245: SNS VIII

 

– Nada de espantar! Há uns anos atrás, caí na desgraça de ir a uma urgência de Otorrino num hospital público de Lisboa a fim de desentupir um canal auditivo para depois poder efectuar um exame da especialidade. Quando entrei no cubículo, deparei-me com 3 pessoas: uma jovem que devia ser estagiária, um tipo sem bata a uma mesa a ler não sei o quê e ao fundo, o chefe de bata branca, a ler um jornal. Nem bom dia, nem cumprimento, nada, tudo de trombas no que estavam a fazer. A moça veio ter comigo, disse-lhe que pretendia desentupir o canal auditivo porque devia ter cerumen a mais. Sentei-me numa cadeira, ela pôs o aspirador a funcionar e toca de entrar pelo ouvido, puxando o lóbulo da orelha até que resolveu parar. De seguida veio o tal tipo sem bata que agarrou no aspirador e toca de aspirar o mais selvaticamente possível. Já com o ouvido dorido não só das aspirações como da forma como trataram o meu ouvido, veio o terceiro tipo – devia ser o chefe – que ainda fez pior que o tipo anterior. Resultado: à noite, não podia tocar no ouvido e nem podia inserir a prótese auditiva dadas as dores e o inchaço internos. E chamam a isto de “médicos”? Tive um pastor alemão que era mais bem tratado quando tinha de fazer exames de rotina no veterinário…

🇵🇹 OPINIÃO

Dezembro 2022!

Análises de rotina para controlo da tensão arterial: hemograma, glicémia, ácido úrico, colesteróis, transaminases, etc., etc., etc. e PSA.

Tudo dentro de parâmetros aceitáveis. Tudo, não. Tal como a aldeia gaulesa do Astérix, o PSA (para quem não está dentro destes nomes e siglas, o PSA é, em denominação inglesa, o antigénio específico da próstata – prostatic specific antigen – que é uma proteína segregada na próstata que, quando apresenta um valor acima do que é considerado normal, pode significar doença prostática, nomeadamente carcinoma, mas que só deve ser valorizado pelo médico que equaciona todas as variáveis envolventes antes de concluir um diagnóstico)

o PSA, dizia, resistia à normalidade dos restantes resultados e estava aumentado para cerca do dobro dos valores considerados normais.

Assim sendo, marquei uma consulta com a minha Médica de Família que, após ponderar, requisitou alguns exames mais e referenciou-me para uma consulta de urologia no hospital ao qual deve referenciar, com uma probabilidade de diagnóstico de cancro da próstata!

O tempo foi passando e eu fui esperando…

E esperando…

Junho 2023!

E esperando… até que no dia 30 de Junho de 2023, recebi um telefonema do dito hospital, com alguém, que de uma forma muito impessoal, informou que estava marcado para uma consulta de urologia no dia 4 de Julho seguinte, às 16:50.

Assim, sem mais! Três dias antes e com um fim-de-semana pelo meio. Fiquei meio abananado e só consegui dizer que sim, mesmo sem saber se tinha disponibilidade e compatibilidade de horário. Arranjei-a e lá fui!

Devo dizer que contrariamente aos meus hábitos cheguei cerca de 10 minutos atrasado, devido a um compromisso já assumido com um paciente que não tinha culpa nenhuma da minha marcação ter sido comunicada tão em cima da hora.

Entrei no consultório onde estavam dois médicos, jovens, um mais velho e uma outra mais novita que acabei por saber ser interna da especialidade.

“Boa tarde, Sr. Pedro” fui assim saudado, sem direito a um aperto de mão ou qualquer outro tipo de saudação (partiu de mim a iniciativa de os saudar com um aperto de mão), e desta forma fiquei a saber como são recebidos os doentes num serviço público, ou, se quisermos de outra forma, a maneira como os internos são ensinados a receber os seus pacientes num serviço público: com frieza e distância institucional (os médicos não sabiam da minha condição de colega de profissão, nem tinham de saber!), mas com simpatia mesmo assim. Da simpatia não me posso queixar, felizmente!

E é assim que o Serviço Nacional de Saúde quer “fazer frente” aos privados. Não falo da forma como os doentes são recebidos (é um fait-divers produto da forma liberal e informal com que se foram abolindo alguns hábitos de boa-educação), mas sim da relação entre pares, ou da falta dela, para ser mais concreto, que leva a que um paciente com uma suspeita de cancro diagnosticada pelo seu Médico de Família, só tenha uma consulta hospitalar da especialidade seis (6) meses depois.

Já aqui escrevi que a relação entre os médicos de Medicina Geral e Familiar e os médicos das várias especialidades hospitalares devem ser o mais directa possível.

É assim: para ter acesso a uma consulta hospitalar, o paciente tem de ser referenciado pelo seu médico de família (não sendo assim, os pacientes tendem a “entupir”, como se tem visto, as urgências dos hospitais na procura de obtenção de uma consulta de uma especialidade hospitalar).

Para que esta referenciação seja exequível, é indispensável que se transfira o “centro” do SNS dos hospitais para os centros de saúde.

Obviamente que esta transferência exige uma mudança de mentalidade, nada fácil de conseguir pois mudar a hospitalocracia vigente desde sempre é tarefa hercúlea tanto para os dirigentes como para os médicos que foram ensinados a pensarem hospital (eu fui!).

Então vejamos: se eu tenho um paciente que necessita de uma consulta hospitalar, seja porque eu preciso de uma outra opinião, seja porque a minha hipótese diagnóstica exige respostas técnicas para as quais eu não tenho habilitação suficiente, se eu tiver um leque de especialistas nos hospitais mais perto de mim, a quem possa recorrer directamente, estarei a obviar tempos de espera, e ao mesmo tempo a retirar pressão dos hospitais e das suas urgências.

Este é só um exemplo e este é um tema complexo que dá água pela barba a quem se dedicar implementá-lo, porque, como já referi, tem por base uma mudança de mentalidades imprescindível para a sua prossecução.

Já aqui escrevi ser o SNS uma manta de retalhos na sua génese (também já referi ter sido necessário ser assim!!), sem um fio condutor ou filosofia comum.

Foi, é, e continua a ser cada um por si, cada centro de saúde e cada hospital a reger-se de acordo com as suas próprias orientações internas, resolvidas por administradores mais preocupados com o tacho do que com a eficiência de um Serviço Global.

É desta forma que se deixam passar seis meses a passear um cancro!

O governo entretanto, entretém-se com medidas de cosmética financeira, prometendo aumentos de salários base a quem trabalhar em regime de dedicação plena e outras “regalias” similares para ver se estanca a saída de jovens médicos recém especialistas para o sector privado que se mostra mais atraente em termos remuneratórios, com ambos, governo e médicos, a esquecerem que estes só são especialistas porque fizeram obrigatoriamente os seus internatos de especialidade em hospitais públicos, e assim será pelo menos enquanto forem estes os hospitais reconhecidos para esse fim.

Públicos e privados podem e devem ser complementares e não adversários, ou concorrentes. As carreiras médicas passam actualmente pelo serviço público antes de se mudarem de armas e bagagens para o privado, não esqueçamos.

Sejam dadas condições de trabalho interpares e garantidamente haverá lugar para todos, pois todos têm ambições e opções de vida diferentes.

De uma forma ou de outra, não me deixem passear um cancro durante seis meses por inépcia de um serviço que tem tudo para ser exemplar, a começar pela competência técnica dos seus médicos! Eu aprendi tudo o que sei num Serviço Público e tenho muito orgulho nisso!

P. S. 1 – A verdade: sabendo que a espera seria muita, desenrasquei-me recorrendo a um colega que trabalha numa estrutura privada, já fui operado há cerca de quatro meses, num hospital também privado, estando, para já tudo a correr bem.

P. S. 2 – o que relatei é real, não se passou no continente, mas poderia ter sido em qualquer parte do país Portugal, já que os procedimentos são similares.

Médico

DN
Pedro Melvill Araújo
09 Julho 2023 — 17:24



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published in: 2 meses ago

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