411: Liberdade de expressão cultural e patrulha inquisitorial

 

🇵🇹 OPINIÃO

“A censura está para a arte como o linchamento para a justiça”

Henry Louis Gates Jr.

Assistimos a um número crescente de ataques a obras literárias e artísticas em nome do movimento “woke“, cuja filosofia assenta em grande medida na chegada a uma espécie de amnésia colectiva, requerendo, pois, o empenho contínuo desse movimento na deslegitimação da História (subsumida que é a uma sequência de eventos de crueldade chocante) e na supressão de obras literárias e artísticas (vistas como instrumentos de opressão de grupos marginalizados).

Nessa sequência, o movimento tem exigido, entre outras coisas, (i) o banimento ou a correcção e conversão em textos politicamente correctos de obras que considera snobs, misóginas e/ou racistas (como as obras de Enid Blyton conforme já aqui referi), (ii) a destruição ou vandalização de monumentos (como o Padrão dos Descobrimentos) que encara não como recordações ou lembranças de factos ou entidades doutras épocas, mas como símbolo de um passado colonial e (iii) mais recentemente a tentativa de remoção de uma obra artística do notável Francisco Simões na qual o autor de Amor de Perdição abraça uma mulher nua (Ana Camilo), alegando que a escultura objectifica a mulher e ofende a sua dignidade.

Estes incidentes obrigam-nos a reflectir sobre as fronteiras e limites entre a expressão cultural, que emana da liberdade de expressão, e outros valores, incluindo os que se encontram associados a tendências “woke“.

O movimento “woke” não reconhece a existência de uma natureza ou condição humana fixa e inata, vendo o ser humano como uma folha em branco, fruto de um processo de construção social que deve alicerçar-se numa visão orientada para o futuro e no âmbito da qual a narrativa dos factos passados (e os bens culturais a ela associados) podem e devem ser dispensados.

A questão que aqui se coloca é onde traçar os limites entre a liberdade de expressão cultural e os valores, crenças, convicções e práticas de terceiros, guardiões da estética e do bom gosto, que actuam em nome de padrões ideológicos, sociais e culturais que nem sempre reflectem a visão da maioria,

Comecemos por ressaltar que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos) consagra o direito à liberdade de expressão, que abrange não apenas formas de expressão de natureza política, mas também a expressão artística. A criação intelectual deve, pois, ser livre.

Neste quadro normativo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao examinar processos relativos a potenciais violações da liberdade de expressão no contexto de obras artísticas e literárias, em conexão, por exemplo, com livros (The Little Red Schoolbook, History in Mourning, 33 bullets, We made each dawn a Newroz, Le Grand Secret), pinturas (Three Nights, Three Pictures), filmes (Council in Heaven) e até poemas (O canto de uma rebelião – Dersim), tem acentuado o imperativo da liberdade de expressão como um dos pilares de qualquer sociedade democrática.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já reconheceu que os criadores de expressão cultural devem evitar que essa expressão seja gratuitamente ofensiva em relação às opiniões religiosas e crenças de terceiros, não sancionando, todavia, a eliminação da História nem a remoção, sem mais, de bens culturais.

Com efeito, segundo esse Tribunal, a liberdade de expressão permite, de forma salutar, a divulgação de informação e de ideias, quer estas sejam recebidas de forma favorável, quer sejam consideradas inofensivas, quer sejam vistas com indiferença, quer ofendam, choquem ou perturbam um ou mais elementos da população.

Sabe bem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que só a liberdade de expressão garante a livre criação literária e artística, que as artes e as letras desafiam convenções, incitam à reflexão e inspiram mudança e que quando a expressão criativa é tolhida pela censura é sufocada a essência da inovação e do progresso.

Conclui de forma magistral e sumária o referido Tribunal que “aqueles que criam, executam, distribuem ou exibem obras de natureza cultural contribuem para a troca de ideias e opiniões, algo essencial numa sociedade democrática”.

E neste contexto legal e judicial não podemos senão concluir por um princípio de intocabilidade da expressão literária e artística (a não ser por motivos de força maior), quer estejam em causa bens culturais de hoje, quer se trate da Arte de ontem.

A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge

DN
Patricia Akester
20 Setembro 2023 — 00:28


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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121: Meritocracia política por onde andas?

 

– “… Era assim na China antiga. No âmbito de uma visão confuciana, quem queria ocupar cargos institucionais tinha de passar por um concurso público, competitivo, complexo e justo, que almejava à ascensão de candidatos éticos, incorruptíveis e dotados de conhecimento, que formulassem, em função dos rudimentos que os regiam, políticas para a promoção do bem-estar da população.“.

É por isso que a actual Xi-na, é um país “democrático”, respeitador da Liberdade de Expressão, de Reunião, de Opinião e imperialista territorialmente, igualando-se aos seus vizinhos com regimes nazis…

🇵🇹 OPINIÃO

Assistimos hoje, no quadro político nacional, ao triunfo da nulidade, ao prosperar da desonra, ao crescimento da injustiça, à propagação da mentira e ao engrandecimento do sórdido, do censurável, do condenável e do vergonhoso.

Que mal fizemos nós? Enfrentámos estoicamente a pandemia, reagimos solidariamente ao perigoso conflito bélico que emergiu em solo europeu e chegámos, entretanto, a um ponto em que quem manda parece rir da honra, da honestidade e da virtude.

Enfim, testemunhamos, penosamente, o declínio da democracia, tendência essa que acelerou aquando da pandemia (que justificou, globalmente, bom e mau no campo das medidas legislativas) e nos deixou nas mãos de uma elite egoísta e irresponsável, que favorece o nepotismo e o favoritismo, que desvaloriza o mérito e que normaliza a depravação política (que me perdoem aqueles a quem a proverbial carapuça não serve).

Uma vez que as falhas que presenciamos nesta democracia em falência advêm, claramente, da ausência de meritocracia política (a qual tem como elemento fundador o mérito, enquanto aptidão e valor moral e intelectual, residindo o seu cerne na distribuição ou repartição de postos, lugares e oportunidades políticas em função do mérito) a solução é evidente.

Em primeiro lugar, há que instituir o reconhecimento e a valorização da competência ética e da erudição no plano institucional através de certas alterações legislativas que não comportem desvios.

A política portuguesa deve adoptar a meritocracia como código de conduta, que a guie, que a oriente e que não permita passos em falso, o que passa, entre outras coisas, pela exigência de qualificações mínimas (no âmbito dos valores e do saber) para a ocupação de lugares partidários de peso e para o exercício de cargos públicos.

Era assim na China antiga. No âmbito de uma visão confuciana, quem queria ocupar cargos institucionais tinha de passar por um concurso público, competitivo, complexo e justo, que almejava à ascensão de candidatos éticos, incorruptíveis e dotados de conhecimento, que formulassem, em função dos rudimentos que os regiam, políticas para a promoção do bem-estar da população.

Nessa senda, precisamos, em Portugal, com urgência, de substituir o patrocínio, o patronato e o favor pelo mérito. Só um sistema construído em torno dessa noção pode erradicar a corrupção e as ineficiências económicas e políticas que a acompanham.

Atravessamos um período crucial em que é primordial que a pessoa certa ocupe o lugar certo, gerando resultados para a nação e não retornos a título individual.

Nesse sentido, cabe aos partidos, ao poder central e ao poder local seleccionarem candidatos não necessariamente próximos e queridos e sim meritórios.

E quem o fizer, note-se bem, revela inquestionável amor à Pátria, assim como inteligência. Como bem dizia Nicolau Maquiavel “o primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”.

Em segundo lugar, também o povo tem um papel a desempenhar nesta encruzilhada em que se encontra o país.

Os eleitores devem favorecer, quando exercem o seu arduamente conquistado direito ao voto (universal, secreto e directo), o mérito e não o carisma, o feitiço ou o encanto (“a corrupção política é em parte uma consequência das escolhas do povo” avisa Laércio Monteiro).

Os próximos resultados eleitorais devem privilegiar o valor moral e intelectual dos candidatos e assim garantir o futuro da nação.

Vivemos uma época politicamente conturbada, marcada no respeitante às elites governantes, pelo caos, pelo desregramento moral, pela cobiça, pela ambição desmedida e pelo império da desonestidade.

Urge levantar os que sabem e são rectos, independentemente de amiguismos, em nome da nação, pela nação e para a nação (Abraham Lincoln).

Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge.

D.N.
Patricia Akester
25 Maio 2023 — 00:17


Web-designer, Investigador
e Criador de Conteúdos Digitais


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Enid Blyton e alterações ‘woke’: ignorância e ilegalidade

 

🇵🇹 OPINIÃO

Como leitora voraz que sempre fui, os livros de Enid Blyton não me passaram ao lado. Devorei os mistérios e aventuras dos Cinco e com eles percorri a sua ilha favorita, andei no colégio de Santa Clara, em Londres, com as gémeas O’Sullivan, frequentei o colégio das Quatro Torres, na Cornualha, acompanhei um clube de pequenos detectives, os Sete, detendo senhas para as suas reuniões secretas, trepei intrepidamente a Árvore Longínqua e ajudei diligentemente a resolver vários mistérios que tendiam a despontar em Peterswood, no condado de Buckinghamshire.

Infelizmente o lobby anti-Blyton não partilha do meu entusiasmo e tem atacado ferozmente a sua obra, apelidando-a de snob, misógina e racista. No seio deste movimento os livros de Blyton foram banidos de numerosas bibliotecas e novas edições têm emergido, uma vez revistas e reeditadas, com nomes, personagens e enredos adulterados com vista a — pasme-se — convertê-las em obras politicamente correctas, isto é, cumpridoras de imperativos «woke.

A título de exemplo, a revisão das obras tem abarcado a eliminação de nomes considerados ofensivos, o respeito pela neutralidade de género, a divisão de tarefas domésticas, o cumprimento dos horários escolares e a resolução de mistérios e acção e aventura sob supervisão de um adulto.

Esquecem que os maravilhosos livros de Blyton encerravam aventura, mistério e magia, fornecendo simultaneamente (pormenor que tende a ser afastado) lições, ensinamentos e pedagogia.

Os personagens eram recompensados por actos de generosidade, bondade, honestidade, humildade e outras virtudes e punidos quando mentiam, roubavam, tinham acessos de raiva, eram mal-educados, gananciosos, egoístas ou cruéis.

Ignoram que sob um estilo de escrita despretensioso Blyton gerou enredos repletos de complexidade, explorando, por exemplo, as questões de raiz que levavam os adolescentes a incorrer em comportamentos socialmente inaceitáveis.

Olvidam que as referências a poder monetário eram raras e que o sucesso dos protagonistas de Blyton advinha da sua habilidade intelectual, da sua capacidade de trabalho, do seu bom carácter e de uma pitada de magia.

Desconsideram que Blyton criou personagens femininas cheias de garra, como Darrell Rivers ou as gémeas O’Sullivan e que as suas personagens mais célebres e memoráveis são raparigas (e não rapazes) obstinadas, ousadas e rebeldes.

Talvez o politicamente correcto deva adquirir perspectiva. A obra de Enid Blyton é um produto de seu tempo e do seu espaço e há que a reconhecer como tal.

O mesmo sucede, por exemplo, com os livros de Joseph Conrad, de Aldous Huxley e de Agatha Christie. Se as personagens de Blyton são demasiadamente abastadas que destino devem ter os mordomos e as empregadas que surgem aos pontapés na obra de Agatha Christie?

Se as histórias de Blyton têm laivos de racismo como devemos encarar a obra de Shakespeare, designadamente a referência ao mouro que habita Otelo e ao judeu que tem lugar proeminente no Mercador de Veneza?

As alterações em causa retiram à obra a verdade da época e do espaço em que foi escrita, vedando a constatação e a avaliação da evolução histórica, sociológica e literária.

O panorama literário é assim empobrecido, podendo o leitor chegar a um ponto em que apenas tem acesso a literatura contemporânea (politicamente correcta, claro está), sendo as restantes obras literárias banidas e/ou censuradas em nome (reparem no paradoxo) de valores liberais — e convertendo-se os livros de outrora em artigos de colecção.

Impõe-se ainda referir que as revisões acima referidas não são lícitas, em muitos países, graças a algo que o Direito de Autor qualifica como os direitos morais do autor. Tais direitos decorrem do reconhecimento da natureza eminentemente pessoal da criação do espírito e do vínculo, imperecível, entre criador e obra.

O nascimento dos direitos morais remonta ao século XIX, salientando-se, em 1814, o facto de um Tribunal francês ter reconhecido que certo autor tinha direito a que o seu manuscrito não fosse alterado, sem a sua autorização, pela editora à qual havia sido submetido (Billecocq v. Glendaz, Tri. civ. Seine, 17/08/1814). Em 1928, os direitos morais foram incorporados na grande Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com reflexos na lei portuguesa que declara, sem hesitação, que o autor goza do direito de assegurar a genuinidade e integridade da sua obra — direito esse inalienável, irrenunciável e imprescritível, cuja guarda passa, após a sua morte, para os seus sucessores.

Consequentemente, embora o estudo da obra de Blyton, incluindo no que toca a preconceitos e estereótipos seja bem-vindo sob uma perspectiva académica, alterar a obra traduz-se em mutilação e deformação da mesma, desvirtuando-a e podendo afectar a honra e reputação do seu autor e consistindo, pois, em acto ilícito em muitos pontos do globo.

Em suma, retirar a obra do contexto em que foi redigida e actualizá-la de acordo com uma das linhas vigentes de pensamento é mais uma tentativa de mudar a História, sendo pelos motivos acima apontados fruto de ignorância e de esquecimento e empobrecendo deste modo o quadro cultural mundial.

Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge

Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

D.N.
Patricia Akester
07 Abril 2023 — 00:23


Web-designer e Criador
de Conteúdos Digitais



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