111: A história do homem que foi torturado depois de morto por ter traduzido a Bíblia

 

CULTURA // 🇬🇧 JOHN WYCLIFFE // BÍBLIA

A condenação de John Wycliffe à morte, no início do século XV, ocorreu quando o réu já estava morto há 30 anos.

Wikimedia

Mais de 10 anos após a condenação, os seus restos mortais foram retirados do túmulo e queimados e as cinzas foram atiradas ao rio Swift, no centro da Inglaterra.

Foi o destino do filósofo e teólogo medieval inglês, a quem se atribui a proposta da primeira tradução completa da Bíblia do latim para a língua inglesa — algo que era completamente proibido pela Igreja.

Essa tradução, hoje conhecida como a Bíblia de Wycliffe, dá uma ideia da postura do filósofo diante da Igreja Católica.

A sua visão inspirou um movimento de dissidência considerado herético e lançou as bases para uma reforma (ou revolução), que ocorreu mais de um século após a sua morte.

O argumento de Wycliffe era que “a Igreja que existia no final do século XIV não era um reflexo preciso da Igreja que poderia ser rastreada na Bíblia, nos Evangelhos, nas Epístolas e nos Atos”, explicou Anne Hudson, professora emérita de inglês medieval na Universidade de Oxford, no Reino Unido, num programa da BBC sobre Wycliffe.

Segundo Hudson, o filósofo medieval não era, de forma alguma, um fundamentalista. Pelo contrário, ele elaborou o seu pensamento a partir da discrepância que via entre a riqueza material da Igreja em relação à realidade social da época.

O mundo ao redor

No mesmo programa da BBC, o filósofo Anthony Kenny, da Universidade de Oxford, lembrou que as primeiras obras e ensinamentos filosóficos de Wycliffe não reflectem nada de heterodoxo ou herético — embora já houvesse nessa linha de raciocínio uma tendência que estava a começar a definir esse caminho futuro.

“Ele era extraordinariamente realista“, descreveu Kenny. “E ele tirou conclusões políticas desse realismo.”

Segundo o especialista, para Wycliffe, o universal era mais importante do que o individual, e os aspectos comuns eram mais valiosos do que as características particulares de uma pessoa. “Ele caiu então num comunismo teórico baseado no realismo”, diz Kenny.

Wycliffe começou a reflectir mais sobre essas ideias e a escrever sobre elas numa época em que não apenas a Igreja passou a ser questionada, mas também a sociedade como um todo era debatida.

“Há um pano de fundo para tudo isso”, contextualiza Rob Luton, professor de História Medieval da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.

“Há o papado de Avignon, quando a residência do Papa foi transferida para a França, que levantou muitas questões sobre a autoridade dentro da própria Igreja.”

“Assim como a rápida mudança social que ocorreu após a peste negra, que desafiou os modos tradicionais da sociedade e questionou como alguém poderia agir como cristão diante dessas mudanças”, acrescenta.

Outro facto marcante deste período foi a Guerra dos 100 anos, que opôs a Inglaterra à França, e a presença da autoridade eclesiástica em solo gaulês.

Não fazia sentido para Wycliffe que o reino e a nobreza da Inglaterra tivessem que responder e sustentar financeiramente uma autoridade localizada em território inimigo.

Mais radical

Wycliffe chegou até a questionar a doutrina da transubstanciação — a capacidade de transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo —, que era (e continua a ser) parte fundamental do catolicismo.

O filósofo não negou a presença de Cristo, mas questionou a necessidade do sacramento.

“Isso foi muito importante para o clero, porque esse é um dos maiores poderes que os padres têm. Ao negar a eucaristia, esse poder seria-lhes retirado”, enfatiza o professor Kenny.

Um aspecto importante das teorias de Wycliffe é que ele as escrevia em inglês, para que fossem acessíveis e mais pessoas as pudessem debater.

Essa, aliás, é a mesma razão pela qual ele insistiu em traduzir a Bíblia: a ideia era reforçar a importância do texto sagrado como autoridade máxima para os cristãos.

Legado

E, embora essa versão traduzida da Bíblia lhe tenha sido atribuída a ele, o seu nome não aparece no texto.

“Devo enfatizar que esse deve ter sido um trabalho colaborativo“, aponta Hudson.

Foi, portanto, um processo longo e demorado, considerando que na época a imprensa ainda não tinha sido inventada. Hoje, conhecem-se cerca de 300 exemplares da Bíblia de Wycliffe.

Muitas cópias foram produzidas e distribuídas muito depois da morte de Wycliffe, em 1384, por um exército de seguidores das suas doutrinas, que formaram um movimento conhecido como “lollars“.

Essas ideias conseguiram ganhar força graças à passividade de uma Igreja distraída por problemas internos, num período que chegou a ter até três Papas ao mesmo tempo.

De facto, tal foi a influência de Wycliffe sobre outros grandes teólogos — como o checo Jan Hus e futuros reformadores — que o filósofo é considerado a “Estrela da Manhã“, como um dos precursores da Reforma Protestante.

Porém, a Igreja procurou resolver os problemas em 1414 através do Concílio de Constança, algo como uma cúpula de emergência formada para tentar unificar o papado.

E uma das primeiras resoluções do concílio foi atacar aqueles que questionavam a autoridade das lideranças católicas.

Hus foi condenado à morte e imediatamente executado, enquanto Wycliffe foi considerado culpado de heresia. Os “lollars” começaram a ser perseguidos.

Embora tenha demorado até 1428 para que a sentença contra Wycliffe fosse executada, os restos mortais dele foram exumados, queimados e atirados a um rio.

  ZAP // BBC
20 Maio, 2023


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92: Os corpos de pedra de Pompeia não são o que parecem

 

CIÊNCIA // POMPEIA // ARQUEOLOGIA // CORPOS DE PEDRA

Os corpos de pedra são, na verdade, réplicas preenchidas com gesso baseadas nos restos mortais das vítimas da erupção do Vesúvio.

Valdiney Pimenta / Flickr

Em Outubro de 79 D.C., o Vesúvio entrou em erupção e arrasou a cidade italiana de Pompeia e a região envolvente, que ficou mergulhada em gás, lava e cinzas. Esta parte toda a gente já sabe.

O que muitos não sabem é que os famosos corpos de “pedra” das vítimas da tragédia, que são das principais atracções turísticas da cidade, não são exactamente aquilo que parecem.

Apesar de a visão das pessoas a transformarem-se totalmente em pedra à medida que a lava escorria pelo monte abaixo ser impressionante, a realidade não foi bem assim.

Na verdade, quem visitasse Pompeia antes do século XIX, não iria ver qualquer um destes corpos. Então, de onde é que estas estátuas vieram?

“A verdade é que não são corpos de todo. São o produto de engenhosidade arqueológica, datada da década de 1860″, explica Mary Beard, professora da Universidade de Cambridge, num artigo da BBC.

Já desde o século XVI que há registos de escavações em Pompeia, mas só em meados do século XIX é que a Pompeia que conhecemos hoje começou a ganhar forma, sob a direcção do arqueólogo Giuseppe Fiorelli.

À medida que as escavações avançavam, os cientistas começaram a notar algo estranho: uma série de buracos e cavidades que por vezes tinham restos humanos.

Estes eram os verdadeiros “corpos” das vítimas da erupção vulcânica.

“O material do vulcão cobriu os corpos dos mortos, endurecendo e solidificando à sua volta. À medida que a carne, os órgãos internos e as roupas se decompunham gradualmente, um vazio era deixado – que era uma impressão negativa exacta da forma do cadáver no momento da morte”, escreveu Beard.

Os arqueólogos rapidamente perceberam que, se colocassem gesso nos espaços vazios, o molde ficaria novamente completo e seria uma réplica exacta do corpo da pessoa.

As escavações modernas actualizaram ligeiramente os métodos para analisar o conteúdo destes corpos, com recurso a raios-X ou tomografia computorizada 3D, mas a elaboração de novos moldes pouco mudou.

Ocasionalmente usa-se uma resina epóxi transparente em vez de gesso, mas a mistura tradicional continua a ser a melhor opção para se ter uma réplica mais fiel à verdadeira pessoa.

  ZAP //
14 Maio, 2023


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