🇵🇹 OPINIÃO
“A censura está para a arte como o linchamento para a justiça”
Henry Louis Gates Jr.
Assistimos a um número crescente de ataques a obras literárias e artísticas em nome do movimento “woke“, cuja filosofia assenta em grande medida na chegada a uma espécie de amnésia colectiva, requerendo, pois, o empenho contínuo desse movimento na deslegitimação da História (subsumida que é a uma sequência de eventos de crueldade chocante) e na supressão de obras literárias e artísticas (vistas como instrumentos de opressão de grupos marginalizados).
Nessa sequência, o movimento tem exigido, entre outras coisas, (i) o banimento ou a correcção e conversão em textos politicamente correctos de obras que considera snobs, misóginas e/ou racistas (como as obras de Enid Blyton conforme já aqui referi), (ii) a destruição ou vandalização de monumentos (como o Padrão dos Descobrimentos) que encara não como recordações ou lembranças de factos ou entidades doutras épocas, mas como símbolo de um passado colonial e (iii) mais recentemente a tentativa de remoção de uma obra artística do notável Francisco Simões na qual o autor de Amor de Perdição abraça uma mulher nua (Ana Camilo), alegando que a escultura objectifica a mulher e ofende a sua dignidade.
Estes incidentes obrigam-nos a reflectir sobre as fronteiras e limites entre a expressão cultural, que emana da liberdade de expressão, e outros valores, incluindo os que se encontram associados a tendências “woke“.
O movimento “woke” não reconhece a existência de uma natureza ou condição humana fixa e inata, vendo o ser humano como uma folha em branco, fruto de um processo de construção social que deve alicerçar-se numa visão orientada para o futuro e no âmbito da qual a narrativa dos factos passados (e os bens culturais a ela associados) podem e devem ser dispensados.
A questão que aqui se coloca é onde traçar os limites entre a liberdade de expressão cultural e os valores, crenças, convicções e práticas de terceiros, guardiões da estética e do bom gosto, que actuam em nome de padrões ideológicos, sociais e culturais que nem sempre reflectem a visão da maioria,
Comecemos por ressaltar que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos) consagra o direito à liberdade de expressão, que abrange não apenas formas de expressão de natureza política, mas também a expressão artística. A criação intelectual deve, pois, ser livre.
Neste quadro normativo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao examinar processos relativos a potenciais violações da liberdade de expressão no contexto de obras artísticas e literárias, em conexão, por exemplo, com livros (The Little Red Schoolbook, History in Mourning, 33 bullets, We made each dawn a Newroz, Le Grand Secret), pinturas (Three Nights, Three Pictures), filmes (Council in Heaven) e até poemas (O canto de uma rebelião – Dersim), tem acentuado o imperativo da liberdade de expressão como um dos pilares de qualquer sociedade democrática.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já reconheceu que os criadores de expressão cultural devem evitar que essa expressão seja gratuitamente ofensiva em relação às opiniões religiosas e crenças de terceiros, não sancionando, todavia, a eliminação da História nem a remoção, sem mais, de bens culturais.
Com efeito, segundo esse Tribunal, a liberdade de expressão permite, de forma salutar, a divulgação de informação e de ideias, quer estas sejam recebidas de forma favorável, quer sejam consideradas inofensivas, quer sejam vistas com indiferença, quer ofendam, choquem ou perturbam um ou mais elementos da população.
Sabe bem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que só a liberdade de expressão garante a livre criação literária e artística, que as artes e as letras desafiam convenções, incitam à reflexão e inspiram mudança e que quando a expressão criativa é tolhida pela censura é sufocada a essência da inovação e do progresso.
Conclui de forma magistral e sumária o referido Tribunal que “aqueles que criam, executam, distribuem ou exibem obras de natureza cultural contribuem para a troca de ideias e opiniões, algo essencial numa sociedade democrática”.
E neste contexto legal e judicial não podemos senão concluir por um princípio de intocabilidade da expressão literária e artística (a não ser por motivos de força maior), quer estejam em causa bens culturais de hoje, quer se trate da Arte de ontem.
A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge
DN
Patricia Akester
20 Setembro 2023 — 00:28
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 2 dias ago