🇵🇹 OPINIÃO
Relvado e bloco, alguma semelhança? Locais onde se realizam os “jogos”, e se tenta ganhar. Nos relvados ganham-se campeonatos, nos blocos operatórios ganham-se vidas. Para que isso aconteça, os atletas, quer desportistas, quer médicos, têm de estar preparados, quer a nível físico, quer a nível técnico e mental.
A nível físico as exigências são radicalmente diferentes: aos desportistas são exigidos patamares muito difíceis de alcançar, em idades muito precoces, que exigem quantidades de treino brutais, e sólidos conhecimentos teóricos de quem os prepara e lidera. E com raríssimas excepções tudo acaba para eles na década de 30.
Aos atletas médicos-cirurgiões, as exigências físicas são quase irrelevantes, pode ser-se um grande atleta cirurgião, com peso a mais, o auge das suas capacidades atinge-se muito mais tarde, muito depois de os futebolistas serem obrigados a parar. Têm de parar por razões diferentes: as limitações físicas nos futebolistas, as limitações intelectuais nos cirurgiões.
Claro que em certas especialidades cirúrgicas, que necessitam de realizar operações muito prolongadas, também o aspecto físico pode contar. Em ambas as profissões o treino é fundamental, quer em quantidade, quer em qualidade. Também a qualidade dos relvados conta.
Fui atleta cirúrgico de alta-competição durante muitos anos, joguei em terrenos pelados e relvados horríveis, fui treinador desde muito cedo. Ainda atleta, já treinava os mais novos, passei a treinador-adjunto mesmo sem as competências exigidas, depois completei o curso até ser, treinador-principal. E fui obrigado a formar CAMPEÕES.
Porquê? Porque os nossos jogos, as competições em que os cirurgiões estão envolvidos, exigem sempre vitórias. Os nossos adversários são as doenças, e estas, tal como as equipas que os profissionais futebolistas têm de defrontar, são de dificuldade muito diferente.
Quando fui treinado a operar coisas simples, o meu formador estava lá, à minha frente, para poder garantir ao doente não ser prejudicado pela minha inexperiência.
Uma equipa cirúrgica, para vencer no bloco operatório uma doença banal, pode jogar com as reservas, os menos vezes titulares. Cabe ao treinador cirurgião, saber qual a dificuldade do adversário, e escolher os seus jogadores. Contra um cancro do fígado que exige um transplante hepático, só pode pôr a jogar os melhores.
Mas, para isso, teve de os treinar quer a nível técnico, quer a nível mental. Se o futebolista profissional não pode treinar, ou não se empenha nos treinos, não pode jogar. E por muito talentosos que sejam, não jogam logo como titulares em equipas que lutem em campeonatos muito exigentes.
Treinar um atleta cirurgião, tem outras condicionantes. Os cirurgiões ganham experiência contra doenças progressivamente mais difíceis, mas o terreno não é um relvado de maior ou menor qualidade, o terreno são seres humanos doentes que é preciso respeitar.
Quando fui treinado a operar coisas simples, o meu formador estava lá, à minha frente, para poder garantir ao doente não ser prejudicado pela minha inexperiência. O Centro que criei, para tratamento das doenças HBP, incluindo a transplantação, alinha numa liga profissional exigente, e tem de jogar sempre para ganhar.
E só pode aspirar a isso se jogarem os melhores, os potenciais campeões. Temos de funcionar em bloco, é sempre bom termos grandes talentos, mas melhor ainda é termos grandes equipas. Não só na cirúrgica, mas na anestesia e na enfermagem.
Como cirurgião, a partir dos 40 anos joguei em grandes ligas, defrontei grandes adversários, e para isso, tive antes de ir rodar no estrangeiro, passei 2 anos em Cambridge a treinar e jogar a espaços no melhor centro de transplante à época na Europa.
Treinei muito, nem sempre era convocado ou ficava no banco, sacrifiquei a família, gastei todas as minhas economias, pois o meu clube em Lisboa, os HCL, só me pagava o pequeno salário da nossa liga. Esta é também uma grande diferença entre os profissionais futebolistas e os atletas-cirurgiões.
Eles jogam em estádios com milhares de espectadores, em espectáculos vistos na TV por milhões. Nós jogamos em estádios sem público, podemos fazer grandes exibições, mas só somos vistos e julgados pelos pares, apenas no fim nos cumprimentamos com solidariedade, muito satisfeitos quando ganhamos.
Quando festejamos o êxito do nosso primeiro transplante hepático em Portugal, deixamos cair lágrimas de satisfação e orgulho, porque tínhamos ganho o jogo.
Nessa altura, desde logo o meu treinador assumiu que tinha de ser eu a ajudar a formar outros atletas. Como fazê-lo? Tínhamos de ter muitos mais jogos por temporada, sem casuísticas grandes não era possível ter possibilidade de ir pondo alguns suplentes a titulares, a entrar minutos, a rodá-los.
Quando cheguei ao HCC em 2003, constatei que o número de cirurgias HBP que não precisavam de transplante não era suficiente.
Com esse número de jogos, não dava sequer para nos mantermos na primeira liga. Nessa altura não me preocupei com aspectos formativos, o objectivo era aumentar a nossa procura e ter excelentes resultados. A partir daí, com muitos mais doentes, muitos mais jogos, era possível pensar em formar outros jogadores para serem titulares.
Mas arranjámos maneira de termos jogos em ligas menos exigentes, construímos um estádio novo, modesto e com equipamento antigo, sobrado dos blocos da primeira liga. Nesses jogos os doentes eram leitões, operados como seres humanos, foi aí que começou a nossa academia, o treino dos futuros craques.
Treinei muito, nem sempre era convocado ou ficava no banco, sacrifiquei a família, gastei todas as minhas economias, pois o meu clube em Lisboa, os HCL, só me pagava o pequeno salário da nossa liga. Esta é também uma grande diferença entre os profissionais futebolistas e os atletas-cirurgiões.
Tinha aprendido em Cambridge, que conseguir fazer com êxito transplantes hepáticos no porco, era tecnicamente mais difícil que no humano, um treino específico, exigente e fundamental.
O aumento exponencial de doentes, que em 2008 atingiu números que bateram quase todos os centros europeus dedicados à cirurgia HBP, incluindo o transplante, foi permitindo passar de suplentes crónicos a jogadores titulares vários elementos. E à medida que havia novos titulares absolutos, esses mesmos passaram a ter de ser em campo novos formadores.
Quando em Setembro de 1992 fizemos o primeiro transplante hepático programado em Portugal, apenas eu era titular indiscutível. Cheguei a vir da Madeira e do Algarve apenas para poder haver jogo.
No primeiro doente com cirrose hepática, o segundo da nossa série, o nosso jogo no HCC, começou, por coincidência à mesma hora de um Sporting-Benfica. Lembro-me disso porque o nosso enfermeiro-chefe, entrou no bloco operatório a avisar-me do primeiro golo do Balakov, logo nos primeiros minutos.
Eu não acreditei, pensei ser apenas para me fazer diminuir o enorme stress. Mas aos 13 minutos entrou com um rádio no bloco, relatando o segundo golo, desta vez do Cherbakov.
Nessa noite os profissionais do Sporting ganharam 2 a 0 ao Benfica, mas mais importante, nós, os atletas-médicos no bloco do HCC ganhámos àquela terrível cirrose hepática, e com isso ganhou também a Maria Mota, 31 anos de vida, pois ainda está entre nós, lúcida e com 92 anos.
Como treinador principal há muitos anos, formar operadores é mais fácil desde que haja casuística, formar cirurgiões campeões tem muito mais que se lhe diga.
Retirei-me obrigatoriamente aos 70 anos do SNS, com mais de 2500 transplantes hepáticos realizados e mais de 4000 cirurgias HBP que não precisaram de transplante. E deixei mais de uma dezena de cirurgiões titulares, dos melhores do mundo.
Deixei de operar aos 72, sentindo já o peso dos anos na minha capacidade técnica. Um jogador profissional tem de saber quando deve parar.
Posso ainda ser um treinador em alguns aspectos do exercício da cirurgia, enquanto as minhas capacidades intelectuais se mantiverem intactas, mas não posso, nem devo, arrastar-me no terreno de jogo prejudicando os doentes.
Parar de operar foi também a minha última maneira de ensinar aos mais novos, que o respeito pelos doentes é a nossa principal missão.
Cirurgião.
Escreve segundo a antiga ortografia
DN
Eduardo Barroso
05 Agosto 2023 — 00:19
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 2 meses ago