detalhe que constitui a mais importante regra do manual de lawfare – escolher cuidadosamente o juiz.

Há nove anos, na operação marquês, vigarizaram a escolha do juiz e transformaram todo o inquérito num jogo de cartas marcadas (não, não é um ponto de vista, é uma decisão já transitada em julgado). Desta vez o processo desabou imediatamente porque o juiz não foi escolhido de forma fraudulenta e se comportou como estando acima das partes.

Arbitro: acima das partes. No final, azar dos Távoras (metáfora muito actual), o juiz conclui que não há indícios que sustentem a legitimidade da acção contra as pessoas. A diferença que faz um juiz.

Pior, ainda, a corporação parece que perdeu a cabeça. Uma procuradora destemida resolveu escrever o que pensa, enfrentando o poder sindical que há muito domina a instituição e reivindicando o regresso à ordem constitucional.

Sabe do que fala e sabe o que diz. A causa é simples, o prestígio da instituição reside na estrita defesa da legalidade democrática e no respeito das garantias constitucionais. Está dito e estando dito, soa como um novo acorde que tem o efeito de tudo aquilo que se ouve pela primeira vez.

A partir de agora, nada pode apagar o gesto. Alguém disse que a pior face do estalinismo é a perseguição à dissidência e também aqui, neste mundo judiciário tão habituado ao mando e à obediência, toda a discordância é herética.

A resposta ao artigo é a violência – um inquérito é imediatamente instaurado contra a desobediente. Há momentos em que os aparelhos se tornam absolutamente ridículos.

Enquanto isto, o Partido Socialista prossegue a sua campanha interna. Nada de distracção com o processo judicial. Nada de desvios de atenção. Nada de debater as buscas por motivos fúteis ou as detenções abusivas. Nada de discutir os limites do poder estatal ou as garantias constitucionais.

O Partido Socialista não tem tempo para discutir a liberdade. Há muito que ali deixou de existir a estética da rotura. O Partido Socialista é uma vítima bem-comportada. O Partido Socialista é uma vítima respeitosa. O Partido Socialista é a vítima perfeita.

Ericeira, 26 de Novembro de 2023

DN
José Sócrates
27 Novembro 2023 — 19:37


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 1 semana ago

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128: Nada como um dia depois do outro

 

🇵🇹 OPINIÃO

Veio a terça-feira, depois a quarta, e por aí fora. Há uma semana que o Partido Socialista é massacrado diariamente nas televisões, sendo apresentado como um partido dirigido por gente desonesta.

Desta vez a acção do Ministério Público derrubou um Governo, acabou com uma maioria absoluta e dissolveu a Assembleia da República. Em apenas quatro horas a vontade popular livremente expressa nas urnas foi substituída pela decisão de realizar novas eleições.

E, no entanto, o conselho dos estrategas do partido é que a luta é contra a direita, não contra o sistema judiciário. A caminho do cadafalso, os lábios dos socialistas entoam cânticos de confiança na Justiça. Esplêndido.

Mas desta vez há debate. Pelo menos há debate. Os procuradores expressam, apressadamente, o argumento de que todas as suspeitas têm de ser investigadas. Princípio da legalidade, dizem eles – investigar todas as suspeitas. E, no entanto, não é nada disso que está em causa. A investigação existe há quatro anos e ninguém protestou contra ela.

O que está em causa são os motivos para prender, para fazer buscas e para tornar públicas suspeitas que, podendo fundamentar a decisão de investigar, não justificam a violência sobre as pessoas. Isso, sim, é o que está em causa.

E, depois, o tempo. O ponto crítico nesta história é o tempo. Quando o Ministério Público decide prender, fazer buscas em casas particulares e tornar pública uma investigação, deve ter já na sua posse provas que considere suficientes da culpabilidade dos envolvidos. Deve estar pronto para acusar. Pois bem, não está.

Todos sabemos que esta investigação vai durar anos, que os suspeitos vão pedir a aceleração processual, que os prazos de inquérito não vão ser cumpridos e que os procuradores manterão os suspeitos devidamente presos na prisão da opinião pública durante o tempo necessário a que outro tempo político floresça.

Ainda assim, os socialistas acham que não podem passar os próximos quatro meses a discutir um processo judicial, mesmo que esse processo, esse processo em concreto, lhes tenha retirado ilegitimamente a maioria absoluta no Parlamento e o direito a governar.

E, talvez mais importante, mesmo que esse processo tenha detido cinco pessoas por motivos fúteis e arruinado a sua reputação pública. Parece que a declaração de princípios do PS ainda “considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos (…).”

Todavia, agora não há tempo para discutir a Constituição ou as garantias constitucionais. Os socialistas não têm tempo para discutir a liberdade. A armadilha mental da direita resulta em pleno – criticar os abusos do Ministério Público é “atacar a Justiça”, dizem eles.

Quanto aos socialistas, não querem perder tempo, Nem quatro meses, nem quatro dias, nem quatro horas. Alguém disse que “todos os que se calam são dispépticos”. Sim, este silêncio faz mal ao estômago.

Parece que nos processos de Moscovo, os condenados, já encostados à parede e prontos para enfrentar o fuzilamento, ainda gritavam viva Estaline. Aqui, nesta democracia, o Ministério Público presta contas a Deus, não aos homens, que se devem limitar a baixar a cabeça e expressar a sua confiança na Justiça.

Daqui a quatro meses haverá novo governo, haverá novos escândalos e haverá novas oportunidades para dizer que confiamos na Justiça. Nada de novo debaixo do sol – apenas a Justiça a funcionar.

Ericeira, 14 de Novembro de 2023

Antigo primeiro-ministro e principal arguido na Operação Marquês

DN
José Sócrates
15 Novembro 2023 — 01:03


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 3 semanas ago

 

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