Paulo Raimundo: “Felizmente não haverá uma maioria absoluta” ☭

 

PCP // PAULO RAIMUNDO // ASTROLOGIA

Trabalhou como carpinteiro, padeiro, operário, animador cultural e desde 2004 é funcionário do PCP. Tem 47 anos e esta semana assinala um ano nas funções de secretário-geral do Partido Comunista Português.

– Um verdadeiro “artista” para mais tarde recordar…

Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP
© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Neste primeiro ano de secretário-geral, o que é que ainda não fez e gostaria de ter feito?
Sabe que a minha eleição para secretário-geral do PCP foi na sequência também da conferência nacional que realizámos em Novembro do ano passado e diria que há muita coisa por fazer daquilo que concluímos que era preciso fazer. Já fizemos muito, mas não estamos satisfeitos, é preciso fazer mais.

Gostaria, por exemplo, de crescer mais nas sondagens?
Não, sabe que essa é daquelas coisas que não me tiram o sono, sinceramente, por razões objectivas.

Não as leva a sério?
As sondagens não têm tido propriamente muito bons dias. Acho que as sondagens revelam uma questão mais complexa, que é que parece que vivemos em dois mundos: o mundo, permita-me chamar assim, da bolha mediática e depois a vida real das pessoas. E as sondagens chocam nisso também. Porque ainda agora tivemos uma operação de sondagens de grande dimensão na Madeira, o PCP ia desaparecer e foi tudo ao contrário daquilo que as sondagens diziam. Ou, se quisermos falar nas sondagens de forma mais consistente, temos de voltar há quase dois anos , quando as sondagens garantiam que se estava praticamente à beira da vitória do PSD, e depois o resultado final das eleições foi a maioria absoluta do PS. Portanto, as sondagens valem o que valem, não menosprezamos, mas são só um instrumento de trabalho e de referência.

Sem ser as sondagens alguma coisa que não tenha feito neste ano e que estava na sua meta alcançar?
A vantagem de termos um trabalho colectivo, independentemente da responsabilidade própria do secretário-geral, é que somos todos responsáveis pelo aquilo que é feito. Estou muito descansado com isso. Há uma coisa que posso dizer: é que procurei fazer tudo o que esteja ao meu alcance para ajudar o meu partido e por essa via ajudar o meu país, que é por isso que cá andamos. Terei feito tudo bem? Certamente que não, isso é garantido.

O país vai a votos no dia 10 de Março, o que é, para si, um bom resultado da CDU, ou um médio resultado da CDU, ou um mau resultado da CDU?
Acho que resultados médios não vai haver, ou há bons ou há maus e estou muito convencido que vamos ter um bom resultado. Estamos a crescer, isso nota-se, não se nota nas sondagens, mas nota-se no dia a dia, na vida. Um bom resultado da CDU significa uma satisfação para quem está neste projecto, acima de tudo é fundamental até para o país andar para a frente e para a vida das pessoas melhorar, que é essa a questão fundamental. Falamos em eleições e de crise política que está instalada, mas há uma crise profunda na vida das pessoas que dura há muitos meses. São os salários, pensões, o aumento do custo de vida, o drama da habitação, as questões do Serviço Nacional de Saúde.

Também não tem médico de família?
Também não tenho médico de família, mas antes fosse só eu. Há um milhão e seiscentas mil pessoas sem médico de família e isso é que é preciso resolver. Estou muito confiante que vamos crescer, porque estamos aí todos os dias no terreno, vamos crescer do ponto de vista eleitoral.

Aumentar a representação no Parlamento?
Vamos aumentar a representação no Parlamento, vamos aumentar o número de votos e o número de percentagem, não tenho nenhuma dúvida sobre isso, e iremos tão longe quanto aquilo que o povo nos quiser dar de votos, com a garantia de que serão os deputados do PCP e da CDU que farão a diferença. Foi assim no passado, é assim hoje e será assim amanhã.

Uma questão que faz a diferença. Qual será a política de entendimentos do PCP com o PS após as próximas legislativas? Em 2015, aquela solução que saiu foi uma solução que surpreendeu muita gente. Que esclarecimentos é que o PCP tem a dar aos eleitores a propósito da política de alianças?
A solução de 2015 só podia ser uma surpresa, porque criou-se uma situação praticamente inédita no país, houve uma maioria que esteve disponível, não tanto para desenvolver um projecto político comum, porque isso nunca esteve presente, mas sim para travar o governo que estava lá anteriormente e que se preparava para continuar. Perante os resultados eleitorais, depois de quatro anos de um governo que, no nosso entender, estava a destruir a economia e a vida social do país, encontrou-se uma solução. Foi a solução de dizer: meus senhores, para travar este governo que aí está, só não são um governo se não se quiserem, foi o que dissemos ao Partido Socialista, sem nenhuma ilusão. Não tínhamos nenhuma ilusão sobre as opções de fundo do Partido Socialista. Aliás, sabíamos que era uma questão de tempo até o Partido Socialista encontrar as formas para se libertar desse constrangimento. Um constrangimento que não era apenas político, porque não foi apenas o arranjo político que se encontrou, foi também a pressão social que existia que obrigou o governo do Partido Socialista a fazer coisas que por sua vontade própria nunca faria. Na primeira oportunidade que tivesse ia libertar-se disso. E assim aconteceu.

E agora?
E agora temos um problema mais complexo, por uma razão simples: percebo que se queira apresentar a disputa que vamos ter do ponto de vista eleitoral e a batalha política num modelo tão simples que diga assim: há aqui um ajuntamento da esquerda e há um ajuntamento da direita. Ora, qual é o problema que não pode ser visto com essa simplicidade? O que vai estar em confronto não são esses dois eventuais ajuntamentos, o que vai estar em confronto são as opções políticas de fundo. É a opção, por exemplo, de criar as condições para que seja possível actualmente em Portugal os grupos económicos terem 25 milhões de euros de lucros por dia perante a vida que levam três milhões de trabalhadores que ganham até 1000 euros por mês. Sabemos que esta é a realidade que vai estar em confronto: são os 11 milhões de euros lucros por dia da banca e a vida desesperada de milhões de pessoas que fazem tudo e alguma coisa para aguentar a sua habitação. É o confronto entre a opção do Partido Socialista em pegar em oito mil milhões de euros do Orçamento do Estado do Serviço Nacional de Saúde e entregá-lo ao setor privado, porque é isto que o Partido Socialista propõe no Orçamento do Estado que está em vigor, enquanto um milhão e seiscentas mil pessoas estão sem médico de família.

Vamos então ser claros em relação aos nossos ouvintes que estão a acompanhar o seu raciocínio e perguntarão, tal como nós, se o PS formar um governo sem maioria, em que condições é que o PCP estará disposto a um acordo?
Vou tentar responder da forma mais clara para não fugir à clareza da questão que está colocada, mas acho que essa é a questão menor.

Dificilmente teremos novamente uma maioria absoluta.
Felizmente não haverá uma maioria absoluta.

Assim sendo, estará disponível o PCP para um acordo com o PS?
Vamos falar de conteúdos, vamos falar de políticas. Os senhores estão disponíveis para ser um acessório na política que o Partido Socialista está a desenvolver neste momento? Não. Estão disponíveis para manter este caminho de desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde? Dizemos não. Estão disponíveis para amparar uma opção do Partido Socialista que não só não travou como alimentou as forças mais reaccionárias no país? Não, é uma evidência que não. A questão de fundo é a questão dos conteúdos, porque actualmente fala-se da necessidade dos salários, fala-se da necessidade da habitação, etc., mas quais foram as opções?

E se esses conteúdos mudarem com esses três tópicos que acabou de enunciar, poderá estar disponível para um acordo?
Ainda há pouco tempo houve uma afirmação semelhante sobre o Orçamento do Estado, que ainda está em discussão, perguntavam-me se o Partido Socialista mudasse, nomeadamente em relação ao aumento dos salários, ao Serviço Nacional de Saúde e à habitação, quais seriam as nossas opções? Se o Partido Socialista mudar de política, estaremos a favor.

E se não mudar está aqui a traçar uma linha vermelha, é isso?
Não há alternativa, é como lhe digo.

Portanto, não está disponível para uma geringonça?
É como lhe digo, temos de tratar dos conteúdos, a forma tem muito interesse, mas a forma é dispensável se os conteúdos não serviram. Porque, por exemplo, por opção do Partido Socialista – e não é do Partido Socialista da facção A ou da facção B, é do Partido Socialista – temos um Orçamento do Estado que é um instrumento político importante, que decidiu entregar 1600 milhões de euros em benefícios fiscais aos grupos económicos; um Orçamento do Estado que aumenta ainda mais as medidas de redução para o pagamento efectivo do IRC, mais 200 milhões em cima do valor que já havia para as parcerias públicas ou privadas ; ao mesmo tempo, é o mesmo Orçamento do Estado do Partido Socialista que se prepara para chumbar as nossas propostas, por exemplo, na redução significativa do IRS para quem trabalha e trabalhou-me a vida inteira; na redução do IVA para a electricidade; para as telecomunicações ou para o gás. Aqui é que se vêm as opções de fundo.

Nesta espécie de linha vermelha que acabou de passar aos microfones da TSF e do Diário Notícias, tem mais esperança de que essa linha vermelha fique esbatida com José Luís Carneiro ou com Pedro Nuno Santos?
Compreenderá que não farei nenhum comentário sobre as disputas internas do Partido Socialista, porque são daquelas coisas que também não gostamos que se metam na nossa casa. Ainda que, se me permite, estamos a falar de pessoas em concreto que tiveram responsabilidades no Governo, um deles ainda tem. Participaram na grande operação de chantagem e pressão que levou, como sabemos, a uma não aprovação do Orçamento e a uma maioria absoluta. Essas duas individualidades fizeram parte desse processo. Isto tem significado porque vai ao encontro daquilo de que estávamos a falar há pouco: o Orçamento do Estado, há um ano e meio, foi chumbado. O Partido Socialista fez pressão, fez chantagem, o Presidente da República ajudou e fomos para eleições antecipadas. Fomos para eleições antecipadas porque o Partido Socialista decidiu não ter em conta propostas que fizemos, em particular as que dizem respeito ao Serviço Nacional de Saúde. O Partido Socialista chumbou, não aceitou que se criassem condições financeiras para se fixar mais médicos e mais enfermeiros, para que se valorizassem as carreiras, para que se criassem condições de reforço do Serviço Nacional de Saúde. Essa é uma das razões fundamentais, entre outras, para que o orçamento fosse chumbado. Veio a vitimização, as eleições antecipadas, a maioria absoluta e hoje temos um enorme problema no Serviço Nacional de Saúde. Não posso afirmar que estaria completamente resolvido se tivessem sido aprovadas as nossas propostas, mas tenho a certeza que não chegaria ao caos em que estamos.

Por exemplo, é imprescindível, do seu ponto de vista e para eventuais conversas futuras, que se suspenda já a privatização da TAP?
Isso é um instrumento.

É um instrumento, ou seja, é imprescindível que se suspenda?
Claro, mas não é só a TAP. É a TAP e a EFACEC. Então, temos uma empresa onde o Governo, o Estado, meteu milhões e milhões de euros, limpou a empresa, capitalizou-a, garantiu que ela tinha condições para até recuperar encomendas, além de ser uma das mais importantes empresas no seu sector a nível mundial e depois de tudo limpinho, o Governo pega nela e dá ao investidor alemão?

De 2014 a 2019 vigorou aquela solução que depois ficou chamada de geringonça, sei que o PCP não é grande adepto do nome, mas enfim, é o que temos. Que aspectos positivos dessa solução é que podem ser retomados, mas também que aspectos negativos não podem ser repetidos?
Primeiro aspecto positivo, e esta talvez seja a questão fundamental que permitiu essa solução, foi o objectivo comum de tirar do poder o governo do PSD e do CDS, um governo que estava a destruir o país do ponto de vista económico e social. Segunda questão, foi procurar um caminho que recuperasse todos os direitos que tinham sido roubados durante aqueles quatro anos trágicos para a nossa sociedade. Foi um caminho difícil, porque podemos dizer que do ponto de partida estávamos todos em de acordo com essa ideia, mas do ponto de chegada nem sempre foi assim. Terceira questão ou terceira possibilidade, é ir mais longe do que a recuperação. Vou dar três exemplos concretos: gratuitidade dos manuais escolares, proposta por nós, o PS recusou, insistimos, e naquele quadro foi possível avançar. A questão do passe [social único], da redução, que é uma medida estruturante importantíssima, ficou aquém ainda daquilo que era necessário, mas importantíssima, foi a mesma coisa: o PS não quis, forçámos e lá foi possível concretizar. Até coisas mais miudinhas, mas com importância como, por exemplo, a recuperação dos feriados que tinham sido retirados. São aspectos positivos que marcam a correlação de forças que existia. Quanto a aspectos negativos, o Partido Socialista teve sempre um pé dentro e um pé fora desse caminho. E na primeira oportunidade, e certamente nenhum de nós se esquece da expressão, que até ali não era muito badalada, que são as cativações, mas na primeira oportunidade que teve para se ver livre desse constrangimento, viu-se livre. No fundo, o aspecto mais negativo é que na primeira oportunidade que o Partido Socialista tivesse, já sabíamos que eles iam procurar sair desse caminho. E assim foi.

Sente que quando fala com os militantes do PCP, com os seus camaradas, a resistência a entendimentos com o PS aumentou muito depois da crise que levou às últimas eleições legislativas?
Não. Acho que esse ambiente e esse clima não existe e não se coloca por uma razão simples, é porque aquilo que vai determinar o que vai acontecer depois do dia 10 de Março é a força que o PCP e a CDU tiverem. É nisso que os meus camaradas e amigos estão concentrados, é em fazer crescer o PCP e a CDU, porque isso é a garantia de podermos abrir um caminho de mais salários e mais pensões. É isso que abre o caminho para responder aos problemas prementes das questões da habitação que estão aí. É isso que abre o caminho para garantir as condições para que o Serviço Nacional de Saúde responda aos problemas que é preciso responder. Até diria mais, se me permite, diria que até é do interesse dos democratas, dos patriotas e até de socialistas, que o PCP e a CDU reforcem a sua votação. Disso não tenho dúvida nenhuma. E porquê? Porque isso é a única garantia que têm de que a sua vida também pode melhorar. Podemos dizer assim uma frase feita, mas que tem muito conteúdo, porque quando o PCP e a CDU crescem, a vida das pessoas melhora, o país avança e isso é experiência provada.

Além do PCP, vamos também falar do Bloco. Muitas vezes não percebemos as diferenças substantivas entre os dois partidos, as posições dos dois partidos. Sente que um dia poderá chegar um tempo em que os dois partidos criam uma espécie de frente eleitoral comum? Isso poderá vir a ser possível ou descarta em absoluto essa hipótese?
Não podemos dizer nunca, mas acho que isso não se coloca, acho que nem se coloca agora, nem se coloca no futuro próximo. Até porque, lá está, cada um tem a sua história, a sua tradição, as suas opções e as suas opiniões sobre as diferentes matérias e os diferentes caminhos a seguir. Agora, há uma coisa que é evidente, que é que talvez na grande maioria das questões em concreto estamos de acordo.

Se estão de acordo, porque é que não juntam?
Porque também temos questões em que estamos em desacordo.

Qual será a principal?
Acho que isso prende-se no concreto, nas questões concretas, nas opções concretas, nem queria, nem me parecia que fosse adequado estar a aproveitar este espaço para abrir essa frente. Acho que não interessa, acho que o Bloco tem o seu caminho próprio, tem as suas opções, as suas propostas, as suas ideias e, portanto, deve caminhar sobre elas, nós temos o nosso caminho próprio e estamos muito confiantes de que vamos caminhar sobre elas.

Voltando ao PS. Cavou-se um fosso muito grande, recentemente, entre o PS e o PCP, até por causa das posições de uns e de outros relativas à guerra na Ucrânia, relativas agora à guerra do Israel com o Hamas. Pode haver um entendimento entre os dois partidos em que essa questão seja posta entre parênteses, digamos, não seja valorizada, ou esse problema é um obstáculo poderosíssimo a que se entendam?
Percebo a pergunta e percebo o interesse, até no quadro em que estamos, mas acho que essa é a questão menor. Talvez esteja a ser um bocadinho presunçoso, peço desculpa, mas acho que é daquelas coisas que não interessa muito às pessoas, porque as pessoas confrontam-se com problemas muito graves. Como dizia há pouco, e volto a repetir, estamos de facto numa crise política há uma semana, mas a vida das pessoas está em crise há muitos meses e as pessoas precisam de resposta aos seus problemas hoje. E é a isso que é preciso responder. Ainda ontem estive no piquete, na concentração dos médicos ali em Santa Maria, e a evidência é essa. O ministro da Saúde decidiu unilateralmente acabar com as negociações, alegou instabilidade, mas é uma falácia porque o Governo está em funções e é preciso responder aos problemas dos médicos, respeitá-los, aumentar-lhes os salários e, consequentemente, valorizar e responder aos utentes, que é a questão fundamental. É isso que é preciso resolver. Diferenças entre o PCP e o Partido Socialista há desde que existe o Partido Socialista e não há nenhuma dúvida de que continuarão a existir. Dificilmente deixarão de existir.

Apesar dos portugueses estarem preocupados com os salários, como diz e não só, obviamente a guerra no Médio Oriente entra pelos olhos adentro, pelas televisões, pelas rádios, tudo isso, e faz parte do nosso dia a dia, e no primeiro comunicado do PCP sobre o 7 de Outubro em Israel, a palavra Hamas nem sequer é mencionada. Não se lia uma palavra que fosse de condenação àquela organização, independentemente do contexto ou não, a verdade é que estamos perante um horror. Porque é que se repetiu a cena da primeira reacção, não condenar, e depois o secretário-geral do PCP vir esclarecer e dizer, como disse, que afinal condena? Há tensões que permanecem dentro do PCP relativamente a estas questões?
Não.

Porque é que não foi claro logo?
Não podemos tirar o contexto do conflito, porque quando tiramos o contexto do conflito, estamos, na nossa opinião, a olhar de forma muito parcial para as questões. E diria que quem insistiu na ideia, na minha opinião errada, de que este conflito começou no dia 7 de Outubro não está a ser honesto. E essa foi a grande preocupação, ou seja, dizer que aquilo que aconteceu não devia ter acontecido, mas aquilo não aconteceu de forma isolada. Até conheço uma pessoa que foi fortemente criticada por ter dito exactamente, nos mesmos termos, aquilo que temos dito.

Mas se a primeira reacção não condena e depois o secretário-geral vem condenar, parece um pouco dar o dito por não dito. Qual é a divergência que há dentro do PCP que justifica essa posição?
Até acrescentei na declaração que fiz que não só condenávamos aqueles atentados terroristas, não só condenei isso, como até acrescentei a ideia que é que aquilo não ajuda a causa do povo palestiniano. Agora, isso não justifica o que está a acontecer na Palestina. E se me permitem, percebo porque é que se apresenta sucessivamente o conflito entre Israel e o Hamas, porque isso permite justificar duas coisas: primeiro, permite justificar o massacre que está em curso contra o povo palestiniano. Não há nenhuma dúvida sobre isso, penso que isso é uma evidência. E, portanto, todo o massacre que se faz, todo o bombardeamento dos hospitais, ambulâncias, a morte das crianças, a morte de civis, os milhares de mortos civis, que não sabemos quantos são já, mas são sempre justificados porque há um combate contra o Hamas. E permite que outros durmam de forma hipócrita e cínica, descansados, porque como se está a combater o Hamas, tudo serve de justificação. Ora, isso não é assim.

Mas não está a dizer que não há terrorismo naquela situação?
Não. E até digo mais: não só houve actos terroristas por parte do Hamas, como estamos perante uma política de terrorismo de Estado de Israel face ao povo palestiniano. Sabe que nós levámos muita porrada, falámos nisto há seis meses, pelas nossas posições sobre a guerra na Ucrânia, mas o que é engraçado ver é como é que os critérios mudam de um dia para o outro. Como é que os critérios daqueles que defendem armas para a Ucrânia, mais guerra na Ucrânia, mais na defesa do território, no exprimir da ideia da invasão, mas agora parece que os critérios mudaram completamente relativamente às questões da Palestina. Não acompanho a ideia de que estamos perante um conflito entre Israel e o Hamas, acho que isso serve para justificar o massacre que está em curso.

Vamos voltar à realidade nacional. Compreende que o primeiro-ministro se tenha demitido? Faria o mesmo?
Faria o mesmo, claro.

Mas acumulam-se sinais de que esta operação Influencer é fraca nos indícios, não é? E isso viu-se factualmente, não é um comentador a dizer isto, mas na forma como o juiz de instrução quase que não ligou às medidas de coação fortíssimas que o Ministério Público pedia. E o primeiro-ministro demitiu-se. Agora, vistas as coisas, precipitou-se ou não? E acha que a senhora procuradora-geral deve dar esclarecimentos?
Como disse, se estivesse nos sapatos do primeiro-ministro, certamente teria feito o mesmo. Porque acho que só não sente quem não é filho de boa gente e, portanto, nem me consigo imaginar numa situação daquelas. De repente, ver o meu nome envolvido num processo com aquela dimensão, fosse lá qual fosse. Acho que é normal, acho que foi uma atitude digna. A opinião que temos é que o que levou a essa sua decisão desse elemento central, fundamental, foi também um certo desgaste que o governo estava a sofrer, isso não há dúvida, até pela questão de não responder aos problemas que as pessoas vivem e a contestação estava a aumentar.

E a procuradora-geral tem de dar esclarecimentos?
Há uma questão, e vou responder à sua pergunta, mas permita-me que passe a esta introdução. Há uma questão que referimos logo no dia 7 de Novembro e que tivemos oportunidade de transmitir ao Sr. Presidente da República, que é, a bem da justiça, a bem da sociedade e a bem da democracia, é preciso que este caso vá até ao fim o mais depressa possível, dentro dos limites dos prazos da justiça, que às vezes são um bocadinho mais longos do que aquilo que gostaríamos. Mas que vá até ao fim no seu esclarecimento total e que se tirem todas as conclusões e responsabilidades que aí decorrem para todos os que estão envolvidos.

Ou seja, para ministros que estejam envolvidos ou venham a estar, para os políticos e também para os próprios intervenientes judiciais.
Não há casos de justiça mais importantes que outros, ou melhor, não deveria haver casos de justiça mais importantes que outros, nem uns que exigissem mais rapidez que outros, mas isto não é um caso qualquer. Estamos a falar de acusações de grande dimensão e precisam de ser clarificadas.

Mas a procuradora-geral deve retirar consequências das conclusões deste processo, é isso que quer dizer?
Acho que a senhora Procuradora-Geral da República deve empenhar-se dentro dos poderes que tem, não mais do que aqueles que tem, para contribuir para que o mais depressa possível este processo vá todo até ao fim, seja todo esclarecido, e que daí retirem todas as conclusões que daí decorram.

Sente que estamos a chegar àquele ponto em que os decisores políticos já não são escolhidos pelos eleitores, mas passaram a ser, de certa forma, escolhidos pelos procuradores?
Não, não pode ser.

Há quem fale de um golpe de Estado constitucional.
Sim, mas não só não acompanho essa afirmação como estou certo de que não estamos nessa situação. Mal de nós se estivéssemos nessa situação.

Vamos falar também de Mário Centeno, um nome que foi apontado para primeiro-ministro. O Governador do Banco de Portugal tem condições, na sua opinião, para continuar no cargo que desempenha hoje?
Acho que tem por duas razões, uma formal e outra informal, diria assim: a formal é porque terá havido uma reunião do Conselho de Ética do Banco de Portugal, que analisou todo esse processo e que, pelos vistos, considerou que não havia nenhum problema ou que não havia nenhum problema de gravidade tal, que levasse a que tivesse de se demitir. Essa é uma questão. A segunda, ainda do ponto de vista formal, é que todos conhecemos o Dr. Mário Centeno, as suas afinidades políticas, e, portanto, uma coisa é a pessoa em concreto e as opções políticas que tem e outra coisa é a instituição. O facto de eu ser comunista não faz com que se eu estivesse à frente do Banco de Portugal, o Banco de Portugal tivesse em causa a sua independência. Portanto, não é o caso do Dr. Mário Centeno. E talvez a questão mais simples, é que esse problema não é um problema, porque esse problema nunca chegou a existir a partir do momento em que o Sr. Presidente, na quinta-feira passada, decidiu aquilo que decidiu. Quando o Sr. Presidente decidiu anunciar ao país que ia convocar eleições, ou seja, garantir que o orçamento era aprovado, dissolver o Governo e convocar eleições, esse assunto passou a ser um não assunto.

E o Presidente fez bem nessa decisão que tomou?
O Presidente, com os dados que tinha, penso que aquilo que foi ouvindo, acho que fez bem.

Senti que houve um ziguezague na posição do PCP, porque o PCP na véspera disse que queria soluções e não eleições. E no dia seguinte disse que queria eleições e já, sem sequer ter de se aprovar o Orçamento.
Não, não houve. Houve foi falta de jeito da minha parte e explico já porquê: houve uma declaração, em que apontámos qual era a situação e que perante essa situação era preciso uma clarificação. Uma das saídas para essa clarificação, seriam as eleições. Foi isto que afirmámos. Depois, a uma pergunta de um colega vosso, que questionava se o país na situação em que estava precisava de eleições, respondi que não, que o que o país precisava não era de eleições, precisava era de soluções para os salários e para as pensões. Foi nesse seguimento. Tirou-se uma parangona dessa minha afirmação, que foi o que disse, não houve uma extrapolação em relação aquilo que disse.

Há uma segunda parangona, que é o secretário-geral do PCP a admitir que fez asneira.
Mas isso não tem problema nenhum.

Mas as eleições deveriam ser mais cedo?
As eleições deviam ser mais cedo, até porque há um ano e meio atrás tivemos um paralelismo muito grande com este calendário. Tivemos um orçamento que não foi aprovado no final de Novembro, uma Assembleia da República que foi dissolvida no seguimento disso e tínhamos o PSD nessa altura em processo de eleições internas e de arrumação da casa. O paralelismo é muito grande.

A quem é que serve este adiamento até Março?
Sinceramente, não vejo particulares beneficiários desse adiamento. Para já, há dois que não são beneficiários, que é a clareza e a rapidez da resposta aos problemas das pessoas. Esses são certamente os não beneficiários.

O aumento do IUC vai cair. Isso pode levar o PCP a mudar o sentido do voto ou não?
Vou ser claro: no dia 28 de Outubro, tivemos um encontro nacional do PCP sobre as questões da protecção civil. Há várias coisas com que nos preocupamos, com os bombeiros, com a protecção civil, e na intervenção final que fiz nesse encontro, houve uma coisa que afirmei e isso pode ser comprovado: o IUC vai cair, o governo vai deixar cair esta medida, disse eu. É injusta e o governo vai deixar cair. Foi uma lebre. Enquanto andámos aqui a discutir um mês o IUC e a injustiça do IUC, os 1600 milhões de benefícios fiscais para grupos económicos ninguém falou sobre isso, os mais 200 milhões de euros para as PPP ninguém falou sobre isso e, portanto, o IUC foi uma lebre. Já sabíamos, estava na cara que ia cair. Caiu pela injustiça, caiu pelo protesto, já sabíamos que era uma lebre de corrida. E o Governo pensava, porque agora o IUC caía e o orçamento passava a ser o mais à esquerda de sempre. Devia ser isso que o Governo pensava, mas engana-se.

Vamos falar também de europeias para terminarmos esta entrevista. Quando é que vamos saber quem é o cabeça de lista do PCP?
A situação de há uma semana baralhou esse esquema todo.

Atrasou a definição?
Não, não. É claro que estamos a pensar nisso, estamos a trabalhar nesse caminho e há calendários que se sobrepuseram e, portanto, é essa a grande alteração.

Mas há um papel em branco agora ou continuam lá dois ou três nomes e um deles está na sua cabeça?
Não, pelo menos têm de estar 25, porque a lista tem 25.

Vai ser o João Ferreira outra vez?
Já dei aqui um furo hoje, admitindo um tiro ao lado que dei, portanto, não me exijam mais um furo desse ponto de vista. Há uma coisa que posso garantir: da mesma forma que estamos muito confiantes e determinados para as legislativas que vão ser antecipadas, a própria campanha, a própria expressão e a composição da lista do Parlamento Europeu é no sentido de confiança e dinâmica.

Não nos dizendo quem é o cabeça de lista, pergunto-lhe sobre a abstenção, uma vez que vamos ter eleições em Março e depois em Junho. Teme que as europeias tenham realmente o pior resultado de sempre em abstenção?
Temos tido o ato eleitoral para o Parlamento Europeu sempre marcado por um grande nível de abstenção. Está ligado também de um certo afastamento das pessoas. Se cada uma das forças políticas em presença contribuir para a mobilização, para o voto, para a participação e para o esclarecimento, certamente que estaremos melhores.

Passou um ano como secretário-geral do Partido Comunista Português. Uma meta para o próximo ano, para o seu segundo ano de actividade?
Do ponto de vista eleitoral, para o ano é um ano desafiante, não estávamos a contar, mas vamos ter legislativas em Março, Parlamento Europeu em Junho e durante o próximo ano, ainda sem data naturalmente, as eleições nos Açores. E, portanto, além de querermos crescer para a Assembleia da República, além de querermos crescer para o Parlamento Europeu, queremos votar à Assembleia Regional dos Açores. Lá está, de forma muito genuína digo-lhes: para nós tem muita importância voltar, do ponto de vista político, etc., mas acima de tudo tinha uma importância estratégica para o povo açoriano, que bem merecia que a CDU voltasse ao Parlamento Regional.

DN
João Pedro Henriques (DN) e Rosália Amorim (TSF)
17 Novembro 2023 — 07:00


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Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 3 semanas ago

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“A sociedade russa não sonha muito, mas se tiver algum sonho é o fim da guerra”

 

ENTREVISTA // ELENA ZHEMKOVA

Fundadora e directora-executiva da Memorial, uma ONG premiada com o Nobel da Paz em 2022, Elena Zhemkova critica o encerramento por ordem do governo russo, condena a invasão da Ucrânia, e relembra o grande trabalho feito desde 1987 para denunciar os crimes da era soviética. Esteve em Portugal há dias para participar no Meeting Lisboa, promovido pelo movimento católico Comunhão e Libertação.

A Memorial é fundada no final dos anos 1980, por um grupo inspirado por Andrei Sakharov, físico e famoso dissidente soviético. Recorda-se desse tempo inicial da ONG?
Sim, claro. Foi em 1987, há mais de 35 anos. Foi um grupo pequeno de 11 pessoas que iniciou a fundação da Memorial e eu estava entre eles, ainda era jovem. Mas temos de perceber que esse grupo pequenino só cristalizou uma ideia e um movimento bastante grande de muitas pessoas. Por isso, no fundo, eu sempre tenho certa vergonha de dizer que éramos nós, 11 pessoas, que começámos esse grande projecto. Na verdade, na União Soviética, naquela altura, todas as pessoas queriam saber a verdade sobre o passado recente e através das nossas publicações, através de vários artigos, nós andávamos a descobrir a verdade.

Estamos a falar do período já de Mikhail Gorbachev como líder soviético, em que há uma abertura do regime comunista.
Sim, certo, exacto. Foi uma resposta. Quando disseram às pessoas “sim, vocês podem falar”, as pessoas começaram a falar. Era muito parecido com a corrente de um rio onde aquelas 11 pessoas, nós, decidimos, ok, vamos buscar um barco e nesse barco vamos avançar pelo rio.

Havia mesmo liberdade na União Soviética de Gorbachev, ou as pessoas, até os fundadores da Memorial, ainda sentiam medo de falar?
Não, claro que não, não havia liberdade nenhuma e nós quando começámos a falar – eu ainda estava a fazer o doutoramento na universidade – vieram umas pessoas a dizer “porque é que tu estás a fazer essas coisas?”. E quando nós saímos à rua para recolher algumas assinaturas, a nossa ideia era essa, simples: não queremos repetir o passado. E escrevemos um texto sobre isso. Eu agora não tenho vergonha daquele texto, por acaso, mesmo visto de agora, tudo bem. Agora nós já conhecemos muito mais coisas, mas ainda percebemos que naquele texto foi tudo escrito certo. A ideia era muito simples – não queremos repetição do passado, em que todo o poder, todo o governo, eram criminosos, desde o início até ao fim.

Desde a Revolução Bolchevique?
Desde o primeiro dia de Revolução, sim. Desde 1917. Sofreram todos os níveis de sociedade e sobretudo as pessoas simples. E para não repetir o passado , temos que analisar isso tudo, temos que conhecer muito bem o nosso passado e temos que respeitar os direitos humanos. Ou seja, os criminosos têm que ser castigados e as vítimas têm de obter alguma compensação por aquele sofrimento que elas tiveram.

Então a Memorial queria desde o início revelar os crimes da União Soviética? Queria que as vítimas fossem identificadas e que os líderes que ordenaram os crimes fossem castigados?
Certo, exacto.

Construíram um arquivo, investigaram muito, para chegar a identificar esses crimes. Foram as famílias das vítimas que vos deram a conhecer o passado? Ou foram historiadores? Como é que fizeram o levantamento das vítimas e dos crimes ao longo dessas décadas?
Foi tudo, foi tudo. Mas temos de dar um passo trás na conversa: quando na altura falámos daqueles que têm direito de ter uma resposta por aqueles crimes, éramos muito suaves. Na altura dissemos “nós não queremos punir ninguém, só queremos identificar o nome deles para as pessoas saberem quem foi”.

Está a falar de identificar os culpados?
Sim, os culpados. Provavelmente foi um erro nosso, devíamos ter tomado uma posição mais dura e dizer, logo no início, que todos os culpados tinham de ser castigados. Mas no início nós só queríamos falar, dizer os nomes. Na altura pensámos que as pessoas já sofreram tanto, tiveram tantas repressões, que não era necessário mais e mais castigos.

No Ocidente, quando se pensa na história da União Soviética existe a ideia feita de que foi durante a era de Estaline que foram cometidos os piores crimes. Corresponde à verdade, ou há épocas comparáveis?
O período inicial foi péssimo, logo após a Revolução, porque era uma época sem qualquer tipo de direito.

Com Lenine vivo ainda, portanto.
Sim. É claro que o período da Guerra Civil foi horrível, como qualquer guerra civil no mundo. Porque pelo menos no período de Estaline nós tínhamos uma aparência de Direito, mas na altura logo após a Revolução e durante a Guerra Civil não tínhamos Direito nenhum. E o problema é que se sobre o período de Estaline nós ainda temos alguns documentos, os documentos dos outros períodos ninguém os guardou. Temos poucos materiais sobre o período logo quando os bolcheviques tomaram o poder. Não conseguimos encontrar os nomes das vítimas. Provavelmente este período vai ficar no escuro.

“É claro que o período da Guerra Civil foi horrível, como qualquer guerra civil no mundo. Porque pelo menos no período de Estaline nós tínhamos uma aparência de Direito, mas na altura logo após a Revolução e durante a Guerra Civil não tínhamos Direito nenhum.”

Fala-se muito do sofrimento na Ucrânia, no Holodomor, mas os bolcheviques na verdade não perseguiam etnias. Por exemplo, no Cazaquistão, também morreu muita gente com a sedentarização forçada e com a passagem de nómadas a sedentários. Ou seja os bolcheviques, na sua acção, afectaram todos os povos da União Soviética?
E na Rússia também, não só na Ucrânia ou no Cazaquistão. Eles estavam a perseguir os grupos sociais.

Não os grupos étnicos?
Não. Mas, por outro lado, também estão a perseguir os movimentos nacionais étnicos porque os bolcheviques sabiam que podiam ser muito perigosos. Não é por acaso que as pessoas que representavam, por exemplo, a cultura e literatura ucraniana foram mortas. Mas também foi a mesma coisa na Bielorrússia, com os tártaros, os judeus… Os bolcheviques eram internacionalistas, eles não se reviam em qualquer nação, a etnia não existia. Por isso, por exemplo, a frase que se diz agora que “os russos fizeram muitas repressões, mataram muitas pessoas e etcetera”… não eram russos, eram várias pessoas de vários grupos que se juntaram ao movimento bolchevique. Estaline era georgiano e Dzerzhinsky era polaco.

O trabalho da Memorial começa durante a Perestroika. Quando acaba a União Soviética em 1991 e a Rússia se torna independente , com Boris Ieltsin como presidente, o vosso trabalho torna-se mais fácil? Havia verdadeiramente liberdade na Rússia nos anos 1990?
Na verdade, nós sempre trabalhámos de modo normal porque o governo não queria saber nada de nós. E, como a vida mostrou agora, é sempre melhor trabalhar quando o governo não quer saber nada de ti.

O governo não vos achava importantes, não vos dava atenção?
Não, não dava. Mas claro que num país normal, para se trabalhar com um trauma como este da violência política, com a dor da tragédia que sabemos que o país sofreu durante décadas , é importante trabalhar em conjunto com o país, com os líderes, o governo. E, claro, eu posso dar aqui o bom exemplo da Alemanha, porque tudo aquilo que eles têm é o resultado da colaboração da sociedade com o governo. A sociedade manda e o governo faz.

Portanto, podemos dizer que tanto com Ieltsin como depois com Vladimir Putin, a Memorial até recentemente foi tolerada pelo poder russo?
As repressões afretaram milhões e milhões de pessoas durante décadas. E quase cada família. Provavelmente não foi o pai ou avô, mas sim algum familiar. Qualquer pessoa podia sofrer repressão, por isso no nosso país, todas as pessoas de todas as famílias, têm alguma coisa a ver com isso. Por isso nós recebemos sempre muito apoio e muita ajuda, das pessoas normais, simples, sem ser o governo ou o Estado.

Mas se a Memorial estuda sobretudo os chamados crimes do comunismo, porque é que o actual governo decidiu encerrar a Memorial?
Porque nós não estamos a falar só dos crimes do comunismo. Nós estamos a falar dos crimes feitos por um governo, um país, que perdeu o controlo. Claro que estamos a falar no nosso trabalho do país soviético, mas isso mostra que igualmente um país não soviético pode perder o controlo. E alertamos sempre que, por exemplo, cá em Portugal também pode acontecer. A nossa ideia é que é uma pessoa é superior ao Estado e o Estado tem de servir as pessoas e esta nossa ideia não coincide nada com as ideias de Putin.

Natalia Pinchuk, em representação do marido, o opositor bielorrusso preso, Ales Bialiatski; Yan Rachinsky, presidente da ONG russa Memorial; e Oleksandra Matviichuk, do Centro Ucraniano para as Liberdades Cívicas. O trio posa junto na cerimónia de entrega no Prémio Nobel da Paz em Oslo, a 10 de Dezembro de 2022. Não foi uma coincidência a decisão da Academia Nobel de os três premiados (uma pessoa e duas organizações) serem oriundos de três antigas repúblicas da União Soviética. © Javad Parsa / NTB / AFP

O prémio Nobel da Paz que a Memorial recebeu no ano passado teve consequências internas positivas e negativas? Ou seja, deu-vos mais credibilidade, mais popularidade, mas ao mesmo tempo chamou a atenção das autoridades?
É simbólico, podemos dizer assim. Soubemos que íamos receber o prémio Nobel no dia 7 de Outubro e naquele dia eu estava em Tbilissi, na Geórgia, a abrir uma exposição da Memorial. Ia num táxi e telefonou-me o nosso director financeiro e disse-me “Vai lá ver as notícias.” E a primeira coisa em que pensei foi “aconteceu alguma coisa muito, muito má”. Porque quando telefona o director financeiro e diz “vai lá ver as notícias” não significa que vai acontecer alguma coisa boa. E nós naquele dia tivemos um processo judicial. E naquele dia a juíza tomou uma decisão que nós íamos ficar sem o nosso prédio em Moscovo, o nosso espaço, e aconteceu no mesmo dia. E claro que aquela decisão foi fora das leis, ignorando os nossos direitos, porque aquele prédio onde nós recolhemos o nosso arquivo, onde nós fazíamos os nossos encontros, era um prédio da memória, da preservação da memória dos direitos humanos. Nós comprámos aquele prédio. Era a nossa propriedade. Nós recolhemos dinheiro, foram coisas dadas por pessoas normais do mundo inteiro. Ele custou três milhões de dólares. Pode imaginar quão difícil foi recolher esse valor das pessoas. Nós comprámos assim, foi uma coisa oficial, pagámos todos os impostos, nunca tivemos nenhum tipo de dívidas. Depois foi como no ano de 1917, vem alguém e diz “Foi teu? Agora é meu, não tens direito nenhum.”

E o arquivo acumulado ao longo de anos, como é que resguardaram?
O arquivo pertence-nos, ainda.

Mas não nesse edifício original?
Claro que não. Mas graças a esse arquivo, conseguimos trabalhar numa versão digitalizada. E no próximo ano, é o nosso plano, queremos abrir o arquivo, o arquivo digitalizado, para o mundo todo.

A confirmação do encerramento da Memorial aconteceu dias depois do início da Guerra na Ucrânia, em finais de Fevereiro de 2022. A Memorial tem posição sobre a guerra?
Nós temos uma posição muito concreta que articulámos em 2014, quando a ONU qualificou como uma agressão a invasão da Crimeia. E claro que a guerra tem de terminar e claro que a Ucrânia tem de receber todas as compensações por causa do sofrimento que tem vivido. E por causa dessa posição nós fomos considerados agentes estrangeiros. E depois, por causa dessa posição, o Estado mandou imensas coimas para pagar, e no final nós não conseguimos. Eles mandaram imensas coimas, mas vieram pessoas simples, deram dinheiro e aos poucos e poucos conseguimos pagar, e depois eles fizeram a liquidação. E é interessante terem feito a liquidação uns dias depois da guerra começar.

No seu caso, que é directora-executiva da Memorial, está exilada? É perseguida judicialmente?
Eu não posso voltar à Rússia, não posso. Mas também não posso dizer que sou uma exilada, porque eles não me podem mandar fora, fui eu que tomei a decisão.

É um exílio voluntário?
Sim, mas sei que vou ser perseguida, não posso voltar. Estou pronta para passar tempo numa prisão mas posso ser muito mais útil fora da prisão. É melhor assim. Eu sou directora. E como eu sou directora, é muito fácil fazer-me um processo, não só político, mas também financeiro. Podem dizer que eu fiz uma coisa abusiva, porque lutei pelo nosso prédio. Porque fiz também um processo jurídico contra o Estado e um processo pelos salários dos funcionários da Memorial. Na Rússia nós tratámos de cada funcionário, cada trabalhador, atendemos a todas leis e tudo. Trabalhavam 50 pessoas na minha organização, mas fecharam a organização num momento só. E liquidaram as contas e tudo. Eu tinha, por exemplo, muitas mulheres que não receberam o salário, grávidas ou com crianças pequenas, e lá nas contas eu tinha todo o dinheiro para pagar, e iniciei um processo via judicial e perdi. E o que é que disse a juíza principal da Federação Russa? “Os funcionários recebiam bem quando estavam a trabalhar nessa organização, o que é que eles queriam?” Ou seja, temos leis, temos direitos, mas não são para todos. É um regime fascista.

Uma pergunta mais virada para o futuro. Acha que o povo russo ambiciona que não se repitam os erros do passado e sonha que se construa uma sociedade democrática?
Eu acho que a ideia principal que a sociedade russa tem agora, hoje em dia, é medo. Acho que a sociedade russa não sonha muito, mas se tiver algum sonho, o sonho principal é o fim da guerra. Mas não podemos pensar que é assim um sonho muito cor de rosa, “vamos acabar com a guerra”, muito pacífico, não é bem assim. É mais um sonho tipo ah, ok a guerra acaba e vai ficar tudo como era. Não é um sonho que percebe que nós russos vamos ter de pagar por tudo aquilo que foi feito.

Para concluir, podemos dizer, que no seu caso, estava mais optimista, mais esperançosa em 1987 sobre o seu país do que está agora?
Em alguns casos sim, em alguns casos não. Claro que eu era mais jovem, e claro que todos os jovens pensam “ai a vida é tão boa, vamos ter muitos anos para viver.” E eu sou uma pessoa que sabe mais ou menos como derrubar paredes. Por que para derrubar ou para atravessar as paredes nós só temos de ter duas condições: saber qual é o objectivo e não ver os obstáculos, e assim vamos conseguir. Mas agora estou mais optimista porque tenho a minha experiência. Por que eu encontrei muitas pessoas que ajudaram imenso nesta nossa luta. E na altura eu nem esperava estes encontros com vidas e destinos fantásticos. Conheci tantas pessoas corajosas, até conheci Andrei Sakharov, e claro que isso dá um certo optimismo.

DN
Leonídio Paulo Ferreira
15 Novembro 2023 — 00:10
© Pedro Marques Pereira


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 3 semanas ago

 

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“O conflito no Médio Oriente pode colocar problemas sérios a Putin”

 

SOCIEDADE // POLÍTICA // ENTREVISTAS

José Milhazes, jornalista e historiador, é o entrevistado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

© Global Imagens

Mais de um ano e meio depois da invasão das tropas russas na Ucrânia começarem, a 24 de Fevereiro de 2022, o historiador José Milhazes publicou ‘A Mais Breve História da Ucrânia’, em parceria com o historiador ucraniano Vladimir Dolin.

Numa publicação que explica a história deste país desde o início dos povos eslavos, os dois autores falam de vários episódios marcantes neste percurso turbulento do país. José Milhazes falou com o Notícias ao Minuto para fazer um balanço sobre o tema, numa aproximação com a obra.

O também jornalista, que foi correspondente em Moscovo,  na Rússia, e colaborou com publicações como a BBC e a RFI, fala não só sobre o livro e a “resistência” ucraniana que tem vindo a ser fundamental para este conflito, como também da influência da mais recente guerra no Médio Oriente – e na importância que esta poderá ter no conflito no leste europeu.

[A política de Putin] é um pouco a política de Hitler, que ia avançando aos bocados e depois quando viu que tinha perante si um Ocidente impotente, decidiu conquistar tudo – mas perdeu.

O livro fala sobre as batalhas constantes que os ucranianos tiveram de travar interna e externamente. Fala, nomeadamente, que “Ucrânia” significa “terra de fronteiras” em eslavo antigo. Milénios depois, o país quer fazer jus ao seu nome, mas esta ideia ainda não está bem assente em Moscovo. Aponta não só o apoio internacional como “vital” para esta guerra, mas também o do povo. Acredita que esta resistência se vai manter ao longo do tempo, ou vai esmorecer? E tal como se lê no poema ‘Testamento’, de Taras Shevchenko, que inicia a publicação, a Ucrânia vai sempre acreditar que “o sangue vil, inimigo” será levado “para o fundo do mar”?

Tendo em conta a força e a insistência com que os ucranianos combateram ao longo da sua História, tenho razões para acreditar que a Ucrânia se vai manter como um Estado independente soberano na Europa. Claro que há muitas incógnitas. Houve, no início da guerra, quem esperasse que a Ucrânia completamente, o que não aconteceu. Os ucranianos mostraram que sabem combater e sabem defender a sua terra. Daí que penso que a Ucrânia tem futuro. A verdade é que a história da Ucrânia – daqueles povos e países – ficam nos chamados “lugares complicados” da geografia. São países que ficam nos corredores de passagem de povos. Esse factor desempenhou um grande papel na História do país e continua a ser ainda hoje.

O chefe das Forças Armadas Ucranianas, Valery Zaluzhny, disse, esta semana, num artigo publicado na publicação The Economist, que “provavelmente não haverá nenhum profundo nem bonito avanço” no que diz respeito à contra-ofensiva. Haverá uma altura em que Kyiv não terá outra alternativa a não ser fazer cedências?

Acho que o artigo do general Zaluzhny é um artigo realista, em que ele desenha a situação real das coisas. Nós sabemos que a Ucrânia, tendo de conta a desproporcionalidade em homens ou armamento, não poderia vencer esta guerra. Nem poderá, se pensarmos que uma vitória significa a derrota total do inimigo.

Como ele disse, é uma guerra de exaustão e claro que esta guerra não vai ser possível vencer pela força das armas. Aqui é procurar uma saída que permita que a Ucrânia saia com dignidade deste conflito. Sabemos que a Ucrânia não vence a Rússia exactamente pelas dimensões – em número de soldados –, mas também não foi vencida nem batida. Resistiu, recuperou uma parte do seu território e, por isso, também não se pode dizer que a Ucrânia perdeu a guerra.

Eu receio muito que uma troca de pacto por terra, por território – como muitos defendem – vai ser um erro muito grande.

Porquê?

Porque se [Vladimir] Putin conseguir ficar com partes do território ucraniano, não demorará muito tempo a vir a apresentar novas exigências – que, se não for à Ucrânia, é a outros países vizinhos da NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte].

No fim de contas, a Ucrânia é a primeira trincheira da Europa

No livro parece fazer referência a essa ideia. Escreve que Napoleão foi aconselhado a invadir a Rússia a partir de território ucraniano. Este é um território estratégico para, futuramente, e num pior cenário, Moscovo alargar os seus combates? Ou seja, tomando controlo da Ucrânia, não há nada que o posso parar, como Napoleão poderá ter pensado na altura?

O que estou a dizer é, mais ou menos, isso. Putin irá até onde o deixarem ir. E, nesse sentido, vai sempre depender das condições existentes – e da forma como a Rússia vai utilizar ou não essas condições.

Em que medida?

Se o chamado Ocidente sair enfraquecido, também, da guerra do Médio Oriente – que é outra guerra que está muito ligada à Ucrânia -, se a Rússia se apresentar como uma grande vencedora, e o Ocidente não tomar as medidas necessárias para garantir a sua segurança, então aí Putin pode voltar a atacar.

Fez isso em 2008, em 2014 e está a fazer isso agora. No fundo, é um pouco a política de Hitler, que ia avançando aos bocados e depois quando viu que tinha perante si um Ocidente impotente, decidiu conquistar tudo – mas perdeu.

E, nessa altura, o apoio internacional foi vital.

Exacto.

Quando falamos em apoio internacional, falamos no apoio incondicional da União Europeia, NATO, Estados Unidos?

Há uma coisa que nós temos de ter presente. Esta guerra não é só uma guerra pela Ucrânia. Esta guerra é uma guerra pela Ucrânia e pela Europa. Porque, volto a repetir: se Putin ocupar a parte da Ucrânia, ele depois pode lançar-se noutras aventuras. No fim de contas, a Ucrânia é a primeira trincheira da Europa. Daí que é pena que o chamado Ocidente não tenha dado atempadamente o apoio necessário à Ucrânia. A Ucrânia deveria ter tido um apoio muito maior e um apoio muito mais atempado. Vemos no artigo do general Zaluzhny, ele escreve sobre o porquê de não se conseguir avançar – um dos motivos é a falta de armamentos, nomeadamente, a aviação. O Ocidente, aqui, deveria concluir que tem que se preocupar mais com a sua segurança e ajudar os vizinhos que estão do lado do Ocidente.

Estamos a falar não só dos sistemas de defesa Patriot, como também dos caças F-16, por exemplo?

Isso e muito mais – estamos a falar de armamentos modernos. Porque, em termos de homens, o desequilíbrio é muito grande a favor da Rússia – que tem muito mais potencial humano para uma guerra. E isso só pode ser compensado através de equipamentos modernos do outro lado – e que a Ucrânia tem vindo a necessitar. E se a Ucrânia não tem mais êxito essa é uma das principais razões. Porque o espírito combativo dos ucranianos não falta.

Referiu que a “Ucrânia tem futuro”. Acredita num futuro próximo no qual a Ucrânia faça parte da União Europeia ou na NATO?

Essa é uma questão a que eu não daria tanta atenção como está a ser dada e como se deu – e que se resume, muitas vezes, só a palavras.

Porquê?

Para mim, é muito mais importante que, neste momento, a Ucrânia consiga, pelo menos, alguns dos seus objectivos e depois abordarmos a questão da entrada da Ucrânia na União Europeia e na NATO. Isto irá acontecer – penso que será um processo longo. Deverá ser mais rápida para a União Europeia do que para a NATO. Estas metas da NATO e da União Europeia são importantes para os ucranianos, mas, como se costuma dizer, primeiro vamos ver como é que isto vai acabar. E, depois, já falamos o resto a seguir.

Não é a entrada ou não adesão que está a impedir a comunidade internacional de dar apoio a Kyiv.

Exactamente. É que, se não derem apoio e continuarem a discussão, depois, quando disserem “podem entrar para a NATO”, a Ucrânia pode estar a 10% do seu território. Por isso é que, muito mais importante, é primeiro garantir a segurança do território ucraniano e, depois, termos estas discussões todas.

O que aconteceu no Daguestão pode ser um sinal tão forte, ou mais forte, do que o levantamento [motim] de [Yevgeny] Prigozhin. 

Jens Stoltenberg deixará a liderança da NATO, se tudo correr como previsto, em Outubro do próximo ano. Falou-se de Robert Fico, da Eslováquia, para seu sucessor. O agora primeiro-ministro eslovaco ganhou as legislativas com uma campanha pró-Rússia e anti-americana. Caso suceda a Stoltenberg, esta pode ser mais uma batalha que Kyiv – e todos os estados envolvidos na NATO – terá de travar?

É por isso que eu digo que é prematuro estarmos a perder tanto tempo com essa discussão. Porque nós não sabemos o que é que nos espera no futuro. Estamos num período de convulsões muito rápidas. E qualquer fator pode mudar completamente a disposição das forças. Por exemplo, estávamos a falar da guerra na Ucrânia e acontece o ataque terrorista em Israel – esse é um dos factores Que veio a mudar muito esta situação.

Em que medida?

Primeiro, na medida em que esse conflito no Médio Oriente está a desviar as atenções daquilo que se passa na Ucrânia. Segundo, os apoiantes da Ucrânia têm, também, uma parte deles, significativamente, apoiantes também de Israel. Por exemplo, os Estados Unidos, que agora têm que dividir a ajuda por dois.

E, depois, é o próprio apoio internacional à Ucrânia, porque a configuração anterior é uma, hoje é outra. Por exemplo, Israel, que em relação à Ucrânia tinha uma atitude um tanto ou quanto limitada Ou, digamos, neutra entre a Rússia e a Ucrânia e neste momento é um aliado da Ucrânia – que, se conseguir os objectivos do Médio Oriente, poderá esta situação ajudar a resolver a situação na Ucrânia a favor dos ucranianos.

Há aqui muitas coisas que nós não sabemos como vão acontecer. E, por isso, quanto ao cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas (até lá podem aparecer novos nomes, novas personalidades), neste momento, é preciso prestar atenção e centrar-se nos objectivos mais imediatos, que são travar as guerras e, depois falar então em nova estrutura mundial.

A situação na Ucrânia poderá ter sido um rastilho para a situação no Médio Oriente se desenrolar?

Um dos cenários possíveis é o alargamento do conflito no Médio Oriente a novas regiões – e isso aí é um perigo muito grande. Eu diria até que, num sentido, poderia até ajudar a Ucrânia, mas, por outro lado, poderia ter consequências enormes para toda a humanidade. Não só ao Médio Oriente, mas por exemplo: Putin tem mostrado toda a sua incompetência, mais do que uma vez, com os acontecimentos recentes no Cáucaso, onde nós vemos grupos de jovens extremistas islâmicos a tomar um aeroporto, incendiar um centro cultural hebraico. E isto passa-se numa região da Rússia muito sensível e muito explosiva, que é o Cáucaso, onde existe uma maioria da população muçulmana. E o conflito no Médio Oriente pode alargar-se até ali e colocar sérios problemas ao próprio Putin.

Como?

Porque serão movimentos, a aparecer nessa região, que vão contestar a política de Putin. E, nesse sentido, não imaginem, nem acreditem, quando Putin diz que “está tudo calmo e não há problemas religiosos nem coisa nenhuma na Rússia”. Isso é o que ele diz. Outra coisa é o que pode vir a acontecer. O que aconteceu no Daguestão pode ser um sinal tão forte, ou mais forte, do que o levantamento [motim] de [Yevgeny] Prigozhin. Ou seja, num país como a Rússia, onde vivem numerosíssimos povos – incluindo muçulmanos e judeus -, este tipo de acontecimento é muito perigoso. Nesse sentido, nós não sabemos para onde vai a guerra no Médio Oriente e quais serão as consequências – não só para Israel, mas para outros países daquela região.

É nesse sentido que diz que pode ser mau para a humanidade, mas bom para a Ucrânia? No sentido em que poderá gerar um conflito interno e resultar em algo contra Putin?

Sim. Aí Putin vai ter que combater em várias frentes – e uma delas, as frentes internas, são extremamente perigosas para Putin.

Porquê?

Porque não se sabe como é que vão reagir as forças armadas e a polícia – quem é que vai apoiar. Uma coisa é Putin controlar a situação em geral, e depois ver que, no Daguestão, entra um bando de malfeitores pelo aeroporto aeroporto e a polícia não faz nada. Isso é mau sinal para Putin. É que Putin diz que manda em tudo e pode tudo, mas há coisas em que vemos que não é assim. Uma delas é essa.

Tanto mais em regiões como o Daguestão, onde uma parte significativa da polícia são locais – e poderão não entrar na onda de violência se for necessário reprimir algum levantamento.

No livro ‘aproxima’ ainda a Ucrânia a Portugal, na medida em que faz referência a judeus sefarditas portugueses ou mesmo à independência de Timor-Leste. Julga que a história da Ucrânia é um tema em falta nas escolas em Portugal?

Eu ando muito em escolas, faço palestras para os jovens e fico surpreendido exactamente pela pobreza dos nossos manuais de História em termos de relações internacionais. É importante estudar a História de Portugal – não há dúvida nenhuma – mas não é só o que importa. Portugal vive num meio geográfico determinado, vive no mundo. E as pessoas têm de saber que problemas há neste mundo que podem vir ou não a afectar Portugal. O nosso futuro de história nas escolas devia ser mais alargado e ligado, claro, a temas importantes, como são aqueles que vão acontecendo nos últimos anos. É preciso que os jovens tomem consciência de que estamos a caminhar para um mundo muito incerto e que serão eles que terão de resolver os problemas. A juventude tem de ter consciência do mundo difícil em que vive e de que as crises que vamos atravessar irão ser também muito difíceis – e participar na vida social e política de forma a minimizar os perigos que nos esperam.

Notícias ao Minuto Notícias ao Minuto
03/11/23 08:39
por Teresa Banha


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator

published in: 1 mês ago

 

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