386: Subsídios para o encarecer da habitação

 

🇵🇹 OPINIÃO

Antes de discutirmos se devemos ou não seguir a Dinamarca e o Canadá e obstaculizar a compra de casas por não-residentes, que tal pararmos de lhes despejar dinheiro em cima para as encarecerem?

Por estes dias recebi um email de um tal Sam a perguntar se estou a pensar reformar-me. Ora o Sam, que por qualquer motivo empreendeu que não sou europeia, quer-me informar sobre quais os melhores “visas” europeus para reformados. E, de acordo com o link que me disponibiliza, é mesmo o do país onde vivo. Portugal, fico a saber, alcança 7,83 pontos em 10. Motivos?

Além do sol, das praias e do vinho, mais o custo de vida “razoavelmente baixo” e o nível de paz (estamos no top mundial dos países mais seguros e pacíficos) – o costume, portanto – parece que, o que me surpreendeu, a percentagem de população com mais de 65 anos é outra vantagem.

Não explicam porquê, mas se calhar os reformados querem conviver com outros idosos (mesmo pobrezinhos), ou não gostam de ver muita gente nova aos pulos a fazer barulho.

O que certificam é que, mal-grado tanta gente de idade e portanto a precisar de mais cuidados de saúde, “uma das facetas mais relevantes” das vantagens portuguesas é (quem diria?) o nosso sistema de saúde, “entre os melhores do mundo”.

E diz o site em causa, “Where can I live“(“Onde posso viver”): “Para reformados, isto significa o acesso a serviços médicos, instalações e profissionais de primeira, a uma fracção do custo praticado nos EUA.”

A poupança nestes cuidados de saúde providenciados pelo país com base nos impostos dos residentes é tanto mais atractiva quando o prospectivo residente estrangeiro (neste caso americano, pelos vistos) reformado também tem ao seu dispor um belíssimo benefício fiscal: “O esquema de residente não habitual oferece vantagens significativas para os reformados.

Embora mudanças em 2020 as tenham diminuído em parte, as taxas de imposto aplicáveis são ainda assim muito mais baixas que em vários países europeus ocidentais.”

Indeed, ó Sam: a taxa passou de zero para 10%, o que ainda é muito bom. Como frisava em 2021 o articulista João Antunes, da Ordem dos Contabilistas Certificados, no Jornal de Negócios, enquanto que um residente português com uma pensão anual de 15 mil euros (com o valor bruto de 1071 euros/mês, líquido de 950) tem uma taxa de tributação efectiva de cerca de 11,3%, um residente não habitual que aufira uma pensão de 48 mil euros paga apenas, durante dez anos a partir da obtenção desse estatuto, 10% (isto se não o tiver obtido até 31 de Março de 2020; nesse caso, paga zero de imposto até fazer uma década – era esse o regime em vigor desde 2009).

E não vamos sequer comparar com o que paga de imposto um residente habitual que aufira uma pensão anual de por exemplo 30 mil euros, para não ficarmos mal dispostos.

Mesmo sem enchermos isto de contas, porém, reflictamos um pouco: uma vez que vários países da Europa têm regimes deste tipo – Portugal não está sozinho nesta coisa de fazer saldos fiscais a estrangeiros pensionistas – deve haver alguma vantagem.

E deve estar explícita em algum lado, por exemplo no preâmbulo do decreto-lei n.º 249/2009 de 23 de Setembro, que criou cá tal possibilidade.

Vejamos: “A crescente projecção de Portugal no cenário mundial obriga a uma reflexão profunda sobre as orientações negociais nas relações económicas internacionais, sendo, nesta perspectiva, imperioso que seja delineada uma estratégia fiscal global assente nos actuais paradigmas da competitividade.”

Tais paradigmas, continua o texto (muito chato, diga-se), implicam que “os instrumentos de política fiscal internacional devam funcionar como factor de atracção da localização dos factores de produção, da iniciativa empresarial e da capacidade produtiva no espaço português.” Muito bem. E que tem isso a ver com pensionistas? À primeira vista, nada.

Porém, como sublinha, a propósito deste decreto-lei, um estudo de 2022 sobre tributação, estava-se em plena crise económico-financeira mundial – a atracção de investimento estrangeiro, inclusive em imobiliário, surgia como primordial.

Parece impossível visto daqui, mas até 2013 o mercado imobiliário nacional afundou, com os preços a descerem a pique. Trazer pensionistas endinheirados para Portugal, acenando-lhes com zero impostos, era mais uma forma de o Estado subsidiar o sector e ressuscitar a economia.

A questão que se tem de colocar é a que ponto faz algum sentido, com a actual crise habitacional – que dura há pelo menos cinco anos – manter esta medida, que em 2022 custou, englobando os benefícios fiscais a todos os residentes não habituais, e não apenas aos pensionistas, 1.507,9 milhões de euros (subindo de 1.271,8 milhões em 2021 e de 972,2 em 2020).

Para se ter uma ideia da ordem de grandeza, o gasto anual da Segurança Social em 2021 com subsídio de desemprego e apoio ao emprego foi 1592,5 milhões, e com o sempre tão vilipendiado Rendimento Social de Inserção de 356 milhões.

Aliás um relatório de 2021 do Observatório Fiscal da União Europeia apontou este regime português de excepção para pensionistas não-residentes como “dos mais prejudiciais da UE”.

E explica porquê: “Estes regimes têm longas durações, grandes vantagens fiscais e visam apenas indivíduos de rendimentos muito elevados ou não se repercutem numa actividade económica real no Estado-membro.”

“Não se repercutem numa actividade económica real no Estado-membro”. Excepto, claro, se falarmos com empresas de mediação imobiliária: na perspectiva destas, os descontos de impostos a não-residentes repercutem-se e como.

De acordo com algumas dessas empresas, estes incentivos fiscais – que custam aquele balúrdio ali em cima – são fundamentais para que se continuem a vender as casas de “topo do mercado”, as que custam de um milhão para cima.

Sucede que, e estas empresas sabem-no melhor que eu, as casas de “um milhão para cima” de hoje são as que há 14 anos custavam 250 mil euros – ou menos.

E isso sucedeu devido a uma mistura de factores, entre eles o da chegada de estrangeiros com poder de compra (e mais ainda por não pagarem impostos) para comprar casas mais caro.

Enquanto, no desespero de combater uma crise habitacional mundial, há cada vez mais países a debater a interdição e já a interditar a venda a não-residentes, Portugal continua a assim subsidiar o sector imobiliário – é sobretudo disso que se trata, não é? – com mais de mil milhões anuais, de modo a que este aumente mais e mais os preços.

Por graça, esta segunda-feira saiu no Público uma notícia sobre um estudo no qual, partindo da asserção de que os não-residentes encarecem o preço da habitação, se propõe, ao invés de lhes dificultar a compra de casas, se usar esses “ganhos de capital com a compra de habitação” para subsidiar os residentes.

Olha se alguém se lembra de pegar nesta ideia: subsidiamos os estrangeiros para comprarem cá casa e encarecerem os preços, e depois, com o “ganho” desse encarecimento, damos uma esmola aos que cá vivem, pagam os impostos por inteiro e não conseguem arranjar um sítio para viver.

É um estudo divulgado pelo Banco de Portugal, não deve ser a gozar. E, na verdade, nem faz assim tanta diferença da situação em que estamos.

DN
Fernanda Câncio
12 Setembro 2023 — 01:20


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332: Clericalismo e anticlericalismo, uma introdução

 

🇵🇹 OPINIÃO

Mais de um século após a 1ª República e no ano em que finalmente se revelou a diabólica dimensão dos crimes de abuso na Igreja Católica portuguesa, descobrimos que um furor clerical tomou conta dos representantes do Estado e das autarquias, e que ser anticlerical é descrito como ódio e fobia. Há coisas do demónio.

Achava que já tinha escrito que chegasse a propósito da Jornada Mundial da Juventude, mas a possessão beata dos representantes do Estado e autarquias portuguesas não permite mudar de assunto.

Não bastou, portanto, torrar dezenas de milhões de euros numa semana de propaganda religiosa de uma igreja, nem vermos o primeiro-ministro a determinar, definitivo e autocrático, como “absurdas essas polémicas” – as sobre os gastos – assegurando de seguida que o tal retorno incrível que ia haver de todo esse investimento é “imaterial” (em lugares no céu?).

Não chegou termos a conversão televisiva do presidente da Câmara de Lisboa em porta-cruzes. Não chegou termos todos os canais de televisão trasladados em canção da boa-nova ou lá como se chama aquilo.

Não chegou sermos setenta vezes sete vezes esbofeteados com a certificação de que como “80% do país é católico porque Censos” quem não for católico ou quem, sendo-o, defenda a laicidade tem mais é de ficar bem caladinho e perguntar se querem mais um café ou um copo de água ou umas dezenas de milhões de euros, por obséquio.

Não: tínhamos ainda de ver uma autarquia – a de Oeiras – mandar retirar, na véspera da chegada do papa, um cartaz que, custeado por um crowdfunding de 300 cidadãos, lembrava e honrava, à guisa do memorial prometido que não aconteceu, as 4800 vítimas estimadas de abuso sexual na Igreja Católica portuguesa desde 1950.

Tínhamos de ver uma autarquia – a de Loures – “convidar para a missa” os seus munícipes, como se uma missa, católica ou de outro culto qualquer, fosse uma espécie de concerto do Tony Carreira ou dos Xutos oferecido pelo município para alegrar os cidadãos.

Tínhamos de ver um autarca – Moedas, de novo – a anunciar que decidira nomear um equipamento público, a ponte sobre o rio Trancão, “Cardeal Dom Manuel Clemente”, calcando as regras municipais para a toponímia que implicam não apenas votação camarária e apreciação pela comissão criada para esse efeito como, por regra, só atribuir o nome de quem tenha morrido há pelo menos cinco anos (isto para não falar da genuflexão daquele “Dom”).

E tínhamos ainda de ver a conta Twitter oficial da Câmara de Lisboa a “ocultar” (censurar, portanto) respostas a esse anúncio que se limitavam a reproduzir o cartaz com o número de vítimas de abuso, chegando até a bloquear quem assim respondia.

Uma conta oficial de uma autarquia a tratar como difamação, insulto ou calúnia os números da comissão nomeada pela própria Igreja Católica.

Tivemos pois em poucos dias uma espécie de regressão acelerada a um tempo (o início do século XX e depois, em não formal, todo o Estado Novo) em que Portugal tinha uma religião oficial e um Código Penal que punia como crime de blasfémia qualquer crítica a essa religião – uma regressão acelerada àquilo a que se dá o nome de clericalismo como ideologia e prática política, com a defesa do anticlericalismo a ser execrada como se de fobia anti-religiosa se tratasse.

É tanto mais interessante assistir a este tipo de inversão do ónus da intolerância (como se fossem os que defendem a laicidade a querer impor algo aos demais e não exactamente o contrário), quando nem é preciso procurar muito para perceber que o próprio papa – que tantos destes representantes eleitos, católicos, agnósticos ou ateus, parecem venerar como santo -, tem um discurso público de anticlericalismo. Incrível, não é? Oiçam lá: “O clericalismo é uma perversão e é a raiz de muitos males na Igreja: devemos humildemente pedir perdão por isto e acima de tudo criar as condições para que não se repita.”

Não é que surpreenda descobrir que a maioria dos que se espumam contra o “anticlericalismo” não sabem do que falam; como me dizia um destes dias um ilustre socialista, “isto [e referia-se às aleivosias estatais e autárquicas que descrevi acima] é uma mistura de analfabetismo e oportunismo”.

Demos assim por assente que nada daquilo a que assistimos é digno de uma democracia em idade madura (e de pessoas adultas e sérias em geral), e passemos a outro assunto, ainda que continuando no mesmo.

A saber: que raio de coerência tem um papa que se pronuncia tão veementemente contra o clericalismo mas acha normal que num país laico como Portugal, onde tanto falta para os que mais precisam, se gastem dezenas de milhões de euros numa celebração propagandística da sua igreja, em vez de ser esta, que tanta riqueza ostenta e acumula, a pagar a festa?

Nenhuma coerência, não é? A mesma que tem o papa cujo governo desde 2013 assinou várias concordatas com países paupérrimos como Timor-Leste, República Centro-Africana e Burquina Faso, nas quais se estipula que os respectivos estados têm financiar a Igreja Católica local e que esta não pode ser demandada nos casos em que seus funcionários sejam civil ou criminalmente condenados.

O papa que há 10 anos garante “tolerância zero” para os abusadores de crianças mas cujos diplomatas andam zelosamente a certificar que não se pagam compensações às vítimas e, denunciam relatores de direitos humanos da ONU, a fazer lobby pelo mundo para que não se alarguem os prazos de prescrição dos crimes sexuais.

É bonito. Tão lindo – ou Linda, por tão à moda do bispo do Porto – como descobrir o que disse Francisco no voo de Lisboa para Roma, em resposta à pergunta do Observador sobre o relatório da comissão que investigou os abusos em Portugal.

“O processo [na igreja portuguesa] está andando bem, estou informado de como estão as coisas. As notícias podem ter ampliado a situação, mas as coisas estão andando bem a esse respeito. (…)

Os números, às vezes, se revelam exagerados, um pouco pelos comentários que sempre gostamos de fazer (…). Na Igreja se seguia mais ou menos a mesma conduta que se segue nas famílias e nos bairros… se encobre. Pensemos que 42 % dos abusos acontecem nas famílias ou nos bairros.

Ainda devemos amadurecer e ajudar a descobrir essas coisas. (…) Existem também outros tipos de abuso que clamam aos céus: o abuso do trabalho infantil, o abuso do trabalho com crianças; o abuso das mulheres, certo? (…) Existe uma cultura do abuso que a humanidade deve rever e converter.”

Impossível não notar a semelhança deste discurso com o que no relatório da comissão é qualificado de “resposta clericalista” de bispos nacionais: “Nota-se por vezes a relativização do problema dos abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa. Sai-se do que está verdadeiramente em jogo para apontar para temas laterais. (…)

Desvia-se a questão para outra, revelando um papel defensivo: “E o abuso sexual na família?! Porque não se fala nisso?!” Surgem, também, discursos mais projectivos que responsabilizam o declínio moral das sociedades contemporâneas por estes comportamentos: “Problemas de fundo…”

A irritação com “exageros”, “comentários” e a visibilidade pública da comissão também lá está: “O silêncio devia ser a base do vosso trabalho. (…) É como se fossem pregoeiros na praça pública.”

É tentador – e dá jeito, para poder dizer “mas os bispos não fazem o que o papa quer” – acreditar que há um santo (pouco milagreiro) no meio disto tudo. Mas não.

“Tem havido muito barulho e muitos pedidos de desculpas. (…) Só que na verdade isso é apenas para parecer que alguma coisa está a mudar. (…) Acho que o papa Francisco não fez nenhuma acção significativa e não compreende o problema”, disse em Fevereiro à Sábado Michael Resende, um dos jornalistas autores da investigação de abuso sexual na diocese de Boston, que em 2002 demonstrou um padrão de encobrimento e propiciação de crimes horrendos que todas as investigações desde então corroboraram.

“Isto resume-se a poder e dinheiro e é por isso que nada muda”, conclui Resende. Poder e dinheiro, ora nem mais. O demónio (o clericalismo) não dorme.

DN
Fernanda Câncio
15 Agosto 2023 — 00:20


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324: Todos, todos, todos?

 

🇵🇹 OPINIÃO

Hábil líder político e bom comunicador, Francisco teve nesta acção de propaganda a inestimável ajuda dos media nacionais, quer na interminável cobertura quer na abordagem totalmente acrítica – num misto de ignorância, histeria e reverência – de tudo o que disse.

É bonito e é comovente, sem dúvida, uma imensa multidão a repetir, ao mote de um líder político-religioso, “todos, todos, todos”, num manifesto de igualdade e inclusão.

Não ouvi, só li as descrições, mas duvido muito que, pela TV ou presencialmente, essa promessa a tantas vozes não me levasse às lágrimas – afinal, vai direita àquilo que em qualquer activista dos direitos humanos, ateu ou não, constitui o fulcro do sagrado: os outros, todos os outros, irmãos (Fratelli Tutti, como no título da terceira encíclica deste papa).

Acresce que, com o seu olhar compassivo e o seu discurso bem-humorado, contemporâneo, e as suas saídas mais ou menos revolucionárias, a puxar à sul-americana teologia da libertação – defesa da libertação dos oprimidos, “opção preferencial pelos pobres” -, Francisco entra fácil no coração.

Como entra fácil no coração a ideia de um líder religioso que, contra toda uma história de crueldade e exclusão, quisesse revolucionar a sua igreja, transformando-a à imagem do mais fundamental e belo dos mandamentos, o amor.

Percebo assim que se queira gostar de tudo o que diz, que tanta gente de esquerda se encante com ele e, também e talvez sobretudo, o queira usar como bandeira. Que se queiram ignorar as fífias, as contradições, os passos em falso, a demagogia, a manipulação, a conversa mole, os pronunciamentos graves. As traições.

Percebo que seja assim para muitos (sobretudo porque, por falta de informação, não vêem as contradições), e até para a generalidade dos ditos “comentadores” – afinal, a maioria não quer fazer-se antipática, e quem critica o papa, ainda para mais no meio de uma operação de marketing religioso apresentada como desígnio nacional, atrai inevitavelmente apodos como “odiento”, “mata-frades”, “radical” (quando não é muito pior). Portanto é normal, dizia (no sentido em que uma certa sonsice é normal) – excepto nos jornalistas.

De jornalistas espera-se que não façam papel de propagandistas ou catequistas. Que contextualizem, que contraponham, que verifiquem. Que, sobretudo, façam perguntas.

Não é por acaso que, no voo de regresso a Roma, Francisco congratulou a jornalista alemã Emma Hirschbeck pela “coragem” de lhe fazer a pergunta óbvia: “Como explica a incoerência entre uma igreja aberta a todos, todos, todos, e uma igreja que não é igual para todos – onde nem todos têm os mesmos direitos, oportunidades, no sentido de que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber todos os sacramentos?”

Hirschbeck referia-se, claro, àquilo que o teólogo alemão Hans Kung apelidou de “difamação fundamental das mulheres”, o papel humilhante e insultuoso ainda hoje a elas alocado na igreja da qual Francisco é monarca absoluto – desde logo por lhes estar vedado o sacerdócio (com a desculpa, formulada por João Paulo II, de que Jesus foi homem e portanto os seus representantes não podem ser mulheres).

A jornalista aludia também ao Catecismo que, a parágrafos 2357 e 2359, classifica a homossexualidade como “depravação grave”, só remediável pela “castidade”, assim como à determinação vaticana de 2021, expressamente aprovada por Francisco, de que os casais de pessoas do mesmo sexo não podem ser alvo de bênção por padres católicos (uma determinação à qual bispos de vários países têm desobedecido) porque, e cito, a Igreja “não pode abençoar o pecado”.

Pergunta evidente, a de Hirschbeck, como evidente deveria ter sido, nos media portugueses, a contextualização com informação básica sobre os ditames católicos (que a maioria das pessoas, católicos auto-identificados incluídos, desconhece), e a análise daquela proclamação de Francisco à luz da realidade da sua organização e daquilo que tem sido o seu discurso.

Um discurso que parece ter evoluído desde a sua entronização, em 2013, quando disse que a questão da ordenação das mulheres estava “encerrada”, e desde 2010, quando, como bispo de Buenos Aires, se opôs à aprovação da lei que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo, apelidando-a de “maquinação do diabo”, e “destruição do plano de Deus”.

Uma evolução aparente que porém se contradiz quer nos ditames vaticanos de que é fonte de autoridade suprema quer nos seus próprios escritos, como na exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor, 2016)”: “Não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família”.

Em resposta à pergunta da jornalista alemã, Francisco asseverou que não há contradição, porque uma coisa é a Igreja acolher toda a gente, outra são as suas regras de funcionamento.

Mas para exemplificar o acolhimento de “toda a gente”, incluindo os homossexuais, não podia ser mais cruel na dicotomia: “Todos! Doentes e saudáveis, velhos e jovens, feios e bonitos… bons e maus!”.

Bons e maus, doentes e saudáveis. A dicotomia na qual o papa inclui os homossexuais ressoa ainda mais lúgubre quando, como frisa o chileno Juan Carlos Cruz Chellew (que, sobrevivente de abuso, foi nomeado por Francisco, de quem é considerado próximo, para a Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores), nem os bispos católicos do Uganda nem o departamento vaticano das relações exteriores, o Dicastério para a Evangelização, se opuseram à lei daquele país conhecida como “matem os gays”. Em vigor desde maio, a lei impõe penas para a homossexualidade que incluem a morte.

Aliás, explica Chellew num artigo publicado em Junho, não é que as autoridades católicas ugandesas estejam todas caladas; quando falam é para, como no caso do bispo Sanctus Lino Wanok, dizer que a homossexualidade “não é humana” e é “o mesmo que a morte”.

Sem apelar directamente a Francisco, o activista homossexual chileno não podia ser mais pungente na sua súplica: “É tempo de ouvirmos aqueles de quem se espera que guiem moralmente os seus milhões de seguidores.

O silêncio é ensurdecedor; o custo pode ser a morte e a violação de direitos humanos básicos. É inaceitável. O mundo, e mais importante ainda, a comunidade LGBTQ+ do Uganda, espera que honrem o princípio cristão fundamental de amar o nosso vizinho.”

Todos, todos, todos? Pois depende. As conversas que se têm no Parque Eduardo VII – ou “Colina do Encontro”, como o crismaram para esta festa -, num país no qual a discriminação é proibida pela Constituição e a lei do casamento das pessoas do mesmo sexo fez 13 anos, não são as mesmas que se dirigem às multidões em África.

Quando em Novembro de 2015 fez um tour por esse continente onde mais tem progredido, nas últimas décadas, o número de fiéis católicos, e apesar da crescente demonização dos homossexuais que ali se verificava (a homossexualidade é proibida em mais de 30 países africanos), Francisco não disse uma palavra sobre o assunto.

E se já várias vezes, depois disso, declarou que “ser homossexual não é um crime – é um pecado, mas não um crime”, sobre o Uganda, até hoje, nada.

“Quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias”, disse Francisco aos jovens portugueses.”Façam perguntas, perguntar é bom.” Ninguém fez.

DN
Fernanda Câncio
08 Agosto 2023 — 01:13


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307: O tão velho Portugal desta jornada

 

🇵🇹 OPINIÃO

Dois séculos após a revolução liberal que deu o pontapé de saída na laicização da sociedade portuguesa, a amálgama entre identidade nacional e católica continua a ser descarada e reverencialmente promovida por um Estado que nunca operou a vital separação face à religião “oficial”.

Na campanha presidencial de 2016, de visita a uma escola secundária na área metropolitana de Lisboa, o candidato Marcelo fez, em aparente improviso, uma mui interessante prelecção sobre o país.

A dada altura, disse – cito de memória – algo como “o Portugal absolutista miguelista, o Portugal “velho” derrotado no século XIX pelos liberais, nunca desapareceu totalmente. Ainda aí anda, e de vez em quando tem irrupções.”

Suponho que estas irrupções do miguelismo conservador, tradicionalista e anti-liberal que perdeu a última guerra civil ocorrida em território nacional (1832-1834), referidas pelo agora presidente da República como uma ameaça latente, à espreita, na sociedade portuguesa – ou como uma espécie de rio profundo, uma verdadeira natureza – podem ser, para diferentes pessoas e sectores, coisas diversas.

Desde logo, consoante o lado em que nos colocamos na disputa – a favor do “Portugal velho” ou do “novo” – e depois, claro, dependendo daquilo que vemos como herança do primeiro.

Gostaria de ter tido oportunidade de, na ocasião, perguntar a Marcelo – o Marcelo presidente da República e o Marcelo ex-presidente da Fundação da Casa de Bragança; o Marcelo filho do ministro do salazarismo e o Marcelo social-democrata; o Marcelo beato, que beija o anel dos curas e que lutou contra a legalização da interrupção da gravidez e do casamento das pessoas do mesmo sexo, e o Marcelo liberal, divorciado, ecuménico e desempoeirado, que qualificou a decisão de 2022 do Supremo americano suprimindo o direito ao aborto como “radical” e garantiu em 2016 que teria promulgado sem problemas o diploma da adopção por casais do mesmo sexo – em que específicas irrupções estava a pensar.

Seis anos depois, porém, em maio de 2022, deu uma pista: “É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX”.

Fica assim claro que para o PR o miguelismo se prolongou até ao estertor do salazarismo e que só o advento da democracia lhe pôs fim – mais ou menos, porque, como diz, “ele ainda anda aí”.

Tenho recordado amiúde esta prédica marcelista, não raro a propósito de ditos e feitos do seu autor. Lembrei-me de novo dela ao ver um impante presidente da Câmara de Lisboa, malgrado definir-se como “agnóstico convicto” e garantir não ser baptizado, a carregar, como se o princípio de separação entre Estado e igrejas fosse facultativo, um enorme crucifixo para dentro da sede da autarquia, nas vésperas do festival católico-mercantil que se vive a partir desta terça no país.

De resto, tudo o que envolve este acontecimento exala o peculiar odor do ranço miguelista. Mas – sosseguem – não por se tratar de uma manifestação de religiosidade católica.

É certo que Igreja Católica (IC) do século XIX esteve do lado de D. Miguel e sobretudo muito contra os liberais (que a desapossaram de muitas das suas propriedades, retiraram ao clero, como à nobreza, o lugar que detinha nas cortes, e permitiram o culto, ainda que apenas aos estrangeiros e em privado, de outras religiões); que a instituição continua, dois séculos depois, a manifestar um irredimível penchant pelos recursos do Estado, a comportar-se como se ainda representasse um culto oficial e não devesse explicações a ninguém sobre coisa alguma (chegando ao ponto de só em 2021, empurradíssima e após décadas de negação e pronunciamentos indecorosos, anunciar uma auditoria interna sobre abusos sexuais de menores, auditoria cujos resultados prontamente pôs em causa).

É certo que a sua estrutura é a última manifestação no mundo de uma monarquia absoluta, como de resto o próprio monarca Francisco, de forma algo sarcástica, reconhece. Mas, precisamente: sendo a Igreja Católica absolutismo vintage, está apenas a ser fiel à sua natureza, fazendo o que faz sempre que lhe dão espaço para isso.

Acrescendo que não se pode confundir a empresa multinacional IC, com a sua misógina, desalmada e vendilhona hierarquia, com os crentes.

O que no fenómeno Jornada Mundial da Juventude constitui uma “irrupção” do Portugal velho é a forma como se quis, à laia de desígnio nacional, impor um acontecimento religioso a um país constitucionalmente (e, ouso dizer, já culturalmente) laico.

Ora exaltando tal acontecimento como fruto e apogeu de um “catolicismo maioritário”, manifestação do “sentir profundo” e da “alma” do povo – e portanto inatacável e indiscutível -, ora, naquilo que se diria uma obscena contradição, como negócio em que investimos milhões porque “vai dar muito retorno”.

Sendo que quanto menos se souber quantos milhões o Estado investiu e investirá e quem se aboletará com os alegados “retornos” melhor – o povo, à boa maneira absolutista, é para invocar como instância de legitimação, jamais como soberano democrático a quem se deve prestar contas.

Este espectáculo ignominioso é tanto mais chocante quando decorre durante uma maioria de um partido de matriz laica e social-democrata e sob os auspícios delirantes de um presidente que passa a vida a pregar sobre transparência, escrutínio democrático e uma correta alocação dos recursos, mas, miguelisticamente, esquece tudo isso estando em causa a sua facção religiosa.

Tanto mais chocante quando, num país que faz no ano que vem meio século de libertação simbólica do Portugal velho, vemos a generalidade dos partidos e das vozes públicas, temerosos de serem tarjados de “jacobinos” e “mata-frades”, incapazes de aproveitar o questionamento e a revolta face aos gastos nas JMJ e ao escândalo do abuso sexual de menores para discutir o estatuto de excepção da Igreja Católica, quer em termos do seu jamais contabilizado financiamento público, quer do seu anacrónico enquadramento jurídico-legal (através da manutenção de um tratado internacional específico, a Concordata, que lhe confere privilégios incompatíveis com o princípio constitucional de separação e com a lei da liberdade religiosa).

Nada disso: o que vemos e veremos, para além de episódios caricatos como o do crucifixo do presidente da Câmara de Lisboa, é repórteres de TV a receber, deleitada e celebratoriamente, os “peregrinos” como se de fãs à porta de um concerto ou de um estádio de futebol se tratasse e não de uma gigantesca operação de propaganda religiosa.

Como se, afinal, a identidade católica não pudesse suscitar qualquer perplexidade, análise ou pergunta a sério, e a amálgama entre os objectivos da organização IC e do Estado português não devesse impor aos media um módico de sobriedade na cobertura.

Ná: análises assertivas, derrisórias e indignadas guardam-se para outros fenómenos religiosos – como o daquela comunidade que se declarou reino separado e exige do Estado o reconhecimento autonómico, assim como o direito à total opacidade e a tratar os seus súbditos/membros, inclusive crianças, em completa separação dos princípios legais e constitucionais em vigor no país (lembra alguma coisa?).

Não para a religião oficiosa deste velho Portugal: como disse em 2005 ao DN uma das professoras da direcção de um agrupamento escolar público da capital sobre a presença de crucifixos nas salas de aula, “a gente já nem os vê. E, para dizer a verdade, nunca reflectimos sobre isso.” De quantos séculos mais precisaremos?

DN
Fernanda Câncio
01 Agosto 2023 — 10:02


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“Somos todos Alfragide” e outras caricaturas de uma polícia nada racista

 

🇵🇹 OPINIÃO

Instâncias internacionais denunciam há muito a violência racista e xenófoba das polícias portuguesas. Mas à PSP e ao MAI, que mantêm ao serviço condenados por crimes repugnantes, cultivando a impunidade, o que chateia é um cartoon.

Em Novembro de 2020, recebi, de um agente da PSP, o link de um post público de Facebook. Neste, o autor, também agente da PSP, de nome João Nunes, lamentava que o Tribunal da Relação tivesse confirmado a sua condenação a quatro anos de prisão (suspensos) no processo que ficou conhecido como “da Cova da Moura”.

E referia as vítimas – todas negras – como “vagabundos”, “bandidos”, “bandidos com cadastro”, “que nada fazem além de vender droga e brincar com armas em filmes autorizados pela polícia” e o sistema judicial como “seus lixos”, “madeira podre e nojenta”, assinando: “agente da PSP, condenado por ter feito o seu trabalho, conforme toda a legislação em vigor. Facto.”

O “trabalho” em causa foi disparar a shotgun no bairro da Cova da Moura, atingindo duas mulheres negras, e dentro da esquadra, à queima-roupa, contra o igualmente negro Celso Lopes, além de mentir no auto de notícia no qual descreveu a sua acção naquele dia, 5 de Fevereiro de 2015 – quando, de acordo com a versão que a PSP exarou para os media e a justiça comprovou ser mentirosa, cinco homens negros teriam tentado “invadir” a esquadra de Alfragide (na verdade foram sequestrados, agredidos e alvo de insultos como “preto do caralho” e “pretuguês”).

“Que tristeza… Assim se vê o estado em que está a polícia!”, comentou o polícia que me enviou o link, chocado por o post estar a ser partilhado e aplaudido por muitos colegas seus: “Isto está cada vez pior… E depois quem tem processo disciplinar é o Morais!”

O Morais referido é Manuel Morais, agente da PSP que em entrevistas ao DN e à SIC denunciou o racismo nas forças de segurança e acabaria, em 2019, por ser alvo de um processo disciplinar devido a um comentário no FB sobre a presença de André Ventura numa manifestação de polícias, sendo castigado com 10 dias de suspensão.

Já em relação a João Nunes, que apagou o post pouco depois de o DN dar dele conhecimento à direcção da PSPa qual alegou não saber quem tinha escrito aquilo, recusando qualquer comentário – não houve consequência disciplinar do escrito.

Aliás, Nunes permaneceu pelo menos até Dezembro de 2022 ao serviço da PSP, mesmo se uma condenação criminal de mais de três anos equivale, no Estatuto Disciplinar desta força policial, a “infracção disciplinar muito grave”, com pena disciplinar de demissão ou de aposentação compulsiva.

Nem por acaso, aquando da confirmação da condenação, um agente da mesma força comentava, no grupo de FB “Pela PSP”: “Está aqui uma boa oportunidade para a Polícia provar que apoia os seus homens e que não concorda com a decisão do tribunal.

Não punir disciplinarmente os polícias condenados em tribunal pelo politicamente correto, em que a palavra das minorias étnicas vale mais que a dos polícias.”

Imbuído do mesmo espírito, o Sindicato Independente dos Agentes da PSP proclamava, na mesma ocasião: “Somos todos Alfragide”.

“E a direcção nacional da PSP a olhar para o lado…”, afligia-se o polícia meu conhecido. Como já vimos, porém, depende: aqui e ali a Direcção Nacional da PSP repara em coisas.

Agora por exemplo reparou num cartoon animado que a RTP “passou” aquando da transmissão de concertos ocorridos este fim de semana e achou-o tão insuportável que apresentou queixa-crime, queixa ao regulador dos media e até à Comissão da Carteira de Jornalista (?).

Porque, segundo comunicado, considera que o vídeo “representa juízos ofensivos da honra e consideração de todos os profissionais da PSP”.

O cartoon, intitulado “carreira de tiro”, mostra um agente fardado a disparar várias vezes, precisamente na carreira de tiro. No final, vêem-se os alvos: se no mais claro os tiros foram ao lado, vão-se tornando mais certeiros à medida que o alvo escurece.

É evidentemente uma representação da violência policial racista, relacionada com a morte, em França, de um jovem de 17 anos de origem magrebina, Nahel, alvo de um disparo certeiro por não ter parado numa operação stop.

Foi isso mesmo que respondeu um dos responsáveis pela rubrica Spam Cartoon, o ilustrador André Carrilho: que o cartoon comenta a actualidade internacional.

Percebe-se que a resposta, de Carrilho e da RTP, seja esta, e que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, tenha também, relevando a importância da liberdade de expressão (ao contrário do seu colega no ministério da Administração Interna, José Luís Carneiro, que, incrivelmente, ligou à RTP a pedir explicações), insistido nessa interpretação.

Mas não: o problema da violência policial racista está longe de ser exclusivo de França; o racismo nas polícias, como, suponho, os exemplos que dei tenham ajudado a comprovar e inúmeros relatórios internacionais e casos reportados nos media indicam, é um problema gravíssimo em vários países, e também em Portugal.

Não se trata de uma questão de opinião. Não se trata de, como pretende a direcção da PSP, “um juízo ofensivo da honra”: é a verdade.

Aliás, se não fosse verdade a PSP já devia ter apresentado queixa-crime contra por exemplo o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, que sublinha há anos que as polícias portuguesas têm um problema sério e “profundo” de violência injustificada e que essa violência tende a ter como vítimas afro-descendentes e estrangeiros.

Di-lo o último relatório do organismo, de 2020, e explica-o Hugh Chetwynd, membro do Comité, em entrevista ao Expresso em Fevereiro de 2021, frisando que a maioria das queixas de violência policial em Portugal nem sequer é investigada como deve ser, e que tal favorece “uma cultura de impunidade”.

Cultura de impunidade que, aventa, pode ter estado na origem do espancamento mortal de Ihor Homeniuk por inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Ora essa cultura de violência (racista e não só) e impunidade que Chetwynd aponta nas forças de segurança portuguesas – e que nesta coluna tantas vezes referi – só pode ser combatida admitindo o problema; não é decerto apresentando queixas-crime contra cartoons que aludem a ela que desaparecerá.

Pelo contrário, agrava-se cada vez mais por, precisamente, ser negada. Negada pelas direcções das polícias, negada pelos responsáveis governamentais e negada pelos tribunais – basta ver como os condenados de Alfragide não o foram por discriminação racial, apesar dos repulsivos insultos racistas que o tribunal considerou provados.

Basta ver como numa decisão escabrosa o Tribunal da Relação de Évora acabou de baixar as penas dos guardas da GNR que se filmaram a torturar e insultar imigrantes e partilhavam os vídeos com outros guardas para divertimento.

Basta ver como, não contente com isso, o tribunal anulou as respectivas penas de expulsão, demonstrando considerar que pessoas com tal nível de racismo e de brutalidade têm condições para continuar a andar por aí com armas de fogo, fazendo de conta que conhecem e respeitam as leis de cujo comprimento é suposto zelarem.

Como de resto fez o tribunal que julgou os agentes de Alfragide, escolhendo não os condenar a expulsão, apesar de tal ser proposto na acusação do Ministério Público.

A mensagem que a justiça assim faz passar é de que um polícia pode ser isso – alguém que ofende, sequestra, tortura, e pode até chegar a matar, por ódio racial ou xenófobo ou outra raiva qualquer; que mente nos autos de notícia para tentar safar-se; e que, malgrado ter como função assegurar-se de que os cidadãos em geral não violam a lei ou são responsabilizados se a violarem, nunca é realmente responsabilizado pelas suas acções: foi sempre azar, brincadeira parva, acidente, negligência.

Nunca foi o que realmente foi a não ser que, como no caso do francês Nahel ou do americano George Floyd, alguém tenha filmado e não se possa continuar a inventar desculpas.

Não se possa continuar, como faz o actual MAI (e praticamente todos antes dele), a dizer de cara séria, cuspindo em todos os relatórios internacionais, em todas as evidências, num infelizmente vasto rol de vítimas e em todos os polícias dignos desse nome, que “as forças de segurança portuguesas cumprem e fazem cumprir a legalidade democrática e os valores constitucionais” e “desde logo o princípio da igualdade, valor que é marca do nosso país e da actuação das forças de segurança”.

Desde logo o princípio da igualdade? Só se for o de sermos todos Alfragide.

DN
Fernanda Câncio
11 Julho 2023 — 01:42

– Vídeo do cartoon que mereceu queixa-crime da PSP:




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211: Goucha, telelixo e palmatória

 

🇵🇹 OPINIÃO

Num debate sobre populismo e a ascensão da extrema-direita, o apresentador da TVI admitiu-se arrependido de ter recebido um criminoso nazi no seu programa matinal.

Um arrependimento que surge quatro anos e meio e muita promoção de discursos e personagens populistas depois – e que passa ao lado do essencial: o efeito comprovado do telelixo na democracia.

“Foram 15 minutos que me perseguem até hoje”. A frase é de Manuel Luís Goucha, num debate sobre “o papel dos media perante a ascensão da direita radical e populista” que decorreu numa recente entrega de prémios de jornalismo.

Goucha referia-se ao facto de em Janeiro de 2019 ter recebido, no seu programa matinal de entretenimento, um criminoso nazi dono de um cadastro que começa aos 17 anos com a brutal agressão em grupo, motivada por ódio racial, de cinco cidadãos negros na noite de 10 de Junho de 1995 – a noite em que, segundo ficou provado em tribunal, vários membros desse mesmo grupo mataram à pancada o português negro Alcindo Monteiro – e que continua, quase 30 anos depois (ainda este mês o DN noticiou mais uma), a averbar condenações por crimes violentos, por posse de armas proibidas, discriminação racial e incitamento ao ódio, as quais lhe valeram já quase 10 anos atrás das grades.

Se em 2019 refutara calorosa e indignadamente, quer na própria TVI quer em entrevistas e no Facebook, todas as críticas, incluindo aquelas que o verberavam por ter permitido ao criminoso o branqueamento dos seus crimes e até apresentar-se como “vítima da justiça” e de “censura” – “Desenrolou-se aqui uma conversa com os pontos de vista do convidado e os nossos em jeito de contraditório. Fomos muito contundentes. Eu usei dados, usei a história. (…)

Foi uma oportunidade de ouro para confrontar argumentos e ideias. Chama-se a isso viver em democracia (…)”, disse na altura Goucha, chegando mesmo a falar do perigo da “ideologia do politicamente correto” -, o apresentador veio agora reconhecer que os críticos tinham razão.

“Hoje dou a mão à palmatória: uma conversa daquelas não cabe num programa magazinesco. Porque se perde entre uma canção e um tema avulso, quase supérfluo, como uma receita de gastronomia. Não houve uma peça de enquadramento, para dizer quem é aquele homem e porque é que já esteve na prisão.”

Soube destas declarações pela coluna de opinião de Bárbara Reis, no Público, que aplaudiu o facto de o homem a quem apelida de “rei das manhãs da TV portuguesa” ter certificado publicamente o seu arrependimento.

É decerto importante reconhecer erros, sobretudo se se tratar de verdadeiro reconhecimento e se reflectir numa mudança de comportamento. Ora vão-me desculpar mas este pedido de desculpas – é isso que é suposto ser, certo? – não me convence.

Desde logo porque o branqueamento da realidade criminosa da pessoa Mário Machado começou logo com o post que Goucha publicou no seu Facebook, em anúncio da respectiva presença no programa, apresentando-o como mero “autor de declarações polémicas”.

Continuou, como já referido, na forma como, arrogante e ignaramente, continuou a defender aquilo que designava como “um debate” entre Machado e ele, quando o que ocorreu foi uma amena e sorridente conversa na qual o criminoso debitou uma série de mentiras repelentes e caluniosas sem qualquer contraditório por parte de Goucha e do outro interveniente, apresentado como “o repórter Bruno Caetano” (já lá iremos).

E ainda porque, apesar de ter na altura certificado que o convite ao criminoso nazi Mário Machado não tinha sido responsabilidade sua mas do tal “repórter”, anunciava na semana seguinte, no seu Facebook, e quando Bolsonaro acabava de tomar posse como presidente do Brasil, ter convidado o então ​​​​​​​eminente bolsonarista e recém-eleito deputado federal Alexandre Frota – que no Twitter publicava, dando loas, vídeos mostrando cadáveres ensanguentados de alegados “bandidos” (negros) mortos pela polícia do Rio de Janeiro, falando de direitos humanos como de uma doutrina “esquerdista” a abater.

Frota acabaria por não comparecer no programa. Mas a bonomia (chamemos-lhe assim) de Goucha face ao populismo radical e aos discursos de extrema-direita não se ficaria por estes dois casos.

Pouco depois passou a ter no seu programa, como comentadora “criminal” residente, a advogada Suzana Garcia, que ali se notabilizou por um discurso de ataque aos movimentos anti-racistas, os quais chegou a ali designar por “essa gentalha” e “pessoas oportunistas que nunca souberam o que é trabalhar”, de defesa incondicional do securitarismo policial e de penas como a castração química e até física.

Graças a esse discurso, e à rampa de lançamento proporcionada pela TVI e por Goucha, Garcia seria, segundo a própria, convidada pelo partido de extrema-direita para o representar nas eleições autárquicas de 2021, acabando por aceitar outro convite, o do PSD, para ser candidata à Amadora, concelho com elevada percentagem de população de origem africana, prometendo torná-la “mais segura” e “uma Singapura” (país no qual vigora uma democracia autoritária hiper-securitária, com penas corporais e alta taxa de execuções).

Garcia, cuja campanha colocou um cartaz em Lisboa em frente à Assembleia da República, ameaçando fazer “o sistema tremer” – emulando assim o tipo de retórica populista e anti-democrática do partido de extrema-direita (em relação ao qual, aliás, recusou qualquer “cerca sanitária”) – convidaria Goucha para presidir à sua comissão de honra, convite que o apresentador aceitou e que só pode ser interpretado como uma identificação (ou, pelo menos, com uma não demarcação) face ao estilo e ideias da candidata.

Há mais, porém. No citado “mea culpa“, Goucha disse: “Permitam-me que ache que um Mário Machado tem cabimento numa conversa longa num programa da noite, num programa informativo, para se combater as suas ideias. É no palco do mediatismo televisivo ou no palco de uma entrevista na imprensa que se combatem os argumentos.”

Começamos por constatar que o apresentador continua, este tempo todo depois, a considerar que é profícuo e desejável “debater” com um criminoso nazi, e “numa conversa longa”.

Quiçá para lhe perguntarmos por que motivo considera que os brancos são superiores, ou que Hitler era uma pessoa incrível, ou por que passa a vida a incitar ao ódio e a ser apanhado com armas em casa. Tudo questões que o país anseia ver respondidas.

Porém podemos igualmente questionar por que motivo, se Goucha está tão preocupado com o papel dos media no combate ao populismo, promoveu no seu programa, como “repórter”, um indivíduo – Bruno Caetano – que não tem carteira de jornalista e como tal está impedido de se apresentar como alguém que pratica jornalismo.

Não é certamente a participar na contrafacção do jornalismo como profissão com exigências de rigor e deontologia e que, pelo reconhecimento da sua importância para a democracia, é regulada por lei especial, que Goucha contribui para aquilo que nas declarações citadas preconiza como papel salvífico dos media.

Com a sua idade e percurso, e não sendo uma pessoa destituída, Manuel Luís Goucha tem mais que obrigação de saber o que andou a promover e facilitar nos últimos anos.

Aliás, caso estivesse mesmo interessado no que diz preocupá-lo, deveria ter até já reparado na existência de estudos científicos que comprovam como o telelixo e o tabloidismo – que a estação onde trabalha tão afincadamente pratica – favorecem a votação em candidatos e em ideários populistas. Mas isso já era pedir de mais, não era?

D.N.
Fernanda Câncio
27 Junho 2023 — 02:12


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194: À procura dos irmãos Kononovych

 

– O PZP desde sempre actuou como uma correia de transmissão política e doutrinária do regime ditatorial e repressivo soviético, onde nunca existiu democracia, liberdade de expressão, de reunião e de pensamento. Quem falar ou escrever contra o regime nazi da Moscóvia, é preso, envenenado, assassinado, atirado de um qualquer 12º. andar para a rua ou entra num gulag para “reeducação”. Por isso, não é de estranhar a K7 e o chilrear dos comunas do PZP contra Metsola. O que me faz espécie é porque eles andaram a lutar contra o regime fascista do Estado Novo salazarista, quando os seus mentores russonazis eram da mesma laia!

🇵🇹 OPINIÃO

Na sexta-feira, o PCP acusou o governo ucraniano de promover “a prisão e assassinato daqueles que afirmem uma opinião distinta”. “Procura por irmãos Kononovych”, responderam-me no Twitter quando pedi provas. Procurei. O resultado não é Dostoyevsky, mas tem que se lhe diga.

“Em boa verdade na Ucrânia o que existe é um simulacro de parlamento, de cuja composição foram banidas e ilegalizadas as forças democráticas, de esquerda e progressistas. (…) falar-se livremente, nesse fórum, é uma impossibilidade.

Regista-se que [nele] têm no essencial assento forças reaccionárias e fascizantes, constituído a partir dum poder assente em forças de cariz nazi que não só impede o exercício do direito de opinião, como promove a prisão e o assassinato daqueles que afirmem uma opinião distinta (…).”

Confesso que quando o PCP publicou, na sexta-feira, estas declarações, como parte de uma “resposta” à presidente do Parlamento Europeu, tive de as ler duas vezes.

Não é que sejam as primeiras afirmações graves e não consubstanciadas que o partido publica sobre a Ucrânia e o seu governo – já escrevi aqui sobre a sua adesão total à propaganda russa e a sua, digamos, liberalidade na atribuição dos mais diversos crimes aos ucranianos, evidenciando uma ucranofobia militante que pode ser qualificada de discurso de ódio – mas acusar assim tão claramente um governo de promover prisão e assassinato de opositores deveria implicar algum tipo de consequência, mais que não seja a exigência de se explicar (provar ninguém espera) do que fala.

Não vi, porém, qualquer fact check do tipo “O governo ucraniano promove a prisão e o assassinato de opositores?” (tantos cliques que daria um título destes, verdade?), nem encontrei, nos jornais de fim de semana, referência à acusação.

Só podia haver duas explicações para isso – ou toda a gente saber do que raio fala o PCP, e portanto não haver mistério nenhum, ou achar-se que o que o PCP diz sobre a Ucrânia – na senda do “cariz nazi” – não é para ligar. Como não será a primeira, parece claro que é a segunda.

Ora por acaso acho que não podemos ficar assim. Estando de férias quando vi a publicação, perguntei no Twitter de que presos e assassinados fala o PCP.

Das várias respostas que recebi, e que incluíram links sobre os acontecimentos em Odessa em 2014 (quando 48 pessoas foram mortas nos confrontos entre pro-russos e pro-Maidan), notícias sobre a corrupção na Ucrânia e sobre as milícias de extrema-direita/nazis no país, sobrou uma única pista: “Irmãos Kononovych”.

Colocando o nome no Google, nas duas grafias possíveis, e em várias línguas, concluí não haver, no alfabeto que domino, uma única notícia de fontes jornalísticas fiáveis sobre estes dois irmãos.

Os quais, de acordo com publicações afectas a partidos comunistas vários, são dirigentes de organizações comunistas ucranianas (todas ilegalizadas, por via da lei de 2015 que proíbe o uso de símbolos comunistas e nazis, num processo judicial que levou anos), nomeadamente da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, também designada por Konsomol, nome da organização da juventude do Partido Comunista Soviético da qual era “subsidiária”, e que terão sido presos a 6 de Março de 2022 pelos serviços de segurança ucranianos, passando em Dezembro, cinco meses após o início do seu julgamento, a prisão domiciliária.

As “notícias” encontradas não dão grande informação nem sobre os dois homens (são referidos como “jovens” mas nunca se diz que idade têm, por exemplo) nem sobre as acusações; muito vagamente, fala-se de serem acusados de “visões pró-russas e pró-bielorrussas” e de publicações nas redes sociais, e de que estaria em causa a possibilidade de prisão perpétua (o que pressuporia crimes muito graves). Diz-se também, em alguns dos textos, que teriam sido torturados.

Já o site abrilabril.pt, que se intitula “o outro lado das notícias” e é afecto ao PCP, usava a 8 de Março de 2022, no título sobre a detenção, a palavra “sequestrados”, para a seguir afligir ainda mais os leitores: “Mikhail e Aleksander Kononovich foram sequestrados pelos Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU), não sendo possível (…) descartar a hipótese de que tenham já sido assassinados.”

Essa probabilidade, explica o abrilabril num texto não assinado – no qual informa que os irmãos “foram acusados, sem que nenhuma prova tenha sido divulgada, de serem simultaneamente espiões russos e bielorussos” -, deve-se a que “o número de assassinatos com motivos políticos tem vindo a crescer na Ucrânia desde o início da guerra”.

E dá dois exemplos: o de Maxim Ryndovskiy, “um atleta de MMA (artes marciais mistas), torturado e assassinado por um grupo neonazi em Kiev”, e o do banqueiro Denis Kireev, “que havia participado, em nome da Ucrânia, nas negociações com a Federação Russa, assassinado sumariamente pelos SBU”.

Descontando o facto de o texto em causa ter sido publicado dois dias depois de Kireev ser encontrado morto e quando acabava de ser noticiada a existência de uma reivindicação, por parte de um grupo nazi, do homicídio de Ryndovskiy – ou seja, quando era impossível afirmar com segurança fosse o que fosse sobre estes dois casos -, será verdade que, como é afirmado, “o número de assassinatos com motivos políticos tem vindo a crescer na Ucrânia desde o início da guerra”? E que, como afirma o PCP agora, esses assassinatos são promovidos pelo governo ucraniano?

Bem sabemos que cresceu muito o número de mortos na Ucrânia desde o início da guerra, incluindo não soldados: lembremos que enquanto o abrilabril escrevia isto os militares russos ocupavam Bucha e outras localidades onde torturaram e executaram civis a eito.

E que desde 2014 os relatórios internacionais acusam tanto a Rússia e os separatistas como as forças dos sucessivos governos ucranianos e as milícias nacionalistas ucranianas de violações dos direitos humanos, incluindo prisão ilegal, sequestro, tortura, violações e execuções.

Aliás ainda em 2021 a ONU denunciava violações de direitos humanos no território controlado pelo governo, referindo, no período de Novembro de 2019 a Outubro de 2021, 29 incidentes envolvendo jornalistas e críticos do executivo assim como 14 outros – ataques, ameaças e acções de intimidação – contra defensores dos direitos humanos e membros da comunidade LGBT+.

E, para além do estranho caso de Kireev, há a denúncia, por agências de direitos humanos e investigações jornalísticas, de mortes resultantes de tortura e negligência por polícias e guardas prisionais ucranianos – é o governo americano que o diz, num relatório sobre o ano de 2022, mas referindo situações ocorridas em anos anteriores. Por outro lado, o uso de tortura e de outros tratamentos desumanos e degradantes pelas forças ucranianas, apesar de proibido pela lei, continua a ser um problema na Ucrânia, reconhece o relatório americano, dando exemplos; detenções arbitrárias (ou seja, sequestros) também são reportados pelo Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, que fala de essa possibilidade ter existido em mais de mil detenções efectuadas pelo SBU, por suspeita de apoio das forças russas, entre Fevereiro e Maio de 2022.

Aliás, a lei marcial mudou as regras das detenções: entre Fevereiro e Agosto de 2022 os detidos passaram a poder ficar em custódia até 260 horas – mais de dez dias – sem serem presentes a um juiz (a regra na Ucrânia é um máximo de 72 horas).

Pode considerar-se que o PCP está a falar das referidas detenções ilegais quando fala de um poder que promove a prisão de quem tenha uma opinião distinta; não se encontra é notícia de assassinatos por esse motivo, atribuíveis ao governo, além do já citado (e um é, obviamente, de mais).

O PCP falseia e inventa; não é novidade. O que lhe tira a razão que tem quando denuncia o facto de haver tão poucas notícias, e tão pouca investigação jornalística, sobre os desmandos e as suspeitas de desmandos de Kyiv.

É que, a não ser que não existam uns irmãos Kononovych/Kononovich, que não sejam dirigentes políticos, ou nunca tenham estado presos quase um ano, não é normal que não se encontre uma referência, nos media mainstream, sobre eles (os próprios pedem aos jornalistas europeus que compareçam no tribunal).

Ou que a resposta da Comissão Europeia às perguntas de deputados comunistas sobre a respectiva situação seja, invariavelmente, de que está a acompanhar o caso e que o sistema judicial da Ucrânia funciona bem – o que não era verdade antes e menos ainda será com o país em guerra.

Podemos, é claro, considerar que, ante a avalanche de barbaridades denunciadas pelos organismos internacionais e pela investigação jornalística como tendo sido perpetradas pelas forças russas, será natural que o caso dos gémeos Kononovych passe ao lado da atenção dos media – tanto mais que parece não existir qualquer alerta da Amnistia Internacional, Human Rights Watch ou outra organização de defesa dos direitos humanos sobre eles, e que há motivos para não levar a sério as alegações de quem não consegue falar do governo ucraniano sem usar as palavras “nazi” e “fascista”.

Mas estar do lado da Ucrânia no conflito com a Rússia não pode implicar que fechemos os olhos – que não queiramos saber.

D.N.
Fernanda Câncio
20 Junho 2023 — 02:50


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175: Assédio sexual: o crime que juízes desvalorizam e que as juízas dizem sofrer

 

– E assim anda a “justiça” dos juízes em Portugal, país incivilizado em vários níveis sociais e intelectuais.

🇵🇹 OPINIÃO

Poucos delitos estão mais na ordem do dia. Mas o parlamento voltou agora a recusar a criação do crime de assédio sexual, ignorando também recomendações do Conselho da Europa. Entre os principais opositores da existência do tipo criminal têm estado os juízes – mesmo se num inquérito recente as juízas se assumem, “em número elevado”, vítimas de assédio.

“O piropo está criminalizado desde 2015 (…) Os gestos obscenos de cariz sexual já estão criminalizados. (…) O assédio sexual já está criminalizado.”

A certificação é da deputada do PS Cláudia Cruz Santos, no parlamento, a 2 de Junho, e pode surpreender muita gente. Afinal, quando em 2015 o Código Penal foi alterado para incluir, no crime de “importunação sexual”, as “propostas de teor sexual”, houve um debate público aceso sobre se aquilo a que se dava o nome de “piropos” – comentários como “oh boa, esse rabo, essas pernas, o que eu te fazia” que, como em 2017 dizia uma jovem de 17 anos ao DN, ouvia desde os 12 e a faziam “ter medo de sair à rua sozinha” – passavam ou não a ser crime.

Contra essa possibilidade tinha-se de resto pronunciado a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a qual num parecer da época – que paradoxalmente a deputada socialista citou nesta sua intervenção – estatuiu: “Nunca se poderá criminalizar condutas de assédio sexual indesejadas que não ultrapassem a grosseria ou má-educação.”

Esta posição foi interpretada como uma recusa dos magistrados de conferir dignidade penal à generalidade do assédio verbal de rua, como oito anos antes a mesma agremiação sindical tinha feito, também em parecer, em relação à proposta de criminalização, na reforma penal de 2007, do constrangimento a contactos sexuais indesejados – vulgo apalpão e condutas quejandas.

Nessa altura, os juízes tinham reputado de “porventura excessivo” penalizar como crime aquilo que consideravam “situações desagradáveis, mas de duvidosa gravidade”, como “os ‘encostos’ nos transportes públicos”. Actos em relação aos quais, dizia então ao DN um dos autores do documento, existiria “uma certa aceitação cultural”.

Esta visão foi contraditada pelo Tribunal Constitucional (TC) em acórdão de Fevereiro 2013, no qual se conclui que “o bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em causa [a importunação sexual na vertente “constrangimento a contacto sexual”] é inquestionavelmente dotado de dignidade bastante para ser merecedor de tutela penal”, mas permanece em parte dos penalistas. E, depreende-se, dos magistrados – redobradamente decerto no que respeita ao assédio sexual sem contacto físico, como é o caso dos “piropos”.

Seria pois muito útil que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses tivesse, no seu parecer de 2015, esclarecido quais serão então, no seu entender, as condutas de “assédio [verbal ou não verbal] indesejado” que ultrapassam “a grosseria e a má educação” e que vê como merecedoras de incriminação. Infelizmente não o fez. Nem é conhecida até hoje qualquer decisão judicial que ajude a desfazer a dúvida. Na verdade, o que é periodicamente noticiado – com exemplos mais à frente neste texto – são decisões que negam dignidade penal a comentários de teor sexual e até ao constrangimento a contactos de teor sexual.

A este propósito, a deputada do PSD Carla Rodrigues, que coordenou o grupo de trabalho do qual resultou em 2015 a criminalização das propostas de teor sexual, verberava, em entrevista à TSF de Setembro de 2020, os juízes que “não vêem dignidade penal numa proposta de teor sexual que é formulada na rua ou num ambiente de trabalho a uma mulher”. Exigindo: “É preciso que também os tribunais tenham consciência de que este é um crime grave. Que façam o seu trabalho. Os deputados fizeram o seu trabalho, legislaram e introduziram esta alteração no Código Penal em boa hora. Agora é preciso que os tribunais apliquem – e apliquem bem – esta lei.”

“Há um vazio legal no que respeita à punição do assédio sexual”

Curiosamente, em maio de 2022, e na sequência das notícias do DN sobre denúncias de assédio sexual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o presidente da Associação Sindical de Juízes, Manuel Soares, que se tem vindo a notabilizar na crítica àquilo que, referindo-se ao movimento feminista, qualifica como “movimentos ideológicos com agendas sectárias e intolerantes”, deplorava, na sua coluna no Público, a inexistência de mecanismos que incentivem as vítimas de assédio “a queixarem-se e que as apoiem”. E concluía: “O problema é que, como se sabe, as vítimas de assédio sexual raramente se queixam.”

Anunciou então Manuel Soares que estava a decorrer um inquérito entre os magistrados para perceber a dimensão do fenómeno na judicatura.

Um ano depois, o juiz desembargador vem dar notícia, mais uma vez na sua coluna no Público, de resultados preliminares “muito preocupantes”: “Há um número elevado de juízes (sobretudo mulheres) que assinalaram ter sido vítimas de assédio sexual por parte de colegas com funções de autoridade (inspectores judiciais, presidentes de tribunais e formadores, nomeadamente) e que disseram não ter reportado o caso aos órgãos próprios por receio das consequências, vergonha ou inexistência de canais de denúncia.” E rematava: “Ficarmos sentados, à espera de uma denúncia que sabemos ser altamente improvável, sobre situações que adivinhamos existirem, mas a que preferimos fechar os olhos, por comodismo e inércia, não está certo. Isto tudo tem de levar uma valente vassourada.”

Que poderia ser tal vassourada o dirigente sindical não disse. Mas há quem tenha uma ideia: a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), presidida pela juíza conselheira Teresa Féria, defende há muito, como explicou ao Público em Abril a magistrada do Ministério Público e associada da APMJ Rita Mota Sousa, a criação de “um tipo penal de assédio sexual”. Considerando que existe ainda “um vazio legal no que diz respeito à punição do assédio sexual”, e que “na fase de evolução em que nos encontramos, já não se justifica que esse vazio ainda exista”, esta procuradora, autora do livro Introdução às teorias feministas do Direito (2015), considera que a criação de um tipo criminal com esse título não só protegeria melhor as vítimas como teria “um efeito pedagógico para a comunidade, porque traça limites e fronteiras”.

Era isso exactamente que estava em causa no debate parlamentar referido no início deste texto, e que ocorreu a 2 de Junho: a criação de um tipo criminal intitulado assédio sexual, proposta pelo BE e PAN, substituindo o de “importunação sexual”, artigo 170º do Código Penal).

O BE queria que às “propostas de teor sexual” constantes no actual tipo criminal fossem adicionados os comentários de teor sexual, “verbais ou não verbais”, e que aos actos exibicionistas que integram também o crime existente fosse aditado o mesmo tipo de situação mas por via digital (quando alguém recebe imagens sexuais explícitas).

O PAN propunha aumentar a moldura penal do crime de um para dois anos; ambos os partidos queriam transformá-lo em crime público. Também o Chega apresentou um projecto no sentido de aumentar a moldura penal (para os mesmos dois anos), agravando o crime de importunação sexual quando os factos “forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos” (a importunação sexual tem hoje moldura penal agravada, até três anos, quando seja praticada sobre menores de 14, ou seja, quando se enquadra no tipo criminal “abuso sexual de menores”. De resto, não prevê agravação especial quando a vítima tem entre 14 e 16, ou entre 14 e 18 anos; a agravação pode ocorrer, nos termos de uma alteração efectuada em 2019 no artigo 177º do CP, “se a vítima for pessoa especialmente vulnerável, em razão da idade”).

Todas as propostas foram chumbadas com os votos contra de PS e PSD, os quais em resumo asseveram que os tipos criminais já existentes, nomeadamente o de importunação sexual, cobrem todas as situações relativas ao assédio sexual que merecem tutela penal, e não faz sentido aumentar penas.

País fica “aquém” na punição, diz Conselho da Europa

Esta posição dos dois principais partidos não se limita a ignorar aquilo que em 2020 a ex deputada Carla Rodrigues reconhecia – que os tribunais se mostram de um modo geral relutantes em aplicar a lei, procurando na sua redacção inconsistências ou insuficiências, como a de falar apenas de “propostas sexuais”, o que permite que a maioria dos comentários de teor sexual possa ser considerado como não abrangido pelo tipo criminal.

Tem também a virtualidade de fazer tábua rasa das exigências do Conselho da Europa quando à penalização do assédio sexual.

Recorde-se que, por via da ratificação, em 2013, da Convenção de Istambul/Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, Portugal está obrigado a punir o assédio sexual, descrito no artigo 40º deste tratado como “qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo”.

Em sucessivos relatórios, o grupo de peritos do Conselho da Europa que tem como função avaliar o cumprimento da Convenção – o GREVIO/ Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence – sublinha a necessidade de o país alterar a lei.

“O crime de assédio sexual está definido no artigo 170º do Código Penal Português como sendo a conduta que importuna a vítima “através de actos exibicionistas, formulação de propostas sexuais ou constrangimento a contactos de natureza sexual””, lê-se no último relatório, de 2019. “O GREVIO considera esta formulação particularmente restritiva em comparação com o objectivo do artigo 40º da Convenção de Istambul, que é o de penalizar com sanções criminais ou outras qualquer conduta sexual verbal, não verbal ou física indesejada pela vítima independentemente de se qualificar como “exibicionista” ou como “proposta”.

Assim, prosseguem os peritos, “a conduta verbal que qualifica o delito tanto pode ser constituída por palavras ou sons, como piadas, perguntas ou comentários, expressos oralmente ou por escrito. As condutas não verbais, por outro lado, incluem quaisquer expressões ou comunicações da parte do perpetrador que não envolvem palavras ou sons, por exemplo expressões faciais, movimentos manuais ou símbolos.” Para concluírem: “A corrente formulação do artigo 170º do CP fica aquém do desígnio do artigo 40º da Convenção, que é o de descrever um padrão de comportamento cujos elementos individuais, se encarados isoladamente, podem não resultar necessariamente numa sanção.”

Em Junho 2022, o GREVIO reforçou este apelo a Portugal no sentido de alterar o CP para o fazer coincidir com o artigo 40º.

Os peritos também chamam a atenção para a necessidade de conhecimento sobre o fenómeno para além dos inquéritos sobre assédio sexual no âmbito laboral (desde 2009 que o Código de Trabalho proíbe o assédio sexual, considerando-o uma contra-ordenação “muito grave”; a redacção do artigo em causa é surpreendentemente próxima da da Convenção de Istambul: “Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”).

Lei não diz mas é como se dissesse

Há porém quem, como a deputada Mónica Quintela, do PSD, contraponha que não há necessidade de alterar o Código Penal, porque mesmo o que lá não está escrito passa a estar por via da sua interpretação “à luz da Convenção”.

Assim, diz a social-democrata, citando a juíza do Supremo Tribunal Clara Sottomayor, “o conceito de propostas de teor sexual constante no artigo 170º deve ser interpretado à luz do conceito de violência de género da CI, abrangendo não só convites sexuais não desejados, como também palavras, comentários ou expressões humilhantes e degradantes sobre o corpo das mulheres ou que se referem a actos sexuais desejados pelo assediador, ainda que seja usada linguagem metafórica ou simbólica, mas cujo significado sexual é perceptível pela generalidade das pessoas.”

Nesta visão concorre, explicou Quintela no debate parlamentar, o ex juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque, ao considerar incluírem-se no mesmo tipo legal (o artigo 170º) “palavras ou sons exprimidos e comunicados pelo agente tais como piadas, considerações, questões exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações que não envolvam palavras ou sons como por exemplo expressões faciais, movimentos.”

Posto isto, concluiu a deputada, também os tribunais “têm entendido que o crime de importunação sexual visa proteger a liberdade sexual de outra pessoa, com especial incidência no facto de não ter de suportar condutas que agridam ou infrinjam a esfera sexual dessa pessoa”, pelo que “afigura-se que as alterações propostas [nos projectos] estão já contempladas na lei”.

Na verdade, como já referido, se há algo que ressalta da jurisprudência portuguesa em matéria de assédio sexual – nomeadamente no que respeita ao crime de importunação sexual, mas também a outros que cabem na definição de assédio, como a coação sexual (artigo 163º do CP, que pune com um a oito anos de prisão “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir” constrange outra pessoa “a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo”) – é que esta sistematicamente desvaloriza esse delito, a não ser que as vítimas sejam menores de 14, caso em que os actos em causa cabem no tipo criminal “abuso sexual de menores”.

Aliás, apesar de o número de inquéritos por importunação sexual ter vindo a aumentar nos últimos anos, verificando-se, entre 2016 e 2019, um aumento de 30,7% (de 733 para 958) – o que deverá corresponder a uma maior consciencialização do valor da liberdade sexual e da existência deste tipo criminal -, pouco mais de 10% resultam em acusação, e, tanto quando se conhece publicamente, são raríssimas as decisões que o punem.

O crime que não é realmente crime

Há aliás casos caricaturais na demonstração da relutância da justiça portuguesa em punir a importunação sexual quando está em causa uma vítima com 14 anos ou mais.

Como o de uma menina de 14 anos a quem um homem, quando ela ia a passar para a escola, exibiu pelo menos duas vezes o pénis. Numa decisão de 2014, o Tribunal da Relação de Évora, apesar de dar os factos como provados, entendeu absolvê-lo dos dois crimes de importunação sexual de que vinha acusado.

O aspecto caricatural deriva de esta menina, chamemos-lhe Diana, fazer parte de um grupo de vítimas entre os 10 e os 14 anos às quais o arguido tinha, provou-se, exibido o falo repetidamente ao longo de 2010 e 2011. Tendo o acórdão confirmado a condenação no que respeitava aos actos dirigidos às meninas dos 10 aos 13 – incluindo Diana, enquanto não fez 14 anos, no grupo das vítimas do crime -, explica por que motivo a mesma pessoa, perante os mesmos factos, sofre um dano até aos 13 anos que inexiste mal sopra as velas dos 14.

“A exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, erecto ou não, perante vítima menor de 14 anos, a quem se causa deste modo receio, susto, intimidação e perturbação (…) atinge a liberdade da vítima na vertente da sua autodeterminação sexual e é conduta perturbadora do desenvolvimento livre da sexualidade da menor atingida”, argumentam as duas magistradas que assinam a decisão. “Já relativamente a vítima de maior idade (…) em que não está em causa a tutela do desenvolvimento livre da personalidade sexual mas apenas o da liberdade sexual, exigir-se-á a comprovação de factos complementares, dos quais resulte que o ato exibicionista representou, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de ato sexual que ofendesse a sua liberdade sexual.”

Conclui-se assim que para as magistradas – e para vários penalistas, alguns deles juízes, que citam para consubstanciar a decisão (como a juíza desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, que em 2007 se pronunciou pela “desnecessidade da incriminação da conduta relativa à prática de actos de carácter exibicionista quando a vítima é pessoa adulta”) – a confrontação indesejada com a exibição de um órgão sexual por um adulto, que no caso de menores de 14 o acórdão diz ter resultado em ficarem “assustadas, receosas, intimidadas, perturbadas e constrangidas com as actuações do arguido”, não é, para alguém a partir dos 14 anos, violência que chegue, não merecendo tutela penal.

O corpo das mulheres como “propriedade pública”

Igualmente desmerecedor de tutela penal, segundo uma juíza de instrução da comarca de Évora numa decisão de 2011, é o comportamento de um homem que sistematicamente se roçava nas nádegas de uma colega quando esta estava a pôr e tirar loiça da máquina (trabalhavam num restaurante) e lhe mexia no corpo apesar de esta protestar e lhe pedir para não o fazer.

Para esta magistrada, não estava preenchido o tipo criminal “importunação sexual” porque este fala de “constranger” e ela não via constrangimento algum: “O constrangimento da vítima, necessário ao preenchimento do ilícito típico, pressupõe coação (isto é, uma imposição, uma forma de pressão que vença a oposição da vítima, por mínima que seja), algo mais de que a simples sujeição a um contacto inesperado.” E também esta juíza cita, em concordância, a desembargadora Maria do Carmo Silva Dias: “A instantaneidade e surpresa do contacto de natureza sexual afasta por um lado a relevância desse contacto e, por outro, afasta a própria noção de constrangimento.”” Em resumo, para estas duas juízas, se se obrigar alguém a contacto sexual apanhando a pessoa de surpresa e não lhe dando tempo para “resistir”, não haverá crime.

Outro tipo de abordagem escolheu um juiz de instrução de Viana do Castelo para negar natureza criminal ao ato de beijar à força, na face e na boca, uma jovem de 21 anos.

O caso analisado ocorreu em Julho de 2015 (quando a Convenção de Istambul já vigorava no ordenamento português há quase um ano), e diz respeito a um trabalhador de um serviço municipal da cidade do Minho que, nas instalações desse mesmo serviço, agarrou e beijou, primeiro na face e depois na boca, a dita jovem.

Acusado de coação sexual pelo Ministério Público, que considerou (seguindo a opinião por exemplo de Pinto de Albuquerque) ser um beijo na boca um “ato sexual de relevo”, o homem foi em 2016 poupado a julgamento por um juiz de instrução. Malgrado reconhecer ter existido violência e tratar-se de “um ato socialmente inaceitável”, o magistrado considerou que não havia hipótese de um tribunal ver crime na conduta em causa.

O argumentário passou por negar aos beijos o estatuto de “actos sexuais de relevo”. Citando o penalista Jorge Figueiredo Dias, o juiz argumentou ser de excluir do ato sexual de relevo não apenas os actos “insignificantes ou bagatelares”, mas também aqueles que não representem “entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima” (“actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima”).

Já o crime de importunação sexual – criado para, precisamente, punir o constrangimento a contactos de natureza sexual que não sejam “atcos sexuais de relevo” (definição que inclui todos os actos sexuais mais gravosos, à excepção da penetração) – nem sequer foi contemplado pelo magistrado; é como se não existisse. Isso mesmo frisou o Tribunal da Relação de Guimarães, para o qual o MP recorreu da decisão do juiz de instrução, e que em 2017 anulou a decisão deste, ordenando que o homem fosse a julgamento, já que das duas uma: ou estava em causa um crime de coação sexual ou um crime de importunação sexual.

Um aspecto curioso deste processo é o facto de nenhum dos intervenientes judiciais – nem juiz de instrução, nem MP, nem Relação – ter feito menção à Convenção de Istambul, quanto mais à “leitura da lei à luz da mesma”.

Na verdade, constata-se, é como se, em várias destas decisões, nem o crime de importunação sexual fosse um crime a sério nem Portugal fosse signatário de um tratado internacional contra todas as formas de violência sobre as mulheres que tem, como advertiu a deputada Mónica Quintela no debate parlamentar, aplicação directa no nosso ordenamento jurídico.

Não se deve pois estranhar que as vítimas de assédio se queixem pouco ou nada. Ou que, como dizia em 2017 ao DN Filipa Moreira, então com 19 anos, concluam que serem vítimas é uma inevitabilidade, uma natureza: “Não me lembro de existir sem ser assediada. E não tenho uma mulher à minha volta que nunca o tenha sido. Parece que faz parte. É uma intrusão, uma agressão tal que nem percebo como é possível, mas começamos a internalizar essa “normalidade’ muito cedo. Infelizmente a sociedade está criada assim, o corpo das mulheres é propriedade pública.”

D.N.
Fernanda Câncio
14 Junho 2023 — 00:06


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O “mea culpa” sem culpa de Boaventura

 

🇵🇹 OPINIÃO

Quase dois meses após o rebentar do escândalo, e depois de ameaçar com processos por difamação todas as que o acusam de comportamentos inapropriados, o sociólogo crismado de “professor estrela” oferece uma “retractação”. Mas de quê?

“Se eu fosse mulher,

teria de me sentir em ruínas

para alguém se não sentir em ruínas.

Se eu fosse mulher,

teria de esperar que alguém me dissesse e esperar o momento para lhe dizer que não me dissesse. (…)

Se eu fosse mulher, sentiria as mãos onde não queria (…).

Se eu fosse mulher, não haveria melindres que me melindrassem (…).”

Este é um excerto de um longo poema – Se eu fosse mulher -, publicado em 2006, como inédito, na revista Confraria do Vento.

O autor é Boaventura Sousa Santos. Esse mesmo, o sociólogo, o pensador do “sul global”, o director emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) que fundou há mais de 40 anos na Universidade de Coimbra.

O mesmo que num artigo – As paredes falavam quando ninguém se atrevia, da autoria de três ex-investigadoras daquele centro – inserto num livro da editora internacional Routledge sobre assédio sexual na academia, publicado em Março, é crismado de “professor estrela” e acusado de, entre outros comportamentos inapropriados, ter assediado sexualmente uma aluna estrangeira de doutoramento, colocando-lhe a mão na perna enquanto propunha trocar “afectos” por apoio académico.

O mesmo que este domingo, num artigo publicado no site do Expresso sob o título “Uma reflexão autocrítica: um compromisso para o futuro”, escreve: “Nascido em 1940, sou de uma geração em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, quer se trate da convivência ou da linguagem, eram aceites pela sociedade. Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados.

Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em acções pouco construtivas. Reconheço que em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos.

Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto e por isso lhes devo uma retratação.”

Parece um mea culpa – é aliás assim, nesses termos exatos, que o Expresso o apresenta: “Um “mea culpa sobre o seu comportamento”. Outros meios reiteraram: “Boaventura admite comportamentos inapropriados”.

Mas quais? Onde está a retractação anunciada? De que comportamentos? Podemos ler o texto do início ao fim várias vezes – nada está ali de retractação.

Pelo contrário: “Este meu reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de actos graves que me têm vindo a ser imputados.”

É o reconhecimento de quê, então? De que actos “não graves” que no entanto, admite, podem ter causado sofrimento?

Já sabíamos que Boaventura sabe (como não?) que o machismo e o sexismo existem como estrutura, e que é até capaz de perceber – ou pelo menos de o escrever, como o poema citado demonstra – que as mulheres são conformadas a não mostrarem melindre, a não se queixarem, a suportarem, a calarem. A aceitar sentirem-se, serem, ruínas para que outros caminhem incólumes, imperiais e satisfeitos, sobre essa devastação.

É desse silenciamento, dessa vitimização, dessa redução a ruína que fala o artigo da Routledge, ao citar as pichagens (“Todas sabemos, Boaventura”) que em 2018 apareceram nas paredes do CES como única forma de denúncia possível: ninguém mais falava.

Mas agora, que houve quem falasse, e que Boaventura Sousa Santos reagiu ao artigo e a uma das mulheres que o acusou publicamente de tentar coagi-la a contactos sexuais – a activista indígena Moira Millan – com a ameaça de proceder criminalmente, execrando tudo como “insulto”, “difamação vil”, “distorção e falsificação da realidade”, e até “ataque ad hominem a quem se distingue por lutar por um mundo melhor”, este texto no Expresso pretende ser o quê?

Quem são as “algumas pessoas” a quem o texto pretende pedir desculpa?

Vejamos: há uma “acusadora” pública identificada a quem até hoje Boaventura não ameaçou com processo nem desmentiu sequer.

Trata-se da brasileira Isabella Gonçalves, deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que assumiu (primeiro anonimamente, ao Público e Observador, e depois “dando a cara”), ser a estudante de doutoramento que no artigo da Routledge abandonou o CES depois de “o professor estrela” a ter, numa reunião de trabalho, assediado.

“Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação”.

É isto, narrado ao site jornalístico brasileiro Pública, que Isabella diz ter-se passado em 2013 com o então director do CES e seu orientador.

Como resultado, e dando-se conta de que o apoio a uma denúncia formal não existia – “Todos diziam que eu não era o primeiro caso. Lamentavam, mas não davam suporte ou saída” – decidiu regressar ao seu país. “Boaventura já era conhecido por condutas abusivas.

Humilhava estudantes em público, xingava pesquisadoras, tinha posturas impróprias nas festas. Mas era director do centro académico. Eu sabia que nada aconteceria com ele”.

Antes ainda das suas declarações públicas, e no âmbito da investigação que o DN fez ao caso, a situação (o assédio à aluna estrangeira) tinha sido confirmada ao jornal por alguém que soube dela à época, e que garantiu que no CES bastante mais gente tivera conhecimento do ocorrido – até porque Boaventura acabaria por ser substituído, a pedido da estudante, na orientação do doutoramento.

Essa mesma fonte informou o DN de que Boaventura teria depois tentado pedir desculpa à aluna pelo seu comportamento.

Facto atestado nas várias entrevistas que Isabella deu: “Ele fez uma reunião online comigo para pedir desculpas. Disse que se apaixonou, que era natural entre duas pessoas adultas. Quis manter a orientação da minha tese.

Não topei.” É depois de terminar a tese, em 2018, que Isabella soube que nas paredes do CES começaram a aparecer graffiti com acusações a Boaventura – as pichagens que dão o nome ao artigo do livro da Routledge.

Diz que Boaventura foi a Belo Horizonte (capital de Minas Gerais, o estado onde vive Isabella e do qual é agora deputada), e insinuou que seria ela a fonte das pichagens – uma das quais o acusava de violação.

Os graffiti deram, como o DN relatou na sua investigação, origem a interpelações numa reunião no CES. Na qual o então ainda director da instituição terá dito “tenho relações livres com pessoas adultas”. Ou que “tudo o que fizera era consensual”.

Isabella tinha 26 anos quando, de acordo com o seu relato – que, repita-se, não foi até hoje desmentido pelo sociólogo – Sousa Santos a assediou.

Era uma adulta, decerto; mas, como frisou uma das académicas do CES ao DN, existe entre um director de um centro académico e orientador e uma estudante de doutoramento e orientanda uma relação de poder insofismável (aliás, aquilo que a ex estudante narra é precisamente um exercício ordinário desse poder).

Não há nascimento em 1940 que desculpabilize a situação que Isabella descreve; não há caldo cultural que justifique que um “desconstrutor” profissional de relações de poder surja a pretender só agora ter percebido que afinal pode ter sido “protagonista de comportamentos inapropriados”. Não há mea culpa sem assunção de culpa. E não há, decerto, autocrítica sem crítica.

O que Boaventura Sousa Santos faz no texto do Expresso, ao admitir que “inconscientemente” fez mulheres sofrer mas que não se tratou de comportamentos “graves”, é desculpabilizar o assédio; é dizer que “acontece” e que é chato mas também não se exagere – até porque era “a norma” há tão pouco tempo, que diabo.

O costume – aliás ainda esta sexta-feira o parlamento chumbou a criação de um tipo criminal com esse nome, não se vá “acabar com a sedução” ou, como teme a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, criminalizar “condutas de assédio sexual indesejadas que não ultrapassem a grosseria ou má-educação”.

Não, não é uma retractação; é um retrato. De Boaventura e nosso.

D.N.
Fernanda Câncio
06 Junho 2023 — 00:45


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Falemos de habitação social – mas a sério

 

🇵🇹 OPINIÃO

Num momento de emergência habitacional, é preciso olhar para a (pouca) habitação pública existente e aprender com os muitos erros e as algumas, se houver, boas soluções. Sem nunca perder de vista o objectivo: justiça social.

Leio uma notícia no Público sobre as rendas em atraso no município de Loures. Diz a respectiva Câmara que cerca de metade dos inquilinos de habitação social tem rendas em atraso, totalizando mais de 15 milhões de euros, e que vai dar uma última oportunidade para que os incumpridores paguem, ou passará para as ordens de despejo.

Trata-se, segundo a Câmara, de 1225 agregados faltosos, e de rendas entre 9,61 e 30 euros. Sendo o valor das rendas tão baixo, para se chegar a um passivo de 15 milhões, mesmo contando com as “indemnizações moratórias” (ou seja, os juros acumulados de penalização devido ao não pagamento), é necessário que haja muita renda por pagar.

E haver muita renda por pagar só se explica de duas formas: houve quem não pagasse durante muito tempo e quem não cobrasse durante muito tempo.

Sendo que se não cobrar não é decerto desculpa para não pagar, deixar o assunto arrastar-se durante anos – porque só podemos estar a falar de anos de incumprimento – é uma forma de desrespeito pelo que é de todos tão imperdoável como a de quem não cumpriu.

Este desrespeito é algo que, ao longo de décadas de reportagens sobre bairros sociais e a questão da habitação, sempre me confundiu: por que motivo parece ser tão difícil ao Estado e às autarquias gerir a habitação social?

Porque é que não parece haver meio-termo entre o desleixo que permite passivos de milhões e as periódicas fúrias de despejo?

Veja-se o que diz a autarquia de Loures: dos agregados em incumprimento cerca de 30%, ou seja 800 famílias, nem sequer “apresentaram os papéis” – ou seja, não fizeram a necessária prova dos respectivos rendimentos “apesar de para isso terem sido alertadas várias vezes”.

Significa isto que a autarquia não sabe se aquelas pessoas continuam a ter direito à casa onde estão e se a renda que lhes é aplicada está de acordo com a sua capacidade financeira.

Em última análise a autarquia, que diz ter cerca de mil famílias em lista de espera para uma habitação social – e nesse caso, com “papéis apresentados” e necessidade certificada pelos serviços – não saberá sequer quem está a ocupar aqueles fogos.

Não é um problema novo. No início do século, por exemplo, efectuei uma reportagem sobre o Bairro da Bela Vista, em Setúbal, quando se anunciava um programa de reabilitação do edificado orçado em 10 milhões de euros.

Nesta reportagem, que foi publicada na Notícias Magazine e faz parte do livro Cidades sem nome – Crónicas da vida suburbana, um dos moradores da Bela Vista, de seu nome Francisco Sousa, propunha, perante situações como aquela que a Câmara de Loures denuncia, que a gestão do bairro passasse a ser efectuada, à imagem do bairro na Alemanha onde tinha vivido cinco anos, por quem ali residia.

Com o presidente do conselho directivo da escola básica local, um dos professores e outros moradores e trabalhadores do bairro, Francisco Sousa tinha apresentado a ideia à autarquia.

Na entrevista, elencou aquilo que qualificou como as “regras básicas” dessa gestão: a instituição de uma “renda mínima”, que aquilatava em 25 euros (estamos a falar de 2003/2004, quando o ordenado mínimo não chegava aos 400 euros), eventual perdão das rendas em atraso e um recenseamento porta a porta.

Para, explicava, “ver quem ocupou, quem vendeu a chave…”. Para este homem, a solução para quem tivesse ocupado era “a rua”, porque, considerava, “não se admite”.

Não discuti com ele a dificuldade de compaginar a ideia da habitação social como forma de dar um tecto decente a quem não o tem com a decisão de tirar tecto a quem ocupa um sem seguir as normas (e que ao fazê-lo está tirar a vez a quem se candidatou de acordo com a lei).

Não conheço quem tenha resposta boa para isso, e se não sabia encontrá-la na altura menos ainda a verei agora, quando mesmo a classe média alta se vê aflita para encontrar uma renda ou uma prestação de crédito que possa pagar – e portanto as casas de habitação pública se tornaram ainda mais preciosas.

Não sei igualmente se existe em Portugal algum bairro social no qual a gestão passe por moradores, ou também por moradores.

À partida a ideia parecia-me interessante: há um apego ao lugar e um conhecimento das questões dos quais as estruturas camarárias ou estatais podem beneficiar.

Em todo o caso, não aconteceu na Bela Vista. Quando lá voltei em 2009 – o bairro tinha sido mais uma vez palco de uma intervenção policial musculada, com muitos directos de telejornal – e procurei o morador que queria ajudar a geri-lo, encontrei-o “triste e desiludido”.

“A câmara dizia que tinha os seus gabinetes técnicos, e mandaram para aqui uns tipos todos engravatados fazer horário de expediente, sem conhecerem as pessoas”, informou-me. “Percebi que se calhar ninguém está mesmo interessado em trabalhar a sério nestas zonas.”

Não creio que seja totalmente assim – que ninguém esteja interessado em trabalhar a sério aquelas zonas -, mas o certo é que algo de tão fundamental para a coesão social como a habitação pública foi sido sempre ou quase sempre encarado como um fardo e um problema e não uma solução e uma vantagem, com o Estado a tentar despachar, assumindo milhões de passivo de rendas não cobradas, o seu parque habitacional para as autarquias e estas, mais uns milhões perdidos à frente, tentando livrar-se dele vendendo aos moradores por tuta-e-meia (como sucedeu por exemplo na Bela Vista).

Foi também por esse motivo que chegámos onde estamos, com um dos mais exíguos parques habitacionais públicos da Europa.

Um erro imperdoável – parece que agora toda a gente descobriu isso – que ainda assim não leva a que se tenha encontrado uma forma eficaz e justa de gerir o que há.

Talvez investigando casos de sucesso, no país ou no estrangeiro, e aplicando o que deu resultado, não? Talvez estabelecendo valores de renda que sejam compatíveis com o rendimento dos locatários sem serem tão baixos que se tornem irrisórios e, paradoxalmente, desvalorizem as casas aos olhos de quem as ocupa.

Talvez não permitindo que quem paga a renda se sinta idiota face ao vizinho que fica a dever anos a fio; talvez certificando que o rendimento obtido permite uma manutenção adequada, ao invés de servir de desculpa para deixar estragar. Talvez mudando todo um paradigma – esse que há décadas estigmatiza a habitação pública e os bairros que salvaram (porque salvaram) tanta gente da miséria.

O que não pode mesmo ser é deixar como está. É que assim será muito difícil acreditar que o Estado pode ser capaz de resolver esta emergência.

D.N.
Fernanda Câncio
30 Maio 2023 — 01:27


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