Zeinal Bava. O “Messi das Telecomunicações”

 

🇵🇹 PROVA DE VIDA

O gestor Zeinal Bava, que já foi alguém neste país, em parte ainda o é, pois não passa uma semana sem que tenhamos notícias dele, todas promotoras de sentimentos de inveja e vindicta, os quais, além de péssimos e pouco cristãos, não levam a lado nenhum.

© Ilustração Vítor Higgs

A sua família (de muçulmanos sunitas, idos da Índia para Moçambique, em 1890), sempre se pautou e norteou por valores, uns imobiliários, outros mais mobiliários: os Bava dedicavam-se à compra e venda de casas e terrenos em Lourenço Marques, onde o pequenito Zeinal Abedin Mohamed viu a luz aos 18 de Novembro de 1965; dez anos depois, quando vieram para Portugal, após a descolonização, o pai abriria uma fábrica de móveis, a qual, posto que pequena e modesta, permitiu custear os estudos do seu rebento – e a pedido deste – no Saint Julian”s, em Carcavelos, no Concord College, em Inglaterra, para onde Zeinal foi aos 14 anos, e no University College London, onde se formaria em Engenharia Electrónica e Electrotécnica, após ter deixado de lado o sonho da Medicina, opção que teria nos poupado a todos, a Portugal e a ele, muita despesa e incómodo.

No culminar da sua carreira académica, Zeinal Bava tornou-se, em 21 de Outubro de 2014, o mais jovem doutor honoris causa pela Universidade da Beira Interior, a UBI.

Na cerimónia de atribuição da prebenda, ainda hoje disponível no YouTube, vemos um homem adulto, já grisalho, ao lado de um copo vazio e de uma garrafa de plástico, a apadrinhar o candidato e a proferir, em discurso escrito, a palavra “desenvolvimento” duas vezes na mesma frase, falando ainda em “serviços inovadores disruptivos” e afirmando que, a dado passo da sua existência, Zeinal “agulhou depois para a banca de investimento”.

Mais disse o professor Tribolet, pois é dele que falamos, que “nunca conheci um gestor como Zeinal Bava”, “parece que usa pilhas Duracel, nunca pára!”, e, para sustentar o afirmado, citou, um a um, os quinze pontos da filosofia de Bava (ou “tipologia de gestão de Zeinal Bava”), constantes de uma coisa chamada “Portal da Liderança – Comunidade de Líderes”. A saber:

1 – Comunicar Eficazmente

2 – Focar nos Resultados

3 – Apostar na Equipa

4 – Motivar, Dar Feed-Back e Comunicar Expectativas

5 – Ser Transparente e Indutor de Confiança

6 – Procurar o Crescimento

7 – Investir no Futuro e Apostar na Inovação

8 – Estudar, Planear e Executar

9 – Correr Riscos e Assumir Erros

10 – Conhecer e Estar Próximo do Cliente

11 – Ter uma Visão Clara e Manter o Foco

12 – Fazer pela Sorte, Trabalhando Arduamente

13 – Nunca Parar de Aprender

14 – Valorizar e Cuidar do Físico

15 – Equilibrar a Vida Profissional com a Vida Familiar

Como este é um texto de Verão, para ler na praia ou num pinhal, pode o leitor utilizar estas máximas de Bava como um passatempo estival, igual ao Sudoku ou às palavras cruzadas, e pôr-se a escolher qual a sua platitude favorita (gosto muito, pessoalmente, da n.º 5, Ser Transparente e Indutor de Confiança); pode também fazer um combo dos pensamentos bavistas, agregando o nº. 14 com o nº. 11, ou vice-versa, e juntar mais dois ou três; ou tentar ver quais daquelas máximas, de vida e de management, se poderiam aplicar a outras grandes personagens históricas, como Tamerlão ou Al Capone.

Um derradeiro mas muito compensador exercício será comparar aqueles 15 princípios com o que hoje é sabido do BES e de Bava (se quisermos, de Ali-Ba-Bava e dos 40 Ladrões), cotejando o Zeinal na teoria e na prática – e concluindo, sem esforço, que a langue de bois da “filosofia de liderança e gestão” (e, já agora, do “empreendedorismo”) não passa de uma vulgar aldrabice, mas de uma aldrabice poderosa, presente no mundo inteiro, estudada como ciência, seguida até como fé, que também o é.

A cerimónia doutoral covilhanense seria a última aparição pública de Zeinal Bava antes da sua ida ao parlamento, em Março de 2015, na qual seria depenado e depois estraçalhado por Mariana Mortágua. Nem os ossinhos sobraram.

O país rejubilou, talvez por ter pressentido, e com razão, que aquela seria a sua única oportunidade para ajustar contas com quem não soube fazê-las, pese ter sido premiado, em três anos consecutivos, como o melhor CFO europeu na área das telecomunicações (2003, 2004 e 2005), como o melhor CEO na área de Investor Relations (2009, 2011 e 2013), como o melhor CEO europeu no sector das comunicações e o melhor em Portugal (em 2010 e 2012, em 2011 foi o segundo melhor CEO europeu, mas, claro, o melhor em Portugal).

Perguntado pelo montante do encalacranço da PT no BES (em Maio de 2014, 98,32% dos investimentos da PT, no valor de 897 milhões de euros, concentraram-se numa só entidade, a Rioforte), o “Messi das telecomunicações”, como era conhecido, ensarilhou-se na bola, ainda ensaiou a espargata, foi acometido de singular amnésia, e acabou às voltas com um tableaux de bord, talvez recordando os Malhoa que tem em casa, um duplex simpático às Janelas Verdes, com assombrosa vista de rio, de que hoje pouco desfruta.

Depois foi a vez da Justiça, a palavrosa e fútil Justiça. Zeinal Bava foi acusado de crimes muito catitas (fraude fiscal qualificada, corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos), mas, em 9 de Abril de 2021, o juiz Ivo Rosa, o Messi das decisões revogadas, entendeu nem sequer pronunciá-lo, ilibando-o de todos os cinco delitos por que vinha acusado.

Rosa determinou, do mesmo passo, que Zeinal devolvesse 6,7 milhões de euros do chamado “saco azul do GES”, no prazo de 10 dias, mas as habituais trapalhadas entre os tribunais portugueses e suíços fizeram com que aquela quantia só fosse entregue um ano e oito meses depois, em Fevereiro de 2023.

Logo a seguir, em Maio deste ano, a notícia de que foi condenado pela CMVM do Brasil em duas pesadas multas, no valor de 31 milhões de euros, e na inibição de gerir empresas brasileiras cotadas em bolsa, durante dez anos.

Uma notícia do Expresso, de 26/6/2019, dava conta de que Zeinal Bava, então com apenas 53 anos, se encontrava “tecnicamente desempregado”, não se lhe conhecendo qualquer trabalho e existindo alguns vagos indícios de que daria consultoria a fundos e a projectos na Austrália.

“Vive na sombra”, dizia a mesma notícia, informando que, além do processo-crime, Bava enfrenta mais quatro processos.

Mas diz também a notícia de que, por causa dos prémios recebidos da PT e de outras coisas, era um homem rico, muito rico. Provavelmente, ainda o é, mesmo que para isso tenha manchado e desonrado o seu apelido – e o dos seus três filhos – até ao fim dos seus dias.

De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? – pergunta o Evangelho de Marcos, 8:36. Que responda Zeinal Bava, ou a sua consciência – se a tiver.

*Prova de vida (7) faz parte de uma série de perfis de verão.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

DN
António Araújo
20 Agosto 2023 — 07:00

A não esquecer: “10 de Junho de 2014: Zeinal Bava é condecorado, pelas mãos do Presidente da República, Cavaco Silva, com a Classe do Mérito Comercial (Grã-Cruz), que se destina a distinguir “quem haja prestado, como empresário ou trabalhador, serviços relevantes no fomento ou na valorização do comércio, do turismo ou dos serviços”.”


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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318: Tonicha: zumba na caneca

 

🇵🇹 PROVA DE VIDA

Ninguém nasce Tonicha. Ou, como já dizia Beauvoir na abertura d”O Segundo Sexo: “on ne naît pas Tonichá: on le devient“. Na verdade, até a própria da Tonicha teve de fazer-se Tonicha, construir-se a si própria, com garra e luta, apesar de, e ao contrário do que muitos julgam, Tonicha não ser um nome artístico ou abreviatura de Antónia, seu primeiro nome, antes o apelido com que viu a luz em Beja, aos 8 de Março de 1946: Antónia de Jesus Montes Tonicha. Aliás, Tonicha poderia ser Tonicher, nome também usado na família e apelido de um dos seus irmãos (será isso que explica aquele loiro e ar germânico?).

© Ilustração Vítor Higgs/DN

Antónia de Jesus Tonicha foi a terceira de quatro irmãos e teve, segundo a própria, uma infância “muito feliz”. A mãe era de Serpa, o pai de Baleizão, ambos trabalhadores rurais. “Pertenço com orgulho a essa camada”, como fez questão de notar à Crónica Feminina, no calor da revolução. A revista, seguindo o ar do tempo, acrescentou que ela punha “na voz, na expressão e no sentir o grito desse povo alentejano.

Ela também “emigrante” dentro do seu país, lutando por uma melhoria de vida, que o seu meio ambiente lhe negava” (Crónica Feminina, de 4/12/1975). Se pensarmos que também Cândida Branca Flor e Linda de Suza eram do distrito de Beja, ambas nascidas em Beringel – e pela mesma altura, meados/finais dos anos 40 -, não deixaremos de perguntar que haverá por aquelas bandas para fomentar tantas e tão excelsas vozes. Tonicha responde, dizendo que, enquanto no Alto Alentejo predominam os grupos corais, o Baixo é a terra das vozes solitárias, logo mais apuradas.

Teve, desde cedo, a mania das cantorias, o “bichinho das cantigas”, primeiro na escola, e depois, já mais crescida e espigada, nas festas da “Capricho”, a Sociedade Filarmónica Capricho Bejense, fundada em 1916 e que continua sita ao nº. 10 da Rua da Moeda. Por influência da sua mãe, que tinha uma paixão por Amália, tomou-a por ídolo para sempre e, por volta dos 16 anos, foi viver para o Barreiro, onde um tio-avô era chefe da estação dos caminhos-de-ferro.

A prima, Elizete Tonicher, e o primo, Francisco Naia (Francisco Naia Tonicher), eram cantores, e na família do pai havia muitos amadores de música, pelo que ninguém se opôs a que ela seguisse a carreira nos palcos, ao contrário do que sucederia com outras estrelas candentes, como Marco Paulo, que em jovem chegou a apanhar um valente tabefe do pai por estar a ouvir na sala de jantar, não por acaso, um disco da popular Tonicha.

Mentindo na idade (“Eles fingiam que acreditavam e de vez em quando chamavam-me e perguntavam se já tinha o bilhete de identidade. Dizia que ainda não, que ainda lá estava esquecido na casa dos meus pais, no Alentejo.” – Correio da Manhã, de 16/1/2005), Antónia de Jesus, com apenas 16 anos, e levando consigo Manhã de Carnaval e Velas ao Luar, apresentou-se a concurso da Emissora Nacional, onde ficou aprovada. Acabaria por ingressar nos quadros da Emissora dois anos depois e, meses volvidos, entraria para a RTP.

Entretanto, fora aprendendo com os maestros Armando Tavares Belo (que foi maestro titular da Orquestra Ligeira da Emissora durante 36 anos, até 1982), Fernando de Carvalho e António Melo, entre outros, e recebeu lições de canto de Corina Freire, uma garganta famosa, que chegou a contracenar com Maurice Chevalier e que foi também mestra de António Calvário, seu parente.

Em 1965, Tonicha gravou o seu primeiro disco, Canções de Natal, em conjunto com Saudade dos Santos, Gina Maria e Paulo Jorge, e, no ano anterior, fez a primeira gravação a solo, num EP da RCA, Luar Para esta Noite.

Com Boca de Amora, de José Gouveia, ganhou, em 1966, o primeiro prémio no Festival da Canção da Figueira da Foz, que voltaria a conquistar no ano seguinte, com A Tua Canção Avozinha, que lhe granjeou também o Prémio de Interpretação (“Avozinha serás sempre/Fada dos sonhos meus”).

Entretanto, participou no filme Sarilhos de Fraldas, do prolífico realizador Constantino Esteves, que Bénard da Costa definiu, não sem maldade, como “o herdeiro persistente do pior cinema português dos anos 40 e 50”.

No seu Dicionário do Cinema Português, Jorge Leitão Ramos não é nada meigo para a película, que apelida de “um dos exemplos do nacional-cançonetismo no cinema português dos anos 60” e que desfaz assim: “totalmente inábil do ponto de vista técnico, idiota quando ao entrecho, pessimamente interpretado, com diálogos de absoluta inanidade, este é um filme da vertente mais degradada e degradante da história do cinema português.”

Não seria essa a opinião dos espectadores, que tornaram esta fita, estreada no Odeon a 21 de Setembro de 1966, um grande sucesso de bilheteira, premiada pelos leitores da revista Plateia com os galardões de melhor filme, melhor actor e melhor actriz (cf. Fernando Madaíl, “O filme que começava com um piquenique”, DN, de 16/6/2007). Com argumento de César de Oliveira, o elenco de Sarilhos de Fraldas era composto por António Silva, na sua última aparição no cinema (no papel de Sr. Castelo), Madalena Iglésias, António Calvário, Nicolau Breyner, Mário Pereira, Manuela Maria, Josefina Silva, Paula Ribas, Cremilda Gil e Tonicha, claro.

O enredo, algo complexo, mete António, um cantor de revista que namora com a filha do seu empresário, Lurdes, encarnada por Tonicha. Lurdes, porém, é uma megera e António acaba por se apaixonar por Madalena, sua colega nos palcos. Às tantas, António e Madalena encontram um bebé perdido num automóvel e levam-no de boa-fé, mas acabam perseguidos pela Judiciária, que os intercepta em Leiria.

No final, tudo acaba bem, ou mal, nas raias do péssimo, sendo sintomático que esta meteórica passagem de Tonicha pela 7ª. Arte não seja muito assinalada nas suas biografias (“uma experiência interessante, mas para esquecer”, diria ela ao programa Um Dia Com…, da RTP, em Março de 1971).

Em 1967, um annus mirabilis da sua carreira, Tonicha ganharia, além do já citado Festival da Canção da Figueira, o Prémio de Interpretação do Festival de Ourense, o Microfone de Ouro do Rádio Clube Português, o Prémio de Imprensa, o Prémio “Voz do Ano”, de Moçambique, e seria ainda eleita “Mulher do Ano” pelo Clube das Donas de Casa.

Depois, um cortejo de êxitos e um sem-fim de prémios: 2.º lugar no Festival RTP da Canção, em 1968; 1.º lugar no mesmo, em 1971; 9.º lugar no Festival da Eurovisão, Dublin, 1971; Medalha de Bronze no Festival de Brazov, na Roménia; 1.º Prémio de Interpretação do Festival de Split, na Jugoslávia; 4.º lugar e 1.º Prémio de Interpretação nas Olimpíadas de Atenas, em 1972; Prémio da Crítica do VI Festival do Rio de Janeiro, 1972; 5.º lugar no Festival da OTI, em Madrid, 1972.

Após o 25 de Abril, Tonicha participou numa das primeiras músicas da revolução, porventura a primeira, Portugal Ressuscitado/Canção de Combate escrita por Pedro Osório e Ary dos Santos mal saíram da manifestação em Caxias, no dia 26, a exigir a libertação dos presos políticos.

No 1.º de Maio, ela e dois fernandos, Tordo e Girão, gravaram-na nos estúdios da Musicord, no Pátio dos Artistas, a Campo de Ourique, e, uma semana depois, a música já estava nas rádios, com o refrão chileno “Agora, o Povo Unido Jamais Será Vencido” e um verso sobre a “gaivota da liberdade”, a antecipar o sucesso avícola de Ermelinda Duarte.

Por essa época – mais precisamente, em 24 de Outubro de 1974 -, Tonicha teve a sua primeira e única experiência no teatro de revista, na peça Uma no Cravo, outra na Ditadura, de Sérgio de Azevedo, estreada no Teatro ABC com um elenco de luxo (Ivone Silva, Tonicha, Nicolau Breyner, José Morais e Castro, Fernando Tordo, Herman José, Aida Baptista, Fernando Girão, etc.), e textos, músicas e orquestrações de Ary dos Santos, Bernardo Santareno, César de Oliveira, Rogério Bracinha, Pedro Osório, Thilo Krasmann, Fernando Tordo e Nuno Nazareth Fernandes.

Apesar de se considerar “prá frentex”, sobretudo quando fala dos tempos de Beja, e apesar da sua imagem arrojada de Françoise Hardy ou Sylvie Vartan lusitana, com minissaias, blusões, hot pants e bonés (“bonés à Tonicha”), que a tornaram um ídolo para muitas teenagers, que a imitavam e até davam autógrafos em seu nome, e que lhe granjearam muitos pretendentes, nacionais e estrangeiros, Antónia de Jesus Tonicha só teve um namorado e marido, João Maria Viegas, que conheceu aos 17, 18 anos, num espectáculo em Santarém, para o programa Onda Matinal, na Rádio Ribatejo.

Não foi amor à primeira vista, mas estariam juntos até ele morrer na Casa do Artista, aos 83 anos e de lúpus, em Julho de 2013, naquela que foi, muito provavelmente, uma das maiores perdas da vida da cantora, já que, além de marido,

Viegas foi seu manager e responsável pelos turning points decisivos da trajectória tonichiana, nomeadamente a sua passagem para o folclore e para a música tradicional portuguesa, domínios que ele dominava: nascido em Salvaterra de Magos, fora contemporâneo e amigo de Alves Redol, ajudara-o nas recolhas para o Cancioneiro Ribatejano, fizera trabalhos etnográficos pelo país e estrangeiro.

Um pouco a custo, convenceu Tonicha a fazer uma inflexão para o folclore e os cantares tradicionais, com Vira dos Malmequeres, Resineiro, Senhora do Almortão, O Gaiteiro Português, Sericotalho, Bacalhau, Azeite e Alho, Pézinho do Pico, Lá-Ri- Ló-Lé, Vai de Ruz-Truz Truz e sobretudo, acima de tudo, Zumba na Caneca, o seu maior êxito, do qual, às tantas, já estava para lá de farta.

A sua ligação a Patxi Andión e a Ary dos Santos, do qual gravou 48 canções, a participação nos cantos da revolução (além de Portugal Ressuscitado, os discos Canções de Abril e Cantaremos/Lutaremos, todos de 1974), o facto de se trajar como ceifeira, a modo de tableau vivant neo-realista ou incongruente Catarina Eufémia mignone e loira, tudo isso levou a que fosse conotada com o PCP, coisa que ela rejeita, até com certa veemência: “essa foi uma partida que me pregaram. Eu nunca tive qualquer filiação partidária”, disse à revista Vidas, do Correio da Manhã, em 23/1/2011.

Em 1992, já a RTP perguntava por ela no programa O Que é Feito de Si e, na verdade, Tonicha optara por uma vida mais recatada no campo, gerindo uma exploração turística no Ribatejo, em conjunto com o marido.

Em entrevistas, disse que gostava muito de cantar, mas que nunca almejou a fama e que sempre foi “muito pacata”. Conheceu as agruras da glória (“era complicado ir à praia e ter as pessoas a pedirem-me autógrafos.

Todos nós gostamos de ir a um restaurante e poder almoçar tranquilos”) e, por isso, abrandou o ritmo, saiu de cena, mas nunca se sentiu esquecida ou lamentou a escolha feita, até porque, confessa, fez “tudo o que podia fazer neste país”.

É verdade: gravou 308 canções, pelo menos, vendeu mais de 600 mil discos, esteve na Eurovisão, no Natal dos Hospitais, no “Abraço a Moçambique”, o Live Aid português de 1985, percorreu o globo, cantou a Ave Maria de Schubert num programa de Herman José, gravou o disco Fátima, Altar do Mundo.

Teve regressos intermitentes (v.g., Regresso, de 1993), foi alvo de homenagens, de compilações antológicas, em 2010 entrou no musical Vozes de Trabalho, de Tiago Torres da Silva, no Teatro da Trindade, ao lado de Lourdes Norberto, Cecília Guimarães, Carlos Mendes, Filipa Pais, Joana Negrão et all. Em 2017, seria lançada a foto-biografia Tonicha. A Eterna “Menina”, da autoria de Maria de Lurdes de Carvalho, com testemunhos, de Jorge Palma, Fernando Correia, Ary, Tozé Brito, Baptista Bastos, etc., e do professor Francisco Marzia, gestor do Facebook do Clube de Fãs de Tonicha, que mantém também um impecável e actualizado blogue (já a foto-biografia, infelizmente, além de se encontrar esgotada, não consta sequer do catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal).

Em 2019, antes de ganhar o Festival da Eurovisão, Conan Osíris louvou a deusa: “Eu curto bué a Tonicha e tenho muito respeito, especialmente pela música que ela foi cantar – Menina do Alto da Serra – a primeira vez que ouvi isso eu chorei…

A Tonicha para mim foi uma das maiores cenas no festival”. Interpelada pela TV 7 Dias, Antónia sentiu-se lisonjeada, deixando afirmado: “Não tenho seguido, mas, de facto, disseram-me”.

Recentemente, em Maio de 2022, houve em Beja uma gala de homenagem à sua filha dilecta, um espectáculo intitulado Tonicha – a Eterna Menina, com apresentação de Júlio Isidro e actuações de Anabela, Daniela Helena, Fernando Pardal e Mafalda Vasques, mas a coisa, pelos vistos, não correu bem, nada bem, e o presidente da edilidade mostrou-se “zangado, revoltado, enganado” por um evento que “não podia ter acontecido”, já que, das 17 músicas em cena, apenas uma era de Tonicha e o resto não passava de uma retrospectiva, ademais manhosa, dos Festivais da Canção.

Paulo Arsénio pediu desculpas pelo sucedido e deu instruções aos serviços camarários para devolverem o dinheiro a todos os que, apresentando-se na bilheteira do Pax Julia, quisessem ser ressarcidos por aquele delito de lesa-Tonicha.

Nesse capítulo, mais grave ainda foi a monumental gafe de Judite de Sousa, que a deu como morta, e logo por suicídio. Em 2015, ao entrevistar Nicolau Breyner para o programa 5 Dias 5 Noites, da TVI24, Judite Fernanda desabafou, pesarosa: “Há colegas seus, da sua geração, que acabaram por ter um fim triste.

Estou a pensar na Tonicha, que se suicidou, e estou a pensar na Florbela Queiroz”. Nico assentiu, compungido, sem se aperceber da barraca.

Entrevistada nesse mesmo ano de 2015 pelo programa Giras e Discos, da Rádio Sim, onde foi apelidada, e bem, de “rainha dos discos pedidos”, Tonicha fez prova de vida e contou o seu dia-a-dia: mora em Sines, gosta de passear junto à beira-mar, de ler, ouvir rádio, ver televisão, coisas pacatas.

Problemas de saúde complicados (venceu um cancro da mama, sofreu um atropelamento grave) levaram-na a resguardar-se e, segundo a própria, a “ficar mais sossegada, mais calma”. “Até porque já não tenho 30, 40 anos”, disse. Pois não, tem 77 – e muitos mais lhe desejamos.

*Prova de vida (5) faz parte de uma série de perfis de verão

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

DN
António Araújo
06 Agosto 2023 — 00:23


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
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