408: Da incontinência oratória à palavra de prata

 

🇵🇹 OPINIÃO

“Nos últimos dias, (…) o Presidente da República entrou num frenético processo de incontinência oratória. Possuído por um entusiasmo esfuziante, o homem não se cala, desnudando-se, e ao seu pensamento mais profundo, cujas raízes se situam no antes do 25 de Abril”.

Quando mostrei este trecho a um amigo, ele olhou para mim com ar sério e disse: “tu vais dizer isso de SExa Lacrau?…”. Tranquilizei-o. “O texto que cito é do dirigente do PCP José Casanova a respeito de Cavaco Silva. Encontrei-o num artigo-obituário do Observador“.

Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) é um dos políticos fulcrais desta geração. É um homem que não parece mover-se por emoções ou por dinheiro. Apesar da sua carreira como professor de Direito, o sal da sua vida é a busca pelo poder [e holofotes]. Iniciou-a como jornalista e dirigente do Expresso.

Daí passou para a política activa, tendo sido ministro e ascendendo depois à liderança do PSD. Não teve sucesso no cargo nem na candidatura ao município de Lisboa. Teve a clarividência de perceber que o acesso ao poder teria de ser feito por outra via.

Tentou despir a pele de criador de factos políticos e de jantares com vichyssoise e vestiu a de avozinho amoroso, tendo-se tornado comentador político televisivo, com enorme sucesso. Foi, porventura, então que se apercebeu que a essência do poder não é o exercício de cargos políticos ou institucionais.

É a capacidade de influenciar, em última análise condicionar, decisões relevantes. E, numa democracia, a opinião do comentador político preeminente, que comunica directamente e é ouvido atentamente por milhões de telespectadores, conta e muito.

Além disso, pode facilitar o acesso ao cargo de mais alto magistrado da nação, como sucedeu. E se, como “presidente dos afectos”, conseguir manter altos índices de popularidade até ao final do seu segundo mandato, não terá necessariamente de retirar-se do palco político.

Em especial se o palco da luta política estiver profundamente fragmentado e necessitar de um árbitro institucional respeitado pela generalidade dos cidadãos (é esta diferença que a soberba e vitupério de Cavaco Silva não lhe permite ver; ele será sempre um chefe de facção inculto, desprezado pela metade do país que não é de direita).

Isto coloca a liderança socialista numa situação complexa – por um lado, o governo necessita ter uma relação estável com o PR; por outro, é essencial diminuir até 2026 a quota de popularidade de MRS sob pena de a margem de manobra do PS sair enfraquecida no pós-2026. Parte do despique vocal entre MRS e líderes do PS advém deste dilema.

Apesar de tudo, neste despique MRS não tem causticado muito o governo, incluindo o PM, quanto a promessas como as “casas (26 mil fogos) para todos em 2024”, as 12 mil camas em residências universitárias entre 2019 e 2022 e outras similares.

Em parte, porque quer continuar bem visto pelo eleitorado tradicional do PS. Mas também porque não há-de querer ser apodado de força de bloqueio e que lhe tentem imputar o que o Executivo não foi capaz de fazer.

Não há dúvidas que, no primeiro mandato, a generalidade dos cidadãos gostou de ter um presidente simpático, desempoeirado, solidário, aberto ao contacto, extrovertido. E continua a gostar de MRS, como todas as sondagens de popularidade mostram.

É inquestionável que a verbosidade descomedida é uma componente importante da persona do “presidente dos afectos” – selfies, beijinhos e abraços, verborreia, de permeio com uma [encenação de] grande empatia para aqueles que contacta, escuta, conforta. Mas MRS tem tido derrapagens inusitadas.

Para quem tem fama de pensar e medir a palavras que diz, ultimamente vem falhando no controle da sua torrente palavrosa, como reflectido em comentários despropositados relatados nos media e nas redes sociais.

Num deles, fez uma “piada” intolerável com o peso de uma mulher que se sentava numa cadeira. Noutro, “gracejou” sobre o decote de uma jovem. A cereja no topo do bolo foi a frase-síntese num evento aquando da recente visita de Estado ao Canadá: “somos fado, somos bacalhau, (…) somos Cristiano Ronaldo!”.

As reacções nas redes sociais, e não só, não se fizeram esperar. Uns porque não imaginavam ter votado num animador de eventos populares. Mas, acima de tudo, porque esperamos mais de quem nos representa, sobretudo quando se trata de alguém preparado, culto e inteligente.

Talvez se o permanente caudal palavroso diminuísse, MRS pudesse dedicar mais tempo a fazer discursos com o nível que se espera de um Presidente da República, e dele em especial. Tendo sempre presente a sabedoria do nosso povo que ensina que “a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”.

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Jorge Costa Oliveira
20 Setembro 2023 — 00:28


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391: Carlos Costa, Cavaco Silva e a inépcia na implosão no BES

 

– “… Cavaco não teve sequer a humildade de reconhecer que se enganara e pedir desculpas aos milhares de pessoas lesadas pela actuação criminosa dos dirigentes do BES /GES. É esta criatura, impante de soberba e acrimónia, que quer dar agora lições sobre a “arte de governar”?

🇵🇹 OPINIÃO

Recente decisão judicial ordena a libertação de fundos de que são titulares várias entidades estatais venezuelanas, congelados pelo Novo Banco.

Aparentemente, ninguém acha bizarro que o Novo Banco tenha 1,35 mil milhões de euros em fundos da Venezuela… É certo que o antigo BES teve, entre os seus principais clientes, relevantes entidades estatais venezuelanas.

Mas era o antigo BES… Diversas peças jornalísticas mostram que sempre houve muitos fundos e aplicações financeiras de entidades estatais venezuelanas no BES.

Todavia, em 2014, quando os responsáveis venezuelanos perceberam que o GES estava em situação financeira difícil, exigiram que parte das Notes emitidas pela ESI tomadas pelo Fonden e pelo Bandes (c. 400 milhões de dólares) fossem garantidos pelo BES; o que veio a suceder, tendo levado os auditores do BES a exigir um reforço das provisões de capital. O BES movimentou também significativos fundos provenientes de Angola.

Os montantes dos fundos venezuelanos e angolanos eram na ordem dos milhares de milhões de dólares e circularam pelo universo Espírito Santo, do Panamá ao Dubai, a Miami, ao Luxemburgo; mas sempre com o comando centralizado no BES, em Lisboa.

O GES criou ainda complexas redes de sociedades-veículo utilizadas para emitir instrumentos financeiros (normalmente “Notes”) que eram tomados e transmitidos dentro do grupo e colocados, a final, como papel comercial junto de clientes no retalho do BES.

A partir de 2011(?), o GES estava a vender dívida de empresas (pré)falidas. O Banco de Portugal, em especial o seu governador Carlos Costa, foi permitindo a venda deste papel comercial sem divulgar aos mercados a informação que tinha na sua posse desde, pelo menos, Novembro de 2013 (através de P. Queiroz Pereira) sobre as dificuldades financeiras das empresas do GES.

Aparentemente, ninguém acha bizarro que o Novo Banco tenha 1,35 mil milhões de euros em fundos da Venezuela…

Carlos Costa foi informando o Governo da situação do GES. E terá também informado o então PR Cavaco Silva, de acordo com declarações do próprio.

Que invoca, aliás, o Banco de Portugal quando, apenas 13 dias antes da implosão do BES, fez declarações públicas garantindo que os portugueses podiam confiar no BES “dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não-financeira, mesmo na situação mais adversa”.

Depois veio atabalhoadamente desdizer o que tinha dito e pôs a maioria parlamentar de Direita a vetar um seu depoimento na CPI.

Estes dois cavalheiros andam agora numa azáfama a publicar livros a tentar justificar o que [não] fizeram. Um, enquanto governador do banco central, não cuidou de exercer adequada supervisão bancária, nem actuou de forma decidida, afastando as raposas do galinheiro (só as garantias aos venezuelanos vão custar 400 milhões!).

Cavaco Silva, que obviamente estava não apenas a par de tudo, mas conivente (se Carlos Costa o tivesse induzido em erro quanto às declarações em que se atravessou pela situação financeira do BES, alguma vez Cavaco lhe perdoaria?…), não teve sequer a humildade de reconhecer que se enganara e pedir desculpas aos milhares de pessoas lesadas pela actuação criminosa dos dirigentes do BES /GES.

É esta criatura, impante de soberba e acrimónia, que quer dar agora lições sobre a “arte de governar”?

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Jorge Costa Oliveira
13 Setembro 2023 — 00:56


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349: Investimento soberano das Arábias no futebol e soft power

 

– Esta terminologia do “soft power” fez-me recordar uma afirmação feita pela então presidente da Assembleia da República Portuguesa: “Assunção Esteves fala do seu maior medo, o do “inconseguimento” e os cibernautas estranharam expressões como ‘nível social frustracional derivado da crise’ ou ‘inconseguimento’ de a ‘Europa se sentir pouco conseguida’ e ‘não projectar para o mundo o seu soft power sagrado’.”  Muito me ri na época 😉

🇵🇹 OPINIÃO

Em Dezembro de 2022 Cristiano Ronaldo (CR7) juntou-se ao Al Nassr numa transacção que poderá atingir 200 (?) milhões de euros / ano, enquanto em Junho de 2023 Karim Benzema e N”Golo Kante trocaram o Real Madrid e o Chelsea, respectivamente, pelo Campeão Saudita Al Ittihad.

O Al Hilal reforçou-se recentemente com Neymar Jr., que os media dizem ir receber 100 milhões de euros / ano.

Outras estrelas do futebol devem continuar a engrossar os clubes da Liga Profissional Saudita (SPL). Uma parte significativa deste “fluxo ininterrupto de petrodólares“, provém do fundo soberano saudita – o Fundo de Investimento Público (PIF).

Como parte do Projecto de Investimento e Privatização de Clubes Desportivos, quatro clubes sauditas – Al Ittihad, Al Ahli, Al Nassr e Al Hilal – foram transformados em empresas, cada uma das quais é propriedade do PIF (75%) e de fundações sem fins lucrativos.

Porque está o PIF a fazer estes investimentos multimilionários? De acordo com declarações dos seus responsáveis, para valorizar as empresas-clubes e, subsequentemente, vendê-las, privatizá-las.

A estratégia não é nova. A Qatar Sports Investments (QSI) – uma sub-holding do fundo soberano do Qatar (QIA) investindo em activos desportivos – já a adoptara.

Seguindo os passos do Sheikh Mansour [ibn Zayed Al Nahyan] (príncipe do Abu Dhabi) que adquirira em 2008 o Manchester City, a QSI adquiriu, em 2011-2012, o clube francês PSG e, em 2022, tomou 21,67% do SC Braga, sendo que também investiu no Premier Padel Tour, em articulação com a FIP.

De caminho, o Qatar organizou, em 2022, o Campeonato Mundial de Futebol da FIFA.

Paralelamente, empresas de aviação estatais dos EAU e do Qatar também investiram fortemente no futebol europeu; Emirates, Etihad Airways e Qatar Airways têm vultuosos acordos de promoção com clubes de futebol europeus no valor de centenas de milhões de euros.

Olhando para além das acusações de sportswashing, há claramente um propósito na estratégia do PIF: melhorar a imagem externa da Arábia Saudita.

Um exemplo disso é o investimento no Newcastle United, clube da Premier League inglesa; e o PIF tem feito outros investimentos desportivos internacionais – na Fórmula 1 (Aston Martin), em corridas de cavalos (Saudi Cup), boxe, ténis, luta livre (WWE) e golfe (LIV Golf).

Para a liderança da Arábia Saudita, o desporto é um dos pilares da sua estratégia de desenvolvimento nacional e diversificação económica “Visão 2030” e um veículo para melhorar relações diplomáticas e obter boa vontade política, gerando ainda investimentos no reino e contribuindo para criar novas indústrias e empregos – e o PIF está no centro desta estratégia.

A estratégia em relação ao desporto não pode ser vista de forma desgarrada da estratégia de diversificação económica noutros sectores económicos. A Arábia Saudita ambiciona entrar em várias áreas da economia do futuro, incluindo as das energias verdes, da mobilidade e armazenamento eléctricos e tecnológicas.

No que tange ao futebol, estas contratações – e demais investimentos no sector – facilitam o ambicioso plano da SPL de se tornar numa das 10 melhores ligas profissionais do mundo até 2030.

A contratação de tantas estrelas do futebol mundial vai aumentar a visibilidade e audiências da SPL, tendo já gerado acordos para transmissões televisivas / cabo em mais de 120 países.

Para além dos direitos televisivos, vai permitir várias formas de retorno aos investimentos ora feitos (e.g., patrocínios comerciais, merchandising, reforço dos laços com redes comerciais no Ocidente). Mas o retorno mais desejado pela liderança saudita é o reforço do seu soft power a nível internacional.

O objectivo é mudar a imagem de um reino ultra-conservador e arcaico onde as mulheres não podiam conduzir e a música e o entretenimento eram manifestações do demo, para um país moderno, palco de mega-eventos desportivos, aberto ao turismo e ao exterior, com boa qualidade de vida assente numa economia de serviços.

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DN
Jorge Costa Oliveira
23 Agosto 2023 — 00:02


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214: Desencanto político e novos movimentos anti-sistema

 

🇵🇹 OPINIÃO

A incapacidade de solucionar problemas estruturais como a redução populacional, o inverno demográfico, as suas consequências na segurança social, a crise na habitação, os persistentes salários de miséria, as sucessivas vagas de emigração, a progressiva ineficiência da Justiça e dos sistemas de saúde e ensino públicos, o desinvestimento público em inúmeros sectores, conduziu a uma situação de profunda descrença da população nas principais instituições políticas do país — Governo, Parlamento, partidos; descrença bem patente nos resultados de uma recente sondagem ICS/ISCTE para a SIC e para o Expresso (v. edição de 9 de Junho).

De acordo com essa sondagem, a insatisfação dos Portugueses é grande — [falta de] habitação (88%), [desigual] distribuição da riqueza (90%), [demasiados e altos] impostos (91%), [fraco] combate à corrupção (87%), [fraco] combate à criminalidade (78%), [falta de] qualidade do SNS (74%) e da educação pública (68%), [pouca] oportunidade de progressão social (76%) e [fraca] qualidade de vida em geral (79%).

Este nível de frustração, além de promover um desencanto com as instituições representativas do “sistema”, abre o caminho a movimentos anti-sistema.

Habituámos-nos a associar movimentos anti-sistema a partidos nos extremos do espectro partidário. E, como a larga maioria dos partidos anti-sistema na Europa são de extrema-direita, habituámos-nos a associar anti-sistema a ultra nacionalismo, xenofobia, intolerância a imigrantes e refugiados, posturas anti-ciência, defesa do primado da segurança.

Mas o que verdadeiramente alimenta estes movimentos anti-sistema é a reacção a um “sistema” que não resolve problemas essenciais na sociedade.

Com a progressiva insatisfação, é normal que vários partidos tentem fazer-se eco dela. O PS e o PSD personificam o “sistema”. O PCP, durante muito tempo o único partido anti-sistema, sofre do descrédito do marxismo-leninismo e da ligação dos seus líderes à clique dirigente russa, reduziu a sua base de votantes com a geringonça e tem demasiados apparatchiks.

Há uma década, a liderança do BE leu bem os sinais e posicionou-se recusando qualquer coligação com o PS, mas o seu apoio à geringonça minou essa possibilidade.

A IL percebeu a corrente de grande descontentamento e até mudou de liderança; mas a sua base ideológica — o ultraliberalismo — limita-lhe as possibilidades de crescimento (p. ex., grande parte da sociedade portuguesa continua a querer investimento público no SNS e na escola pública). O Chega ocupou o espaço vazio e bem se tem esforçado para se integrar no molde de extrema-direita referido.

Como o actual regime político-partidário continua a não a resolver problemas básicos dos cidadãos, existe espaço em Portugal para um movimento/partido anti-sistema não extremista nem radical, tipo “Movimento 5 Estrelas” italiano.

É pouco credível que um tal movimento tenha forte expressão nas eleições europeias de 2024. Talvez consiga alguma expressão em eleições municipais. Mas é nas eleições presidenciais que é mais provável que um candidato anti-sistema venha a ter mais expressão.

Candidatos fora do sistema como o Almirante Gouveia e Melo podem ter resultados surpreendentes se adoptarem um discurso anti-sistema alinhado com o profundo descontentamento dos Portugueses.

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D.N.
Jorge Costa Oliveira
28 Junho 2023 — 00:14



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118: Kissinger e a guerra evitável

 

🇵🇹 OPINIÃO

A 27 de Maio, Henry Kissinger, um dos mais importantes estrategas da política externa americana, um dos analistas geopolíticos mais influentes do mundo, e um escritor prolixo (lançou em Novembro de 2021 um livro sobre Inteligência Artificial) faz 100 anos. Na edição de 20-26 de maio, a revista The Economist sintetiza uma conversa de cerca de 8 horas com Kissinger.

Como é habitual numa abordagem americana das relações geopolíticas internacionais, parte-se da [super]potência americana e seus interesses para analisar o resto…

Kissinger conhece bem o mundo e sabe que este é hoje plural, multipolar, em rápida mutação e com clivagens várias e diversos tipos de soft power que vão bem para além de saber quem é a potência dominante…

Daí a complexidade na definição de estratégias geopolíticas. Esta entrevista ao The Economist está balizada por esta abordagem com baias tão americanas.

Pelo que a Europa pouco é referida. Kissinger não parece estar hoje tão seguro de que “se a Europa e a América não restabelecerem uma intensa relação transatlântica, a Europa acabará por ser um apêndice da Ásia“; queixa-se que “a natureza desta ligação é muitas vezes referida como um regresso à liderança americana”.

Mas tem a elegância (paternalista, mas bem-educada) de acrescentar que “pode acontecer que o que a Europa busca seja autonomia colaborativa, não orientação”. Pronuncia-se ainda sobre a Ucrânia, alterando a sua posição de 2014 em relação à sua neutralidade e à sua [não] adesão à NATO.

Mas a entrevista centra-se na relação entre os EUA e a China — um mano-a-mano bipolar, tão ao gosto do público americano. O drama, para Kissinger, é que “ambos os lados se convenceram que o outro representa um perigo estratégico”, diz. “Estamos a caminho de um confronto entre grandes potências.”

De acordo com The Economist, “Kissinger está alarmado com a intensificação da competição entre a China e a América pela preeminência tecnológica e económica.” Kissinger considera que “estamos na situação clássica de pré-I guerra mundial”, em que “nenhum dos lados tem muita margem para concessões políticas e qualquer perturbação do equilíbrio pode conduzir a consequências catastróficas” (não é bem assim, o lado chinês não tem uma situação de radicalização bipolar na política interna… mas percebe-se a mensagem).

Não é o primeiro político ocidental a alertar para uma guerra “evitável”, como a definiu K. Rudd, ex-PM da Austrália e sinólogo insigne.

Curiosamente, muitos dos actuais políticos americanos que vêm aprovando medidas progressivamente mais hostis em relação à [ascensão da] China, provavelmente basearam-se nos ensinamentos do próprio Kissinger que dizia em 2011 que “os EUA não deveriam permitir que a expansão económica e política da China reduzisse o poder dos EUA”.

Na entrevista ao The Economist, Kissinger refere ainda que a liderança da China se ressente do discurso dos “políticos ocidentais” sobre uma “ordem baseada em regras”, quando, para eles, o que isso realmente significa são as regras da América e a ordem da América.

Em bom rigor, a solução para a actual crispação entre a China e os EUA já o próprio Kissinger a havia apresentado, em Junho de 2011, num famoso “Debate Munk [702]”, que deu origem ao livro O Século XXI pertence à China?; Kissinger respondendo negativamente a J. Geiger sobre se a China se vai tornar a potência dominante, advertia que “precisamos chegar a um ponto em que a questão da dominância não ofusque o relacionamento como um todo.

Porque nenhum dos dois lados será capaz de alcançar dominância, e o esforço para alcançá-la pode levar a conflitos que façam desmoronar todo o sistema internacional.”

Além disso, [no referido “Debate Munk”] Kissinger sugeria que “a China e os Estados Unidos deverão trabalhar em conjunto, consultando-se mutuamente, e não devem cair numa posição de confronto”.

Mas acrescentava ser preciso “evitar a impressão de que estão a tentar administrar o mundo, porque existem outros países de grande magnitude – por exemplo, a Índia — que devem desempenhar papel relevante.”

E reconhecia que, “mesmo assim, o mundo agora (2011!) é tão multipolar e as questões são tão globais que qualquer tentativa de dois países, por mais poderosos que sejam, de impor as suas preferências provocaria uma reacção por parte dos outros que colocaria tudo a perder.”

Nesta entrevista ao The Economist, Kissinger também adverte contra uma má interpretação das ambições da China.

Em Washington, “dizem que a China quer dominar o mundo… mas o “que eles [na China] querem [é] ser poderosos”, diz ele. “Eles não pretendem o domínio do mundo no sentido hitleriano”, diz ele.

Como um académico, Rohan Mukherjee, escreveu recentemente, “Pequim pugna por ser tratada em pé de igualdade com a América no palco mundial”.

De acordo com o The Economist, “na opinião [de Kissinger], o destino da humanidade depende da capacidade da América e da China para se entenderem”.

“É possível a China e os EUA coexistirem sem a ameaça de guerra total com o outro?” Kissinger responde: “pensava e continuo a pensar que é possível”. Esperemos que continue a ser lido atentamente pelas elites americanas…

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D.N.
Jorge Costa Oliveira
24 Maio 2023 — 00:17


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Aqui d”el rei, que dependemos da China em metais críticos!

 

🇵🇹 OPINIÃO

Até 2050, a UE estima que a sua procura de lítio será 16~57 vezes superior à actual e que os metais críticos serão em breve tão ou mais importantes como o petróleo e o gás. Há já algum tempo que é evidente que para atingir o “Net Zero” em 2050 (ou 2060 ~ 2070, para ser mais realista…) vai ser necessário uma muito maior quantidade de metais críticos e dos minérios de cuja refinação provêm.

As políticas públicas para atingir aquela meta e diminuir a produção dos gases com efeito de estufa importam, por consequência, um aumento significativo da mineração e da refinação desses minérios. Os responsáveis pela definição e execução de políticas públicas devem assumir isso de forma clara.

Numa notável intervenção por ocasião da visita oficial à China, em Março de 2023, a presidente da Comissão Europeia, após mencionar o Net-Zero Industry Act como uma parte fundamental do Plano Industrial Green Deal da UE, reiterou o objectivo europeu “de ser capaz de produzir pelo menos 40 % das tecnologias limpas de que necessitamos para a transição verde”.

Ursula von der Leyen está ciente de que, para atingir este objectivo, a UE precisa ter mais independência e diversidade no que respeita aos factores essenciais necessários para a sua competitividade na transição energética.

E exprimiu abertamente a sua preocupação com a enorme dependência em metais críticos “de um único fornecedor — a China — para 98% do nosso fornecimento de terras raras, 93% do nosso magnésio e 97% do nosso lítio — só para citar alguns.”

Se adicionarmos a indústria extractiva de minérios a partir dos quais se faz o processamento químico para os metais críticos, a relevância de empresas [estatais] chinesas também é avassaladora – seja nas terras raras, no lítio, no cobalto, no níquel, no cobre, na grafite.

Embora muita informação estatística refira a extracção mineira por país, é importante perceber que empresas em concreto procedem a essa extracção e como se integram na cadeia de valor.

P. ex., embora c. 70% do cobalto provenha de minas na R. D. Congo, a maioria dessas minas são exploradas por empresas chinesas.

Mesmo num contexto político em que o actual presidente da R. D Congo declarou estar descontente com várias dessas empresas chinesas e querer substituí-las, a verdade é que nenhuma empresa americana ou europeia manifestou intenção firme de nelas investir.

A estratégia chinesa é clara e tem décadas de execução. Até recente data, é duvidoso que tenha existido uma estratégia americana ou europeia em relação aos metais críticos.

Agora que na Europa se estão a fazer investimentos (e ajudas de Estado) vultuosos na produção de veículos eléctricos, em gigafactories e noutras vertentes da mobilidade e do armazenamento eléctricos, lá aprovou a UE (em 2020!) uma lista actualizada das “matérias-primas essenciais” (MPE) e a criação de dois IPCEI (porque não está Portugal nestes IPCEI quando temos 3 empresas na Aliança Europeia das Baterias?…).

São absolutamente legítimas as preocupações expressas pela presidente da Comissão Europeia quanto à enorme dependência e vulnerabilidade da Europa e das empresas europeias a fornecedores externos de metais críticos.

Mas o que têm feito as autoridades europeias (e nacionais…) e as empresas relevantes europeias para evitar isso?

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D.N.
Jorge Costa Oliveira
03 Maio 2023 — 00:23


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30: Lula não tem razão. Mas deixem-no lutar pela paz

 

🇵🇹 OPINIÃO

A guerra na Ucrânia foi iniciada pela Rússia de Putin com base em quatro argumentos. O primeiro radica numa suposta ameaça à Rússia resultante do avanço das fronteiras da NATO na direcção das fronteiras russas.

Todos sabemos bem que a sucessiva adesão à NATO dos países do leste europeu não decorreu de qualquer pressão americana ou europeia, mas do miserável legado que a Rússia e a canga soviética deixaram nesses ex-membros do Pacto de Varsóvia, bem como da insegurança causada pela intervenção da Federação Russa na Geórgia.

O segundo argumento é a dinâmica anti-russa emergente do movimento popular (com apoio americano, polaco e alemão) que levou em 2014 à queda de um presidente ucraniano pró-russo (que tentou opor-se ao forte desejo popular de rápida associação à UE).

O terceiro argumento funda-se no incumprimento pelas autoridades ucranianas dos acordos de Minsk relativos à autonomia do Donbass.

O quarto e decisivo argumento estriba-se numa suposta necessidade de defender as populações do Donbass de supostas investidas das forças armadas ucranianas.

Após a invasão da Ucrânia ficou gradualmente claro que o que realmente lhe subjaz é o imperialismo russo e a vontade de anexar a Ucrânia – ou a maior parte possível – à Federação Russa, denegando-se abertamente qualquer identidade própria da Ucrânia face à Rússia.

Como o decurso da guerra vem mostrando, essa identidade existe e é forte, incluindo nas áreas do leste do país onde a língua materna é o russo.

O Brasil tem interesse em manter boas relações com a Rússia e com a China. Seja por razões atinentes ao seu comércio externo, seja para contribuir para uma maior institucionalização e reforço de poder global por parte dos BRICS (de que o último exemplo é a tentativa de criar uma nova moeda internacional).

É compreensível que Lula queira reforçar o papel do Brasil no seio dos BRICS. E, simultaneamente, reforçar o papel do Brasil enquanto potência emergente preeminente e principal líder do Sul Global.

O presidente Lula e a diplomacia brasileira perceberam a oportunidade de mediação existente. Estão, naturalmente, a tentar articular essa mediação com um reforço das relações económicas com a China e a Rússia. Infelizmente, esta articulação é complexa e requer uma sofisticação que Lula não tem.

Depois da muito infeliz mantra de que “quando um não quer, dois não brigam”, insistiu recentemente em afirmações infelizes sobre a origem da guerra e a necessidade de se parar o fornecimento de armas à Ucrânia.

O desejo de pôr um fim à guerra e à instabilidade dela decorrente é partilhado por muitos países, mas não todos… por razões diferentes, quer os EUA quer a China não têm interesse no rápido fim da guerra, para que o enfraquecimento da Rússia se acentue.

Lula e o Brasil têm margem de manobra para tentar uma mediação pela paz. Sobretudo se ele falar menos e deixar os diplomatas trabalhar mais… A paz dependerá sempre de cedências mútuas. E não será fácil encontrar o timing e os termos certos para que as partes aceitem ceder, sobretudo os líderes ucranianos.

Mas não utilizemos as infelizes afirmações de Lula para lançar bombarda em cima dos seus esforços de mediação. Negociações de paz são necessárias mas seguramente difíceis. Deixemo-lo tentar.

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D.N.
Jorge Costa Oliveira
19 Abril 2023 — 00:35


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