🇵🇹 OPINIÃO
Porque é que seres humanos normais aceitam rumores, mesmo que eles sejam falsos, destrutivos e bizarros? – é com esta pergunta cruciante, e bem actual, que o grande jurista norte-americano Cass Sunstein começa o seu livro Dos Rumores – Como se espalham boatos, por que acreditamos neles e que podemos fazer (trad. portuguesa, Publicações Dom Quixote, 2010).
Antes de mais, diz-nos Sunstein, é necessário saber como os rumores começam, e saber que começam, na maioria dos casos, por propagadores conscientes, gente que tem a perfeita noção de que está a difundir uma mentira vil.
Há propagadores egoístas, que visam promover os seus interesses prejudicando terceiros, há propagadores altruístas, que espalham boatos ao serviço de causas, e há, enfim, propagadores maliciosos, que procuram disseminar rumores, inverdades, não por interesse próprio ou em nome de uma causa, mas simplesmente para causar estragos.
Há quase 50 anos – mais precisamente, há 42 anos, em Outubro de 1981 -, a manequim e cantora Laura Diogo, coroada Miss Fotogenia no Japão, em 1979, e uma das vocalistas da banda Doce, foi alvo de um rumor gritante, que incendiou Portugal de cima a baixo e que hoje, quase cinco décadas volvidas, ainda se lhe cola como uma segunda pele, uma cruz que terá de carregar para sempre, como uma pena infamante e perpétua, pior do que lepra ou cadeia.
Tudo começou, parece, por obra e graça, ou desgraça, de dois propagadores maliciosos, dois médicos que, quando as Doce se encontravam a actuar na discoteca Skylab, na noite de 22 de Outubro de 1981, decidiram espalhar um boato em duas boates diferentes, no Stones e n” O Tesouro, dizendo que Laura Diogo tinha dado entrada nas urgências do Santa Maria após ter sido sodomizada por um jogador do Benfica, o avançado Reinaldo Gomes – ou, se quisermos, Maurício Zacarias Reinaldo Rodrigues Gomes, nascido em Bissau, na Guiné, em 2 de Novembro de 1954, que John Mortimore levou para a Luz em 1978, após ter estado no Vila Real (1973-1974), no Famalicão (1974-1978) e, de permeio, emprestado na Régua.
Uma das cantoras da banda, Fátima Padinha, diz que o boato chegaria, inclusive, a ser discutido na Assembleia da República, havendo dele registo nas actas dos trabalhos parlamentares.
Da diligente pesquisa que efectuámos, porém, o mais que se encontra desse período, buscando pelo nome do grupo, foi o então deputado da UEDS, António Vitorino, a afirmar em São Bento que o governo da AD agitava “doces amanhãs que cantam” ou o deputado da UDP, Mário Tomé, a bradar que o mesmo governo andava a assassinar operários e que “as suas palavras doces já não podem enganar ninguém”. Das moças, nem rasto.
Seja como for, é facto que a estória difamatória alastrou como faísca na pradaria (Mao Zedong) e, como também sublinha Padinha, às tantas toda a gente tinha um amigo, um tio ou um primo enfermeiro que estava de banco em Santa Maria na noite fatídica e que jurava a pés juntos ser tudo mais que verdade.
Anedotas, graçolas, piadolas, risinhos boçais e alarves, houve de tudo um pouco, naquele que foi o primeiro grande escândalo sexual do pós-25 de Abril.
O humorista Vilhena, claro, encheu o prato, o caso até inspiraria um abominável jogo para o ZX Spectrum, o “Paradise Café”, pois, na verdade, a história de Reinaldo/Laura tinha todos os ingredientes do barbarismo: um grupo de jovens raparigas, das primeiras girls band da Europa, quiçá do mundo, com poses e visuais arrojados, roupagens minimalistas, cortadas por José Carlos; um acto sexual exquis para os cardápios eróticos da altura, ainda longe do episódio Taveira; uma branca ou, melhor, uma loira com um negro, eterno clássico da javardice, mescla de racismo e sexismo, numa tradição que passa pela “Manteigui” e pela “Ribeirada”, atribuídas por erro a Bocage, que atravessa doutos autores (Paolo Mantegazza, Fisiologia da Mulher, 1893), nomes consagrados das letras (A. Cabral, Vénus Geradora, 1904; Raul Brandão, Memórias, 1919; Alfredo Gallis, Helena Lourenço ou o Preço da Virgindade, s.d.; Fausto Duarte, Auá. Novela Negra, 1934; Hernâni Anjos, Um Negro no País das Loiras, 1968), filmes de antologia (Mandingo, de 1975, com James Mason) e outros não tão antológicos assim, como os do pitéu pornográfico Backs on Blondes (para quem quiser mesmo saber mais, cf. Serge Bilé, La légende du sexe surdimensionné des noirs, Paris, 2005).
Quando a coisa estoirou, as Doce preparavam-se para ir numa tournée pela América e foi já do Canadá que decidiram passar uma procuração ao jovem advogado Agostinho Pereira de Miranda, amigo de António Avelar de Pinho, co-produtor do Fungagá da Bicharada, ex-Banda do Casaco e autor de muitos sucessos do grupo (v.g., Aliabá, um homem das Arábias ou Bem Bom).
Miranda trabalhava no escritório de Francisco de Sousa Tavares, onde defendera, em 1980, o “piratinha do ar” Rui Rodrigues, que aos 16 anos desviara um avião da TAP na Portela, e, em parceria com Miguel Sousa Tavares, Roberto Martelli, membro das Brigadas Vermelhas.
Foi apresentada queixa na Judiciária contra João Duro e Guilherme Martins, membros do corpo clínico do Santa Maria e alegados autores do boato, e requereu-se uma certidão negativa ao hospital, provando que nenhuma das Doce tinha aí sido atendida no período em causa.
“O caricato de tido isto é que as Doce tiveram de pagar a uma pessoa para fazer pesquisa nos arquivos do Hospital, porque este não disponibilizou sequer um funcionário para a tarefa, alegando falta de pessoal”, recordou Pereira de Miranda ao Diário de Notícias, de 10/8/2021, acrescentando que lhes propôs fazerem uma arrasadora conferência de imprensa na Portela, mal regressassem do Canadá, mas percebeu ser uma ideia impossível “já que estavam completamente arrasadas.”
Além da queixa na Judiciária, foi feita participação na esquadra da PSP de Belém, mas o processo, conduzido por Pereira de Miranda e, depois, por Miguel Sousa Tavares, andou quatro anos em bolandas, à espera de melhor prova, até ser arquivado, sem que Laura, as Doce ou Reinaldo recebessem um cêntimo de indemnização.
Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.
Em 2021, aquando da exibição de um documentário televisivo sobre as Doce, emitido pela RTP (Bem Bom – Realidade e Ficção adaptado do filme homónimo de 2020, realizado por Patrícia Sequeira), soube-se a origem da vil mentira: na noite de 22 de Outubro de 1981, um travesti que usava uma cabeleira loura deu entrada, alquebrado, nas urgências do Santa Maria, dizendo chamar-se Laura Diogo, o seu nome artístico; quando estudava Psicologia (que concluiria na Universidade da Florida), Laura chegaria a conhecê-lo e este pediu-lhe que o perdoasse – tarde demais, estava o mal feito e o caldo para lá de entornado.
Meses antes, em Maio de 1981, já tinha circulado outra histórica, a de que as Doce tinham sido presas após terem feito um espectáculo de striptease numa boate de Peniche, mas seria o “caso Reinaldo” que acabou por pegar, até por uma calamitosa intervenção da Ordem dos Médicos (a qual, segundo Fátima Padinha, chegou a emitir um comunicado a dizer que não tinha sido Laura, mas Padinha a ser assistida, e no Hospital Particular) e por uma não menos calamitosa intervenção do jornal Tal e Qual, que durante semanas faria manchetes com o sucedido naquela noite sangrenta.
Aparentemente, a carreira das Doce não sofreu nem terminou por causa do boato: em 1982, a banda obteve o primeiro lugar no Festival da Canção, com o mítico Bem Bom, e representou Portugal na Eurovisão, aí regressando em 1984, com O Barquinho da Esperança.
O fim das Doce, segundo as próprias, deveu-se muito mais à saída, em 1985, de Lena Coelho, por ter engravidado (foi substituída por Fernanda de Sousa, actual Ágata), e, um ano depois, de Fátima Padinha, na mira de uma carreira a solo, que não correu bem. Anunciariam o fim do grupo num programa de Júlio Isidro, despedindo-se com o duplo álbum Doce 1979-1987.
Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.
Numa longa e importante entrevista à revista Flash!, de 22/7/2021, a ex-mulher de Pedro Passos Coelho e mãe de duas das suas filhas, que já venceu uma batalha contra um cancro da mama e uma depressão, traça um retrato do Portugal dos anos 1980 que vale mais do que muitos tratados de sociologia, descrevendo um país paroquial e atrasado, com terras desprovidas de luz ou água canalizada, sem acessos nem redes viárias (“primeiro que se chegasse a Bragança, tinha que se sair às sete da tarde do dia anterior para chegar lá às oito da manhã”), com uma imensa distância entre a capital e a província, mas, ao mesmo tempo, com uma distribuição mais uniforme da população pelo território: “em Lisboa, as pessoas vestiam-se de uma maneira e andava-se 100 a 150 quilómetros e as pessoas já eram de outra maneira.
A ruralidade era um factor presente. O país era todo habitado, hoje em dia está todo à beira-mar. O país era vivido e havia uma décalage enorme entre o que era a urbanidade e a ruralidade.”
Fátima, que diz não ter sido vítima de qualquer assédio ao longo da sua carreira musical, recorda ainda um ponto curioso, o desprezo das elites da cultura pelo trabalho da banda: segundo ela, por alturas do lançamento de Bem Bom, Maria Teresa Horta terá dito urbi et orbi que as Doce eram mais pornográficas do que as prostitutas do Cais do Sodré. Desprezível.
E desprezível tanto mais que, como bem notou o investigador Marcos Cardão, “as Doce veicularam novas formas de vida, temáticas e imaginários” e, no Portugal a preto e branco dos anos 80, “encenaram novos modos de vida e operaram pequenas modificações sobre as condutas, contribuindo possivelmente para remover um catálogo interiorizado de interdições que actuava sobre os corpos e as consciências” (“Pois Claro! Música, política e desejo no Festival RTP da Canção, 1975-1982”, Ler História, nº 67, 2015, p. 44).
Uma vez, ouvi na rua um africano em lamento: “é sempre o preto que paga…”, dizia ele, resignado. Aqui sucedeu o mesmo.
De todos os protagonistas, Reinaldo Gomes foi, provavelmente, o que mais sofreu e perdeu: as Doce nunca o conheceram, mas Fátima Padinha afirma, sem rodeios, que “ele é que realmente foi uma pena, porque lhe estragaram a vida.
Sabemos que estava no apogeu da carreira e depois tiveram até que tirar o filho da escola porque era insultado. Tinham um menino de oito ou nove anos que teve de ir para casa dos pais da mulher, em Vila Nova de Famalicão.
A família teve mesmo de se retirar para se afastar disto tudo.” Reinaldo, cuja mulher chegou quase a pedir o divórcio na altura e que acabou por sair do Benfica, indo jogar para o Boavista (e terminando a carreira em regresso ao Sport Clube da Régua, 1987-1988), vive hoje no Luxemburgo. Em 2021, quando a TV7Dias o contactou para falar sobre o caso, ainda se mostrou atemorizado: “Tenho de falar com o meu advogado, Isso para mim é muito complicado.
Quando se bate nesse assunto, fico na mesma, como se fosse o primeiro dia.” Depois, reiterando o óbvio, afirmou que tudo não passou de “um boato maldoso” e de “uma grande mentira”.
Cass Sunstein termina o seu livro sobre os boatos e as fake news escrevendo que “o êxito ou fracasso dos rumores depende em larga medida das convicções prévias das pessoas”.
Nos anos 80, época em que, por ano, se vendiam 3,5 milhões de singles, quatro milhões de álbuns e um milhão de cassetes, um país inteiro acreditou – e, sobretudo, quis acreditar – na história de Laura e Reinaldo porque estava piamente convicto de que, por cantarem semidespidas e terem poses atrevidas, aquelas raparigas eram, teriam de ser, sexualmente promíscuas e moralmente desatinadas.
O aditivo racista acabaria por compor a história, falsa do princípio ao fim, coisa que na altura não importou a ninguém – do que se sabe, à época nenhuma voz se ergueu para defender a honra perdida de Laura Diogo, das Doce e, já agora, de Reinaldo Rodrigues Gomes. Bem Bom? Não parece.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
DN
António Araújo
16 Julho 2023 — 00:29
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published in: 2 meses ago