406: Os melhores anos das nossas vidas

 

🇵🇹 OPINIÃO

J’avais vingt ans. Je ne laisserai personne dire
que c”est le plus bel âge de la vie. Tout
menace de ruine un jeune homme: l’amour,
les idées, la perte de sa famille, l’entrée
parmi les grandes personnes.

Paul Nizan, Aden-Arabie

– Embora com o meu francês mais que enferrujado dado que não o falo há décadas, vou ajudar na tradução: “Eu tinha vinte anos. Eu não vou deixar ninguém dizer que é a idade mais bonita da vida. Tudo ameaça arruinar um jovem: amor, ideias, perda de família, entrada entre os adultos.

Não sei se aos meus leitores mais jovens (se os tiver…) dirá alguma coisa o nome de Paul Nizan, um autor que muito citávamos na nossa geração, sobretudo este texto em epígrafe (para quem souber ler francês…), que dava conta da imensa confusão que significava para nós a saída da adolescência.

É verdade que nós saíamos da adolescência num mundo tão diferente do actual, que nos poderemos até sentir mais perto deste jovem intelectual francês dos Anos 40, dividido entre o seu ideal comunista e a realidade brutal e inaceitável do pacto de 1939 entre Hitler e Estaline. Mas temos de aprender a distanciar-nos dos nossos modelos de referência para compreendermos o novo e os novos.

É demasiado fácil (e muitos o fazem) partir do princípio de que os mais novos estão condenados, pela tirania redutora do digital, a desenvolverem mentes uni-dimensionais e acríticas, e pela sua formatação num mercado competitivo e pretensamente meritocrático, em individualistas egocêntricos, alheios à ideia de solidariedade e a quaisquer perspectivas de transformação social.

Os quadros de referência e a informação cultural podem ter mudado, mas as preocupações com o mundo e o desejo de o mudar permanecem vivos e activos nas novas gerações.

Este discurso lamechas e queixoso vem, quase sempre, de quem não está minimamente aberto a dialogar e a entender. A desilusão dos jovens com os rituais políticos, que à nossa geração custou muito a reconquistar, e que têm por nome comum “democracia”, corresponde à insatisfação com um sistema político que em todo o mundo democrático não tem conseguido ir ao encontro das necessidades sociais reais das pessoas, esmerando-se antes em jogos florentinos, a que só uma pequena bolha político-mediática acha graça. Abrir o terreno para propostas autoritárias parece até ser o secreto objectivo dessas políticas crescentemente impopulares.

Temos assistido à elevada consciência com que as novas gerações levam a sério a ameaça climática, com que todos nós fingimos preocupar-nos, mas que depressa passam na agenda pública da maior à menor prioridade.

Conversando com os novos, como tive oportunidade de fazer neste fim de semana, num encontro promovido pela organização do Erasmus Portugal, encontrei jovens bem informados (e se o foram pela Internet, que importa?) sobre os mais candentes conflitos contemporâneos e os mais sérios problemas internacionais.

Tive a mesma impressão ao dialogar com estudantes de Ciência Política do ISCSP e da Universidade Nova. Os quadros de referência e a informação cultural podem ter mudado, mas as preocupações com o mundo e o desejo de o mudar permanecem vivos e activos nas novas gerações.

O discurso estafado da indiferença política e social da juventude corresponde a uma falta de capacidade nossa para entrosar os ideais e projectos políticos que defendemos, cujos princípios fundamentais não mudaram com o tempo, com as preocupações e necessidades reais da juventude, no quadro de um mundo que mudou vertiginosamente, mas no qual as realidades da intolerância, da exclusão e da extorsão são as mesmas, com vestes novas e brilhantes.

Devemos ter a humildade intelectual de reconhecer que os problemas mudaram, que os quadros mentais são outros e que muito temos nós também de ouvir e aprender.

São as novas gerações que irão conduzir as mudanças do mundo, num contexto terrível e perigoso, de máxima imprevisibilidade e de crescente capacidade de fabricação de ilusões. A tarefa deles não é fácil. Eu também não diria hoje que 20 anos é a mais bela idade da vida…

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
19 Setembro 2023 — 00:26


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387: Sonata de outono

 

🇵🇹 OPINIÃO

Sentia una extraña tristeza
como si el crepúsculo
cayese sobre mi vida

Ramón del Valle Inclán,
Sonata de Otoño

Com as mudanças climáticas em curso, estamos a perder a suave melancolia do outono, das chuvas breves e das folhas mortas, dos longos soluços e dos violinos sem tempo. Vivemos entre ondas de calor sufocantes e chuvadas torrenciais, e resmungamos entre dentes “já não há estações”.

E mesmo que tenhamos compreendido as terríveis verdades que a Ciência nos comunica dia a dia, em nada ou quase nada vemos modificar-se o estado de coisas e, apesar das lutas que em todo o mundo se levantam contra o sistema que nos leva à destruição, os poderes políticos reconhecem, mas contornam o problema, ou assumem meras medidas de mitigação.

Não sei bem, é claro, que medidas deveriam ser tomadas. Apenas me assusta que a Ciência mais confiável e credível nos faça um apelo a que respondemos com tão pouca força e convicção.

Há uma coisa só que a História nos ensinou: o processo de evolução e transformação das sociedades humanas é deveras lento e totalmente imprevisível.

O caminho do progresso não leva necessariamente a um mundo melhor, mas oferece-nos utensílios e modelos que nos dão uma visão mais apurada e rigorosa do mundo que nos rodeia e aumentam a nossa capacidade de intervir sobre ele.

O atraso moral dos nossos cérebros, porém, não acompanha esta evolução ou utiliza-a para os seus jogos primários de poder.

Com as mudanças climáticas em curso, podemos estar a perder o sabor e a melancolia do outono. E, no entanto, ele vive e viverá para além de nós.

A nossa esperança, ao contrário do ideal das passadas gerações, está na imprevisibilidade dos acontecimentos e não em quaisquer leis alegadamente científicas que leiam por nós na bola de cristal do futuro.

Esperar não é, contudo, ficarmos sentados a ver o tempo passar, é lutar “por quanto nos pareça a liberdade e a justiça ou. mais que qualquer delas. uma fiel dedicação à honra de estar vivo” (Jorge de Sena) e não nos reduzirmos à passividade para que tudo nesta sociedade nos convida e chama.

Todas as lutas contra a redução e instrumentalização da nossa humanidade num campo de forças digital e matemático, seja a submissão da nossa economia e dos nossos trabalhadores aos algoritmos sem surpresa dos poderes e interesses financeiros, seja o desaparecimento dos livros e da leitura das nossas escolas, seja a extinção progressiva do ensino das Artes e das Humanidades, todas as lutas que tenham por fim contrariar e sabotar este mecanismo perverso de desumanização, todas essas lutas nos são essenciais para podermos sobreviver como Humanidade.

As guerras actuais mostram, porém, que as nossas decisões e as nossas emoções estão desfasadas dos problemas que nos ameaçam e que continuamos a travar guerras de conquista e de anexação, idênticas às dos séculos passados.

Interrogamo-nos até, os mais imaginativos, se a Inteligência Artificial que criámos não terá vindo ao mundo para substituir e dominar os nossos cérebros ainda reptilianos.

Mas se perdêssemos aquilo que nos destrói, a pulsão de morte, a vontade de guerra, este desejo febril de vencer, não perderíamos ao mesmo tempo o sentimento da beleza, os sabores do outono, a música de Mozart? E entenderíamos o poeta John Keats quando nos diz que “a thing of Beauty is a joy for ever“?

Com as mudanças climáticas em curso, podemos estar a perder o sabor e a melancolia do outono. E, no entanto, ele vive e viverá para além de nós. E nenhuma Inteligência Artificial será capaz de o entender e o saborear, no meio de tantas chuvadas e ondas de calor…

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
12 Setembro 2023 — 01:21


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374: Uma crónica sobre nada

 

🇵🇹 OPINIÃO

Porquê escrever? Porque escrevemos? É curioso que dois autores tão distantes no tempo como o poeta Guillaume d”Aquitaine (1086 – 1127) e o romancista Gustave Flaubert (1821-1880) tenham vindo a exprimir o mesmo desejo: escrever sobre nada: “o que eu quereria fazer era um livro sobre nada” (Flaubert); “Je ferai um poème de pur néant” (Guillaume d’Aquitaine, traduzido da língua d’oc por Jacques Roubaud).

Escrever poderá ser um ato intransitivo, poderá ser criar “um livro que se sustenta pela força interna do seu estilo” e que prescinde de assunto e narrativa (Flaubert) ou “um poema de puro nada, que não será sobre mim nem sobre os outros, nem de amor nem de juventude, nem de nada” (Guillaume d”Aquitaine)?

Estamos aqui a tocar uma das grandes tentações da modernidade, a escrita pela pura escrita, a renúncia ao referente, ao tema, à narrativa, e apercebemo-nos que a tentação não é tão recente ou moderna como pensávamos, pois que já no século XII um poeta de língua provençal (“proençais soem mui bem trovar” dizia o nosso rei-poeta D.Dinis) aspirava a esse limite absoluto da escrita e da linguagem, o texto sem motivo nem referente, sustentado apenas pela força da própria escrita.

Abrir uma crónica com estas referências literárias significa apenas (desmascaremo-nos) o embaraço deste cronista (que, pela própria etimologia da palavra, deveria estar atento ao tempo) em escolher o tema do seu artigo.

Ah, como seria bom deixar aqui apenas um exercício de estilo, cumprimentar e ir-me embora! Mas a actualidade pesa sobre os nossos pensamentos como sobre os nossos escritos.

Há uma guerra em curso, que parece ter atingido um perigoso momento de equilíbrio em que, não havendo claros vencedores nem vencidos, os combates parecem estagnar em massacres sem consequência.

Começa a não ser pecado mortal ouvir vozes sensatas, como a de Danilo Türk, ou vozes que vêm dos Estados Unidos, constatando a necessidade de sair do impasse.

A derrota de Putin é já evidente para todo o mundo. Mas o esmagamento total da Rússia é um sonho geopolítico irrealizável, pelo menos desde que, no século XVIII, Moscovo derrotou o grão ducado da Lituânia, um sonho tão irrealizável e irrealista como foi o projecto criminoso de reconquista da Ucrânia pela Rússia.

O cronista pensa agora como seria bom escrever sobre nada, em lugar de exprimir aqui dúvidas que parecerão a alguns heresias dignas da fogueira.

Mas se o cronista se virar para a política interna, sente que o que tem a dizer já disse e que, enfim, tudo será melhor do que um remake das descomposturas ao povo dos saudosos da velha e boa troika, apimentadas agora pela criatividade do Dr. André Ventura.

Mesmo em poesia, onde estamos mais perto de tocar os limites da linguagem, nunca conseguimos afastar-nos inteiramente dos nossos referentes e da insistência do real. Hoje penso que ainda bem que é assim.

Pobre crónica sem assunto, vagueando entre factos e pensamentos sem se fixar, nem sequer “uma crónica de puro nada” conseguiste criar. És como a “animula vagula blandula” (“alminha vagabunda e meiga”) do imperador Adriano, quando foi confrontado com o vazio mortal do seu desejo.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
05 Setembro 2023 — 00:33


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359: Melancolia de fim de férias

 

🇵🇹 OPINIÃO

Somos crianças feitas
para grandes férias.
Ruy Belo

O tempo ameaça chuva, as noites estão frias e húmidas, sabemos entender estes sinais que nos mandam dizer adeus às férias.

A melancolia desta época atravessa todas as conjunturas da nossa vida, independentemente do que nos espera ao regressar à vida normal.

Nunca me custou propriamente voltar ao posto no estrangeiro ou ao gabinete em Lisboa que me esperava, pois no tempo em que eu estava em funções sentia no início do ano lectivo (sempre contei os anos em anos lectivos) aquele mesmo entusiasmo pela novidade que na escola me fazia cobiçar em cada regresso às aulas os novos livros de estudo.

Podia agora na volta encontrar dificuldades e incompreensões, atritos e vexames, intrigas e derrotas: apesar de tudo isso, que é o fardo de qualquer ser humano em sociedade, não perdi nunca o entusiasmo por esta ideia de recomeçar, de poder encontrar o novo (le vierge, le vivace et le bel aujourd”hui, Mallarmé) nas tarefas e encontros de cada dia do ano de trabalho que começava.

Confessar que gosto da minha profissão, agora que estou na disponibilidade, parecerá estranho a todos os que se queixam, com razão, das condições do seu trabalho.

Não posso negar que se vem juntar a esta melancolia do fim das férias a saudade do tempo em que às férias se seguia a viagem, mais ou menos longa, para o posto, fosse Paris ou Nova Deli.

Agora regresso a casa em Lisboa e preparo-me para alguns compromissos assumidos para este trimestre. Tenho de admitir que já não espero o novo com aquele entusiasmo com que abria os livros escolares no princípio de cada ano.

Envelhecer é sempre reduzir expectativa e a resistência ao envelhecimento está numa programação activa das nossas capacidades e possibilidades, que possa manter vivas as nossas esperanças.

A melancolia do fim de férias é a tradução da angústia da irreversibilidade do tempo que passa. Para quem há quase quarenta anos vem para a mesma praia, há uma ilusão anual de negação do tempo, onde todos os tempos são um só e vivem e revivem no mesmo momento.

A criança que levamos pela mão já não é a filha, é agora a neta, mas o caminho é o mesmo e toda a realidade que nos cerca grita que somos eternos.

Não somos. Mas ao desfazer-se no fim das férias esta ilusão de eternidade assalta-nos a melancolia de voltar a um tempo medido e cronometrado, que mais nos aproxima do nosso fim.

Também nos persegue um resto de culpabilidade, porque embora as férias devessem ser a libertação de todas as nossas obrigações, a verdade é que tudo o que projectei escrever e não escrevi, todos os livros que trouxe para ler e não li, me pesam na consciência.

A melancolia do que não fizemos nas férias tenta então sobrepor-se a todas as grandes e banais memórias de alegria de que estes dias foram feitos e que vieram conferir a estas férias a sua promessa implícita de felicidade.

Os que amam a Beleza/ não têm bem-estar nem família, proclamava Mário de Sá Carneiro.

Talvez a Beleza e a Poesia tenham fugido de mim, ao ver-me no meio deste reencontro familiar, que cada ano se repete, numa ilusória denegação da finitude. Ou talvez a preguiça, que cresce com a idade, tenha acreditado assentar de vez arraiais.

O custo da separação (uns para Viena, outros para Paris e Bruxelas, dos quatro só uma filha em Portugal) virá dar alimento novo à melancolia. A solidão da escrita irá medir forças com a sedução da preguiça. E assim continuamos e continuaremos.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
29 Agosto 2023 — 00:35


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344: Europa, sonho por vir

 

🇵🇹 OPINIÃO

Europa, sonho futuro!
Europa, manhã por vir,
fronteiras sem cães de guarda
nações com seu riso franco
abertas de par em par!

Adolfo Casais Monteiro, Europa, 1945

Em que medida teremos alcançado, mesmo que parcialmente, este sonho que o poeta Adolfo Casais Monteiro enunciava num poema lido aos microfones da BBC, no ano final da destruidora carnificina que representou o apogeu das lutas pelo poder entre as potências europeias no século XX?

O excelente livro de Timothy Garton Ash (discordo do seu optimismo, mas não da sua qualidade e interesse) Pátrias – Uma História Pessoal da Europa é um ensaio histórico, contado através da perspectiva pessoal do autor, sobre estes últimos anos da nossa vida de europeus.

Quando li O Ocidente Sequestrado, de Kundera, imaginei uma Europa Central e Oriental a libertar-se das ditaduras impostas pelos soviéticos para construírem democracias sociais de mercado, como as que configuraram a Europa Ocidental a partir de 1945, com o reforço em 1974/75 da queda quase simultânea das ditaduras portuguesa, espanhola e grega. A democracia iria ser a mesma nos dois lados da Europa.

O meu posto no Conselho da Europa (1991 – 1994) levou-me a conhecer os processos vários de transição democrática que os novos membros do Conselho se propunham cumprir e que se nos afiguravam testemunhos de uma vontade irreversível de democracia.

Foi preciso ir viver num país dessa Europa para entender, com desgosto, que a Europa Central vivida por Stefan Zweig e sonhada por Milan Kundera fora definitivamente destruída, primeiro pelos regimes de Extrema-Direita, análogos e admiradores do nosso Salazar, que vigoraram entre as duas guerras, depois, e mais duradouramente, pelos regimes que, crismados de “democracias populares”, foram impostos pelo poder soviético àqueles países.

O retorno de muitos recalcados (o anti-semitismo, a perseguição dos ciganos, a discriminação das minorias, o revisionismo das fronteiras de 1919) conjugou-se com a pulsão para um autoritarismo de Direita e com um exacerbar dos sentimentos nacionalistas e xenófobos.

Mas os regimes de Varsóvia (nacional-clerical) e de Budapeste (partido hegemónico), se têm em comum sapar o poder de todas as instâncias independentes (desde os tribunais às manifestações culturais), identificam-se também num nacionalismo proteccionista, que leva Orbán a não cortar com a Rússia e Kaczinsky a opor-se às privatizações das grandes empresas polacas, acusando a Oposição Liberal de Kwasniewski de querer “vender o património nacional aos alemães”. A teorização por Orbán das “democracias iliberais” veio pôr a cereja no bolo autoritário do Leste.

É certo que há forças de Oposição democrática nesses dois países, que podem (ainda) exprimir-se livremente e ir a votos, mas a legislação eleitoral, o controlo dos “media“, a aposta nacionalista e (digamo-lo sem receio) o apoio da Igreja Católica polaca são fortes dissuasores.

Não há “uma” Europa e os eixos de clivagem são muitos e estão à vista. Mas nenhuma explicação pretensamente profunda das diferenças entre o Ocidente e o Oriente da Europa, seja pela Igreja Ortodoxa (e os checos e polacos?), seja pelo passado bizantino e otomano (e os húngaros e os polacos e a epopeia de João Sobieski?) me parece fazer qualquer sentido.

O único ponto comum que julgo poder explicar esta clivagem (visível também nas diferenças entre “Wessies” e “Ossies” na Alemanha) é a ditadura mascarada de democracia popular vigente nestes países, que, longe de arejar mentalidades, operou como uma glaciação que, quando veio o degelo, viu retornarem os fantasmas do passado.

O assassinato por Hitler e seus seguidores (na Hungria chamava-se Szalási) de milhões de judeus, entre os quais os grandes criadores culturais da Mitteleuropa, limpou o terreno para essa transformação, que me levou a não reconhecer naquela Europa o mundo em que viveu Stefan Zweig.

A Europa do “feliz apocalipse” (Herman Broch sobre a Viena dos fins do século XIX) transformou-se numa Europa do “pós-apocalipse”, saída do sequestro, sim, mas já profundamente desfigurada.

A Europa é múltipla e diversa e só no reconhecimento das suas diferenças pode progredir. Mas há princípios inalienáveis de democracia política e social de que não podemos abdicar. A Oeste como a Leste.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
21 Agosto 2023 — 23:45


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330: O fogo à volta de nós

 

🇵🇹 OPINIÃO

“We developed small guts and big heads
by cooking food; we climbed the food chain
by cooking landscapes; and now we have
become a geologic force by cooking the planet.”

(Stephen J. Pyne, The Pyrocene )

Prometeu roubou o fogo aos deuses e tornou-se assim figura tutelar da reivindicação do poder humano sobre todas as ordens que pretendam submetê-lo. Mais que a independência conquistada aos deuses, foi a dominação crescente da Natureza e dos seus recursos que a conquista do fogo veio abrir à Humanidade.

O fogo assume assim na nossa psique (como assinalou Bachelard na sua Psicanálise do fogo) uma imagem ambivalente de destruição e de criação, de qualquer coisa em que, desde crianças, somos proibidos de tocar, mas através da qual e na qual se realizam poderosas mudanças em todo o nosso espaço de vida.

O recente e fascinante livro de Stephen J. Pyne The Pyrocene mostra a passagem de uma forma de dominação do fogo que se equilibrava com os mecanismos naturais e construía um compromisso entre a força criadora dos humanos e as forças cegas e incontroláveis do mundo natural, para uma nova utilização industrial do fogo, alimentada por combustíveis fósseis, que, conjugada com o aquecimento global, nos leva a termos passado a “cozinhar o planeta”.

Para citar este livro:

“As sociedades pré-industriais e indígenas operavam amplamente dentro de largos constrangimentos ecológicos que determinavam como e quando as paisagens vivas podiam ser queimadas.

Estas antigas relações entre os humanos e o fogo romperam-se quando começámos a queimar biomassa fóssil e o poder de fogo da humanidade passou a ser ilimitado. A mudança climática catalisada pelo fogo globalizou os seus impactos numa nova época geológica.”

Os grandes incêndios devastadores não são novos na Natureza e na História – mas agora a nossa relação com a produção e utilização do fogo veio trazer profundas transformações na nossa relação com esse elemento, tornando o nosso medo infantil de tocar o fogo num pavor perante o avanço incontrolável das chamas sobre as nossas cidades e as nossas casas.

A situação de ver aproximar-se de nós o fogo, dependendo apenas da álea da orientação dos ventos, e nada podermos fazer, a não ser defender-nos como melhor pudermos, é já comum a muitos portugueses, mas foi a primeira vez na minha vida que vivi essa experiência, aqui na Praia de Odeceixe.

Diga-se que os bombeiros estiveram activos e incansáveis e que as casas e as populações foram defendidas até ao limite (é impressionante ver o círculo de cinzas que rodeia as casas na vila), também com o esforço dos moradores e a solidariedade dos imigrantes; e assinale-se que a GNR nos veio dar instruções precisas, mandando evacuar a praia por caminhos seguros, instruindo-nos, aos que tínhamos casa na praia, a que ficássemos dentro das casas, onde estaríamos a salvo, e que estivéssemos atentos às sirenes de alarme.

Nós, veraneantes em casas alugadas, não tínhamos ali terras, nem sobreiros, nem animais – mas receámos, bons burgueses, pelos nossos automóveis!

A jovem militar da GNR confirmou todos estes receios, os veículos poderiam arder, mas pôs-nos a questão mais razoável e pragmática que podíamos ter ouvido: “Não têm os carros no seguro?” O importante era protegermos as nossas vidas.

Graças ao vento, o fogo não continuou a sua progressão em direcção à praia, deixando apenas um manto negro de cinzas a cobrir areias e terraços e um ar cheio de fumo e de cheiro de fumo, impróprio para os nossos pulmões. Deste fogo não teríamos podido com tanta simplicidade afastar os dedos das nossas crianças.

Mas na esplanada da praia e no café da vila ouvimos o testemunho dos que tinham perdido culturas, edifícios, árvores, animais. Uma sensação de alívio misturada com resignação juntava-se ao desgosto das perdas e dos prejuízos. Uma história que, ninguém tem dúvidas, irá continuar pelos próximos anos.

Odeceixe, Agosto de 2023.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
15 Agosto 2023 — 00:19


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305: As férias e o verão

 

🇵🇹 OPINIÃO

É triste no outono concluir
que era o verão a única estação

(Ruy Belo)

Por muito que se vá esboroando a diferença entre tempo de trabalho e tempo de lazer (há um interessante dossier sobre este tema na última edição da revista Electra), as férias, essa recente invenção da Humanidade (duramente arrancada pelos trabalhadores à classe possidente, só começando a haver férias pagas no ano de 1936) continuam a significar para nós um tempo que nos pertence inteiramente, que não temos que partilhar com os nossos empregadores ou os nossos chefes e de que dispomos para as aventuras da criatividade, para a vida afectiva e amorosa ou para a plena alegria do ócio.

Esse significado forte da palavra “férias” é desde logo um convite à frustração, pois o tempo nunca é inteiramente nosso, a menos que vivamos numa ilha deserta como Robinson Crusoé, mas aí o tempo que teríamos de dedicar à nossa sobrevivência iria anular qualquer veleidade de tempo livre. Só é possível o ócio se houver sociedade.

Digamos então que as férias são sempre um conflito entre a nossa liberdade e as nossas múltiplas sujeições. Mas, ainda assim, valem a pena.

O verão é a única estação em que vislumbramos o paraíso. Que seja apenas ilusão e miragem não apaga a força dessa visão, que continuará a iluminar-nos pela vida fora, do mesmo modo que a arte é uma promessa não cumprida de felicidade. Ainda Ruy Belo: “Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar/ caminha para o mar pelo verão”.

E encontramo-nos muitas vezes durante a vida com essa miragem, sempre que nos chegamos ao mar, nas leituras prolongadas pelos dias dentro, nos amores fugazes mas não menos dolorosos dos Verões, e mais tarde nos mergulhos dos filhos, que voltam à tona de água e já são os netos, pois nós “somos crianças feitas para grandes férias” e só nelas aprendemos “em que medida merecemos a vida” (mais uma vez Ruy Belo).

Escrever será compatível com o pleno gozo das férias? Para quem, como eu, escreveu sempre por dentro dos intervalos de uma vida, a questão nunca se pôs.

Do mesmo modo que já não tenho “leituras de férias”, porque leio o ano todo (e não voltam mais aquelas férias em que lia com todo o tempo a Recherche du Temps Perdu ou a Guerra e Paz), escrever ainda hoje corresponde para mim a um tempo de ócio e de criatividade e não à dureza e ao esforço daquele penoso trabalho de escrita que nos descrevem Flaubert e Saramago, os grandes.

Eu não suspendo nas férias esta minha colaboração no DN, porque a disciplina da produção de um artigo por semana faz falta ao meu trabalho pessoal de escrita.

Procuro muito tempo o tema, escapando quanto posso à mera reacção irritada aos dislates do dia, e raramente ele se me perfila, nítido como uma encomenda, evidente como o sol.

Vivo aqui também no terror da página branca e o que me faz sofrer não é o trabalho da escrita, é a sua própria ocorrência, contra a luz cega da página branca ou do écran do computador.

As férias tornaram-se mais um apelo do que uma plena realização. Nunca desligamos do peso do mundo, agora que estamos sempre em contacto e contactáveis a toda a hora, e o nosso tempo, mesmo em férias, continua a ser medido e pesado pelos mesmos relógios do tempo de trabalho.

Já não poderemos aperceber, como Ruy Belo, Deus a andar “à beira de água de calça arregaçada” e vivemos intensamente as nossas férias como imagem e saudade das férias que já foram, como esbatida visão do paraíso.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
01 Agosto 2023 — 00:31


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282: Um cônsul no seu labirinto

 

🇵🇹 OPINIÃO

Fui cônsul-geral de Portugal no Rio de Janeiro cinco anos, entre 1998 e 2003. A razão por que vivi com tanta intensidade a minha experiência carioca deveu-se muito aos meus amigos brasileiros e à felicidade de os ter encontrado.

Viver temporariamente num lugar, com suficiente atenção e disponibilidade para um necessário despaisamento, se não nos liberta totalmente dos estereótipos e clichés que fomos acumulando pela vida fora, permite pelo menos pô-los em causa, virá-los de pernas para o ar e fazer a limpeza da nossa percepção e dos nossos preconceitos.

O brasileiro é o português à solta, dizia Agostinho da Silva. Por não querer reduzir a dimensão do brasileiro à matriz portuguesa, diria que é antes o português que se solta, ou se sente mais solto, no Brasil.

Os pobres camponeses de Portugal que buscavam no Brasil melhor vida e maior reconhecimento encontravam um espaço mais livre, menos constrangedor nessas terras, apesar dos empregos duros e da troça dos locais aos Manéis e Joaquins, identificados como toscos e boçais até ao fim da vida.

Tive a sorte de estar presente, logo após a minha chegada ao Rio, em casa de gente amiga, num encontro preparado por José Aparecido para receber Mário Soares.

Conheci nesse jantar alguns dos amigos que me fizeram, a mim e a minha mulher, cariocas de gema. Lembro-me que Millor Fernandes, ao ouvir falar de mim como poeta, exigiu como prova um livro meu. Não sei porquê, eu até levava um exemplar comigo.

O Millor foi sentar-se no chão, a alguma distância de nós, e leu com atenção algumas páginas. Quando me devolveu o livro, senti que tinha sido aprovado.

Os desenhos em que Millor Fernandes e Chico Caruso nos profetizavam, a mim e a minha mulher, um destino carioca, se não se verificaram na vida real, ficaram gravados nos nossos mais fundos afectos.

A casa onde fomos morar era o palácio construído nos finais dos Anos 50 do século passado para ser a residência do embaixador de Portugal, quando a capital do Brasil estava no Rio (“e sempre estará” foi a garantia que o ministro brasileiro de Exteriores deu então à nossa diplomacia).

Quando a capital mudou para Brasília, ficou aquele palácio sem destino manifesto e a nova residência da embaixada em Brasília ainda hoje por construir.

Não fui o primeiro cônsul a utilizar aquelas enormes instalações para actividades culturais. Tive condições, vontade e apoio para as desenvolver de modo sistemático e regular, organizando concertos, sessões de poesia, lançamentos de livros, conferências e tertúlias, até rodagem de novelas da Globo, ganhando os cariocas para a frequentação assídua daquele espaço.

Paralelamente, promovi naquele mesmo espaço encontros e jantares de confraternização com a comunidade portuguesa do Rio de Janeiro. O apoio constante e activa participação e empenhamento de minha mulher estiveram na raiz de tudo o que fizemos e de tanto que recebemos.

O que não se pode escrever nesta prosa de relatório convencional (e contudo verdadeiro!) é o forte eco de felicidade que acompanhava toda esta vivência e a repercutia numa intensidade leve, que chegava para mudar os nossos fundamentos.

Os desenhos em que Millor Fernandes e Chico Caruso nos profetizavam, a mim e a minha mulher, um destino carioca, se não se verificaram na vida real, ficaram gravados nos nossos mais fundos afectos.

Num passeio anónimo pelo centro do Rio encontrei um dia dois portugueses que meteram conversa comigo. Estes portugueses viviam há muitos anos no Brasil e aconselharam-me vivamente:

– Patrício, perca esse sotaque português! Fale brasileiro, como nós falamos. Verá que a sua vida se tornará mais fácil.

Agradeci e não lhes expliquei que o meu estatuto me dispensava, para a minha aceitação plena pelos brasileiros, dessa prova fundamental, que na canção de Noel Rosa se dizia “já passou de português”.

O português que era, afinal, senão a larva ou o embrião dessa realidade superior que era o brasileiro?

Diplomata e escritor

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Luís Castro Mendes
25 Julho 2023 — 00:37


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262: Como habitar poeticamente o mundo?

 

🇵🇹 OPINIÃO

“Poeticamente habita o Homem”
Hoelderlin

“Que mais nenhuma árvore se descerre
para as folhas do poeta, nenhuma cotovia
para que ele encontre a música”

Andreia C. Faria

Por que razão, de tantos novos títulos de poesia (ela existe com força, mesmo que se não fale dela) publicados este ano, eu destaco Mulher ao mar e corsárias de Margarida Vale de Gato, Adriano de Tatiana Faia e Não Desfazendo de Rita Taborda Duarte?

Não posso dizer que sejam em absoluto os melhores livros de poesia que li este ano, apenas sinto (crítica impressionista, no seu pior…) que neles se veicula uma nova linguagem para a nossa poesia e um novo posicionamento para a figura do poeta.

O mais interessante é verificarmos que estas poetas não vieram romper barulhentamente com linguagens e gestos passados, elas vêm simplesmente afirmar o novo e olhar para o passado a partir desse novo, mas com um olhar tranquilo, que não precisa de matar pai e mãe e chamar-se a si próprio de maldito para afirmar o seu brilho e a sua originalidade.

Seria, porém, demasiado fácil especular sobre um pretenso carácter feminino dessa atitude de tranquila interrogação à poesia que apercebemos nestas novas autoras.

É que a beleza deixou de ter de ser convulsiva sob pena de inexistência, e um humor que nos põe em guarda contra os delírios da “aura poética”, como o de Rita Taborda Duarte, acaba por ser mais disruptivo do que todas as convulsões imaginadas.

O saber poético conhece a sua mais perfeita encenação nos poemas de Margarida Vale de Gato e a pesada herança clássica aligeira-se até a uma (usemos destemidamente o lugar comum em que se transformou uma bela expressão de Milan Kundera) “insustentável leveza” na poesia de Tatiana Faia.

É uma poesia culta, esta que nos chega destas três vozes, mas não estamos de modo algum diante da figura do “poeta sábio”, junto do qual “as ménades não voam”, do poema de Sophia. A leveza destes textos, a sua desenvolta ironia com a História, ajudam-nos a viver de modo novo a poesia neste tempo que a nega dia a dia.

Cada vez mais temos o sentimento que as velhas artes (a caligrafia, a recitação) protegem o que é humano em nós da emergência de um mundo transumano.

Não é já a “desumanização da arte”, de que se queixava Ortega y Gasset, é mesmo a substituição do humano pelo virtual e pelo artificial e os velhos saberes, como o da poesia, ajudam-nos a resistir com todas as nossas faculdades humanas, talvez demasiado humanas, ao império da digitalização e da tecnocracia.

Não é por acaso que se começa agora a falar (v.g. Jean Claude Pinson, Pastoral) numa “eco-poesia” e se liga a actividade poética à nossa inserção na terra, ao nosso (difícil) relacionamento com Gaia.

A luta do humano com o natural, que foi necessária para afirmar a diferença e a dignidade da nossa espécie, entra agora numa nova fase de diálogo, que, sem esquecer as contradições que permanecem, aponta a um novo e necessário entendimento com a Natureza.

A isso nos obriga a crise que foi desencadeada com o Antropoceno, um processo que não cabe nas nossas previsões: Ressurreição ou Apocalipse?

E cumpre falar agora, como do quarto mosqueteiro numa lista de três, do notável livro de João Moita que túmulo em que talhão, em que a visão da terra devastada anima uma poética disfórica, de rigorosa contenção verbal e de grande riqueza imagética, revelando-nos um poeta novo com uma voz própria e uma proposta diferente.

O nosso optimismo hoje, contrariamente ao do passado, põe as suas esperanças na imprevisibilidade dos acontecimentos e não num futuro determinado cientificamente a levar-nos ao paraíso.

Procuramos novos laços entre nós e a terra, como um lavrador que arasse minuciosamente o seu campo na expectativa de uma semente desconhecida.

E é por isso que falamos de poesia.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
18 Julho 2023 — 00:27



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249: No campo

 

🇵🇹 OPINIÃO

“No campo; eu acho nele a musa que me anima: A claridade, a robustez, a acção”
Cesário Verde

“Piú nessuno mi porterá nel Sud”
Salvatore Quasimodo

Por muito que queiramos fechar-nos no pequeno mundo da nossa pátria imaginada (como são todas as pátrias), a brutal realidade das coisas depressa vem arrancar-nos desse sonho e abrir-nos os olhos para o mundo.

Um monte familiar no Alentejo, onde este citadino irrecuperável que vos escreve costuma passar alguns fins de semana, basta para fazer enfrentar a estranha prosa do mundo.

O proprietário do monte vizinho apascenta vacas nos terrenos da sua propriedade e, porque as vacas não respeitam estremas, a convivência com aquelas ruminantes tornou-se um hábito mais dessas nossas escapadas pelo campo (“uma sala com árvores”, na definição do Jacinto de Tormes, antes da sua conversão à ruralidade imaginada) e a companhia das vacas acrescentava alguma sabedoria à nossa vilegiatura.

Agora, diz-me o vizinho, as vacas vão ser vendidas para Espanha. A seca dizimou os pastos, o fim da cultura cerealífera na nossa terra e as guerras dos russos e ucranianos no grande celeiro das terras da Europa Oriental, elevaram o preço dos alimentos das vacas até montantes impossíveis para os nossos agricultores.

E eis que ao citadino que vem descansar na magnífica “sala com árvores”, que familiares amigos lhe proporcionam, vai faltar esse elemento de bucolismo que a companhia pensativa das vacas lhe oferecia para os seus fins de semana campestres.

A ordem (ou desordem) do mundo, a Política Agrícola Comum, o mercado mundial dos cereais, a seca que prenuncia a desertificação do nosso Sul, todos estes fenómenos, cruéis como o bater de asas da borboleta que desencadeia as catástrofes, vieram abater-se sobre um monte alentejano, que se julgava tão longe do mundo que até está fora da cobertura das nossas redes telefónicas, mas que vê partirem as vacas suas vizinhas numa migração afim das migrações dos homens, a fugir para procurar o que comer.

Com a terra crescentemente dedicada às culturas intensivas, com os pastos secos e a aridez reinante, que pode o citadino fazer senão converter os montes e fazendas em residências de fim de semana e transformar finalmente o campo nessa grandiosa “sala com árvores” que o Jacinto do Eça anunciava?

O campo não nos inspira mais, como a Cesário, “a claridade, a robustez, a acção”. À medida que secam as terras e se esgotam os subsídios europeus, os camponeses continuam o seu êxodo silencioso para as cidades ou para o estrangeiro, lá onde, à semelhança das vacas que vão para Espanha, possam encontrar trabalho e alimento.

O interior transforma-se, assim, perigosamente, num jardim de recreio das cidades, onde se retraem as actividades agrícolas e se expandem as grandes culturas intensivas, de retorno mais fácil e directo.

O poeta italiano Salvatore Quasimodo dizia-nos que o Sul está “cansado de solidão”(“stanco di solitudine“) . Sempre assim foi: até as vacas se despedem agora de nós.

Não, nós não temos saudades do tempo dos latifundiários absentistas. Mas poderemos nós (é um dizer) viver sem as nossas vacas?

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
11 Julho 2023 — 00:46



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