314: Do relvado ao bloco operatório

 

🇵🇹 OPINIÃO

Relvado e bloco, alguma semelhança? Locais onde se realizam os “jogos”, e se tenta ganhar. Nos relvados ganham-se campeonatos, nos blocos operatórios ganham-se vidas. Para que isso aconteça, os atletas, quer desportistas, quer médicos, têm de estar preparados, quer a nível físico, quer a nível técnico e mental.

A nível físico as exigências são radicalmente diferentes: aos desportistas são exigidos patamares muito difíceis de alcançar, em idades muito precoces, que exigem quantidades de treino brutais, e sólidos conhecimentos teóricos de quem os prepara e lidera. E com raríssimas excepções tudo acaba para eles na década de 30.

Aos atletas médicos-cirurgiões, as exigências físicas são quase irrelevantes, pode ser-se um grande atleta cirurgião, com peso a mais, o auge das suas capacidades atinge-se muito mais tarde, muito depois de os futebolistas serem obrigados a parar. Têm de parar por razões diferentes: as limitações físicas nos futebolistas, as limitações intelectuais nos cirurgiões.

Claro que em certas especialidades cirúrgicas, que necessitam de realizar operações muito prolongadas, também o aspecto físico pode contar. Em ambas as profissões o treino é fundamental, quer em quantidade, quer em qualidade. Também a qualidade dos relvados conta.

Fui atleta cirúrgico de alta-competição durante muitos anos, joguei em terrenos pelados e relvados horríveis, fui treinador desde muito cedo. Ainda atleta, já treinava os mais novos, passei a treinador-adjunto mesmo sem as competências exigidas, depois completei o curso até ser, treinador-principal. E fui obrigado a formar CAMPEÕES.

Porquê? Porque os nossos jogos, as competições em que os cirurgiões estão envolvidos, exigem sempre vitórias. Os nossos adversários são as doenças, e estas, tal como as equipas que os profissionais futebolistas têm de defrontar, são de dificuldade muito diferente.

Quando fui treinado a operar coisas simples, o meu formador estava lá, à minha frente, para poder garantir ao doente não ser prejudicado pela minha inexperiência.

Uma equipa cirúrgica, para vencer no bloco operatório uma doença banal, pode jogar com as reservas, os menos vezes titulares. Cabe ao treinador cirurgião, saber qual a dificuldade do adversário, e escolher os seus jogadores. Contra um cancro do fígado que exige um transplante hepático, só pode pôr a jogar os melhores.

Mas, para isso, teve de os treinar quer a nível técnico, quer a nível mental. Se o futebolista profissional não pode treinar, ou não se empenha nos treinos, não pode jogar. E por muito talentosos que sejam, não jogam logo como titulares em equipas que lutem em campeonatos muito exigentes.

Treinar um atleta cirurgião, tem outras condicionantes. Os cirurgiões ganham experiência contra doenças progressivamente mais difíceis, mas o terreno não é um relvado de maior ou menor qualidade, o terreno são seres humanos doentes que é preciso respeitar.

Quando fui treinado a operar coisas simples, o meu formador estava lá, à minha frente, para poder garantir ao doente não ser prejudicado pela minha inexperiência. O Centro que criei, para tratamento das doenças HBP, incluindo a transplantação, alinha numa liga profissional exigente, e tem de jogar sempre para ganhar.

E só pode aspirar a isso se jogarem os melhores, os potenciais campeões. Temos de funcionar em bloco, é sempre bom termos grandes talentos, mas melhor ainda é termos grandes equipas. Não só na cirúrgica, mas na anestesia e na enfermagem.

Como cirurgião, a partir dos 40 anos joguei em grandes ligas, defrontei grandes adversários, e para isso, tive antes de ir rodar no estrangeiro, passei 2 anos em Cambridge a treinar e jogar a espaços no melhor centro de transplante à época na Europa.

Treinei muito, nem sempre era convocado ou ficava no banco, sacrifiquei a família, gastei todas as minhas economias, pois o meu clube em Lisboa, os HCL, só me pagava o pequeno salário da nossa liga. Esta é também uma grande diferença entre os profissionais futebolistas e os atletas-cirurgiões.

Eles jogam em estádios com milhares de espectadores, em espectáculos vistos na TV por milhões. Nós jogamos em estádios sem público, podemos fazer grandes exibições, mas só somos vistos e julgados pelos pares, apenas no fim nos cumprimentamos com solidariedade, muito satisfeitos quando ganhamos.

Quando festejamos o êxito do nosso primeiro transplante hepático em Portugal, deixamos cair lágrimas de satisfação e orgulho, porque tínhamos ganho o jogo.

Nessa altura, desde logo o meu treinador assumiu que tinha de ser eu a ajudar a formar outros atletas. Como fazê-lo? Tínhamos de ter muitos mais jogos por temporada, sem casuísticas grandes não era possível ter possibilidade de ir pondo alguns suplentes a titulares, a entrar minutos, a rodá-los.

Quando cheguei ao HCC em 2003, constatei que o número de cirurgias HBP que não precisavam de transplante não era suficiente.

Com esse número de jogos, não dava sequer para nos mantermos na primeira liga. Nessa altura não me preocupei com aspectos formativos, o objectivo era aumentar a nossa procura e ter excelentes resultados. A partir daí, com muitos mais doentes, muitos mais jogos, era possível pensar em formar outros jogadores para serem titulares.

Mas arranjámos maneira de termos jogos em ligas menos exigentes, construímos um estádio novo, modesto e com equipamento antigo, sobrado dos blocos da primeira liga. Nesses jogos os doentes eram leitões, operados como seres humanos, foi aí que começou a nossa academia, o treino dos futuros craques.

Treinei muito, nem sempre era convocado ou ficava no banco, sacrifiquei a família, gastei todas as minhas economias, pois o meu clube em Lisboa, os HCL, só me pagava o pequeno salário da nossa liga. Esta é também uma grande diferença entre os profissionais futebolistas e os atletas-cirurgiões.

Tinha aprendido em Cambridge, que conseguir fazer com êxito transplantes hepáticos no porco, era tecnicamente mais difícil que no humano, um treino específico, exigente e fundamental.

O aumento exponencial de doentes, que em 2008 atingiu números que bateram quase todos os centros europeus dedicados à cirurgia HBP, incluindo o transplante, foi permitindo passar de suplentes crónicos a jogadores titulares vários elementos. E à medida que havia novos titulares absolutos, esses mesmos passaram a ter de ser em campo novos formadores.

Quando em Setembro de 1992 fizemos o primeiro transplante hepático programado em Portugal, apenas eu era titular indiscutível. Cheguei a vir da Madeira e do Algarve apenas para poder haver jogo.

No primeiro doente com cirrose hepática, o segundo da nossa série, o nosso jogo no HCC, começou, por coincidência à mesma hora de um Sporting-Benfica. Lembro-me disso porque o nosso enfermeiro-chefe, entrou no bloco operatório a avisar-me do primeiro golo do Balakov, logo nos primeiros minutos.

Eu não acreditei, pensei ser apenas para me fazer diminuir o enorme stress. Mas aos 13 minutos entrou com um rádio no bloco, relatando o segundo golo, desta vez do Cherbakov.

Nessa noite os profissionais do Sporting ganharam 2 a 0 ao Benfica, mas mais importante, nós, os atletas-médicos no bloco do HCC ganhámos àquela terrível cirrose hepática, e com isso ganhou também a Maria Mota, 31 anos de vida, pois ainda está entre nós, lúcida e com 92 anos.

Como treinador principal há muitos anos, formar operadores é mais fácil desde que haja casuística, formar cirurgiões campeões tem muito mais que se lhe diga.

Retirei-me obrigatoriamente aos 70 anos do SNS, com mais de 2500 transplantes hepáticos realizados e mais de 4000 cirurgias HBP que não precisaram de transplante. E deixei mais de uma dezena de cirurgiões titulares, dos melhores do mundo.

Deixei de operar aos 72, sentindo já o peso dos anos na minha capacidade técnica. Um jogador profissional tem de saber quando deve parar.

Posso ainda ser um treinador em alguns aspectos do exercício da cirurgia, enquanto as minhas capacidades intelectuais se mantiverem intactas, mas não posso, nem devo, arrastar-me no terreno de jogo prejudicando os doentes.

Parar de operar foi também a minha última maneira de ensinar aos mais novos, que o respeito pelos doentes é a nossa principal missão.

Cirurgião.
Escreve segundo a antiga ortografia

DN
Eduardo Barroso
05 Agosto 2023 — 00:19


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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163: Centros de referência

 

🇵🇹 OPINIÃO

A portaria nº194/2014, publicada no Diário da República,1ª série-Nº 188, em 30 de Setembro de 2014, veio finalmente contribuir para a reforma estrutural do sector hospitalar.

Que veio legislar? Proceder à definição do conceito de Centro de Referência, estabelecer critérios para a criação e reconhecimento pelo Ministério da Saúde, propor o modelo de implementação, financiamento e concepção da integração na Rede Hospitalar.

Habituados que estamos a discutir o SNS, apenas em aspectos quantitativos, isto é, na capacidade de resposta ou falta dela, o aspecto qualitativo é frequentemente deixado para segundo plano.

Não quero dizer que os aspectos quantitativos não sejam importantes, sabendo-se que as listas de espera para consultas e tratamentos médicos e cirúrgicos são demasiado longas.

Mas a resposta tem também de ser avaliada em termos qualitativos, de pouco serve a resposta atempada se se revelar pouco eficaz para fazer frente a determinadas doenças.

Lutar por um SNS competente, implica organizar os hospitais, para tratar doenças mais raras ou complexas, em Centros de Referência. A moderna medicina hospitalar exige novo modelo organizativo.

Dado o constante progresso da medicina, com consequente aumento de literatura científica, os progressos na compreensão das doenças e suas causas, os novos meios de diagnóstico e abordagens terapêuticas médicas (com constante introdução de novos fármacos) e cirúrgicas (com aumento de novas abordagens e tecnologias), exige uma abordagem simultânea e multidisciplinar para a grande maioria das patologias complexas de vários órgãos ou sistemas.

O tempo de todos fazerem tudo com qualidade e competência, sem volume de casuística que permita adquirir experiência e capacidade formativa acabou.

Fui cirurgião muito cedo, certificado em exames hospitalares e na Ordem, e depressa percebi que o modelo organizativo dos então Hospitais Civis de Lisboa era inimigo da especialização e da qualidade.

Ninguém conseguia, para poder diagnosticar e tratar certas doenças mais graves ou complexas, reunir casuísticas que permitissem adquirir experiência e formar com competência os mais novos.

Passado o entusiasmo inicial, em que pensava erradamente ser já competente em todas as áreas, entendi que tinha dedicar-me apenas a certas doenças e ganhar experiência.

Mesmo antes de sair a lei que consagra os CR, já tínhamos criado, no Curry Cabral, o CHBPT (Centro Hepato-Bilio-Pâncreatico e Transplantação, Fevereiro de 2005). E para isso tivemos, muito antes, de criar infra-estruturas e valências médicas necessárias e funcionar em equipas multidisciplinares.

É facto que muitos anos antes de 2014 já oferecíamos aos doentes que nos procuravam com doenças complexas do foro hepático, das vias biliares ou do pâncreas, um modelo organizativo que cumpria todas as exigências da portaria 194/2014.

Mas de boas intenções está o inferno cheio, diz o povo com razão. E ter feito a lei não chega, é preciso fazer cumpri-la, com rigor e bom senso, é isso que esperam os nossos potenciais doentes.

Independentemente de ter de se dar a cada cidadão um médico de família, aumentar a capacidade de resposta em consultas, exames e cirurgias, é preciso nunca esquecer a importância da qualidade da resposta.

Organizar os hospitais do SNS de modo que os portugueses saibam onde se devem dirigir quando têm certa doença, sabendo que é nesses locais que podem ser mais bem tratados, é fundamental. Nem todos eles podem ser ao pé de casa.

E as regras a aplicar no SNS têm obrigatoriamente de ser cumpridas nos hospitais privados. Tal como nos públicos, para se candidatarem a CR têm de cumpri-las escrupulosamente.

Os CR foram imaginados e criados para defesa dos doentes, por respeito por eles. Os que, por sofrerem de determinada doença, mais rara ou complexa, precisam de equipas profissionais com muita experiência nessas áreas.

Quando criamos o CHBPT em 2005, o volume de doentes tratados na área só permitia que muito poucos tivessem experiência para o fazer. De 175 cirurgias hepáticas em 2003 e 2004, passámos a mais de 450 em 2006.

Esse brutal aumento de doentes, permitiu não só diagnosticá-los, definir estratégias terapêuticas e operá-los com mais segurança, como formar cirurgiões do futuro com naturalidade e competência. É isso que se pretende com os CR, dar-lhes dimensão (escala) e qualidade.

Tal como na aviação civil, onde se exige aos pilotos, entre muitas outras coisas, horas de voo mínimas para garantir eficácia e segurança, para determinadas doenças que precisam de cirurgia devem ser exigidos aos cirurgiões números mínimos dessas intervenções.

Por deformação profissional, dei exemplos ligados à cirurgia, mas tudo o que disse se aplica às doenças raras ou complexas de qualquer natureza. Só deve tratá-las quem tem muitas “horas de voo” na área.

Fica claro porque defendo os Centros de Referência? Espero que sim, afinal essa foi a luta da minha vida, a melhor maneira que encontrei de mostrar respeito pelos nossos doentes.

NOTA: Esta crónica foi escrita antes de ter sido nomeado pelo ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a 26 de Maio de 2023, Presidente da Comissão Nacional para os Centros de Referência.

A CNCR resulta da portaria de 2014, que citei, promulgada pelo então ministro da Saúde Paulo Macedo. Aceitei a tarefa que espero, com a minha equipa, cumprir com lealdade e competência.

Cirurgião. Escreve com a antiga ortografia

D.N.
Eduardo Barroso
10 Junho 2023 — 00:23

 


Web-designer, Investigador
e Criador de Conteúdos Digitais


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68: Respeitar os doentes, sempre!

 

– Pena que o Hipócrates apenas sirva para algumas (poucas) coisas…

🇵🇹 OPINIÃO

” Primeiro, não fazer mal…”

(Atribuído a Hipócrates, 460 aC.)

Num interessante livro, que na tradução portuguesa, tem o título Não faças mal, Henry Marsh, um grande neurocirurgião inglês, faz uma reflexão sobre os erros, a culpa e o lado humano da medicina.

Talvez demasiado auto-crítico, e até demasiado pessimista, começando logo com uma citação de René Leriche, retirada da obra La philosophie de la chirurgie de 1951 que passo a transcrever: “Todos os cirurgiões trazem dentro de si um pequeno cemitério aonde vão rezar, de tempos a tempos — um local de amargura e remorsos, onde têm de encontrar uma explicação para as suas falhas”.

Percebo no entanto a razão que o levou a escrever este magnifico livro, que Ian McEwan, grande escritor britânico, classificou de assombroso e o The Independent “uma visão fascinante sobre o que é desempenhar o papel de Deus”.

Para alguém como ele, que sabe melhor do que ninguém que salvou, ou melhorou milhares de vidas, fazer uma reflexão onde se concentra sobretudo sobre aquelas em que não o conseguiu fazer, corresponde a uma necessidade imperiosa de ajustar contas com a vida. De ficar bem com a sua consciência. Como eu o percebo.

Eu faço parte daqueles cirurgiões que trago dentro de mim um pequeno cemitério, onde vou rezar de tempos a tempos, e tento encontrar uma explicação para as minhas falhas.

Nem sempre um efeito adverso que na sua forma mais grave pode resultar na morte de um doente, resulta de erros ou falhas, mas não deixam de ser um local de amargura e remorsos, como diz René Leriche.

A primeira preocupação de qualquer médico é não fazer mal, o que para os cirurgiões tem um significado ainda maior. Nós, cirurgiões, que para podermos ser úteis e eficazes, temos sempre de começar por agredir.

E a pior coisa que podemos fazer é agredir sabendo que não havia indicação para o fazer, operar sabendo que não havia indicação, ou pior ainda, sabendo, ou tendo dúvidas, que não tínhamos competência para o fazer. Destas duas horríveis situações, que revelam um total desrespeito pelos doentes, tenho a consciência completamente tranquila.

Posso ter-me enganado com uma indicação que pensava correta mas que acabou por não se confirmar, mas NUNCA operei ou propus operar nenhum doente, em que soubesse à partida não haver indicação. E sempre fui muito crítico em relação às minhas competências específicas, NUNCA me propus fazer uma operação onde sequer suspeitasse não ser competente.

Quando fiz a minha primeira transplantação hepática na vida, estava completamente convencido que me tinha preparado intensamente para isso, mas não deixou de ser um enorme risco para o doente.

Mesmo estando preparado para fazer determinadas intervenções, mesmo tendo corrido tudo bem e não se ter cometido qualquer erro, as complicações acontecem, e os doentes sofrem e podem até morrer.

E é difícil viver com isso, a vida profissional de Henry Marsh é a prova disso.

Por isso sou um defensor acérrimo dos Centros de Referência, onde podemos à partida, tentar garantir as melhores condições para podermos vencer certas batalhas, certas doenças muito graves. Com isso garantimos sempre sucessos? Garantimos não haver nunca complicações?

Impossível, garantimos apenas total respeito pelos nossos doentes, e isso, acreditem meus caros leitores, faz-nos poder adormecer com a consciência tranquila, às vezes, no meu caso, com a ajuda de um comprimido e com as lágrimas nos olhos.

Sei que tive falhas, estive longe de ser infalível, encontrei eu sempre uma explicação para as minhas falhas? Vou seguir o exemplo de Henry Marsh, talvez em Outubro possa contar-vos, com total transparência, um trajecto de vida enquanto médico cirurgião.

Não vou ser masoquista, reportar apenas eventuais falhas ou inêxitos, e esconder-vos as coisas boas, felizmente em muito maior número, mas espero que desse trajecto ressalte sempre, mas sempre, o enorme respeito, a enorme consideração que tive pelos meus doentes.

Cirurgião

Escreve com a antiga ortografia

D.N.
Eduardo Barroso
06 Maio 2023 — 00:19


Web-designer, Investigador
e Criador de Conteúdos Digitais


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15: Porquê a especialização?

 

🇵🇹 OPINIÃO

O exercício da moderna medicina hospitalar, e isto é válido para todas as especialidades médicas e cirúrgicas, exige nos dias de hoje, sobretudo para as doenças mais raras ou muito complexas, elevados graus de especialização.

Como cirurgião, tenho tendência, como é natural, de falar deste tema, baseando-me nas especialidades em que a cirurgia tem um papel mais relevante. Mas este conceito de especialização aplica-se a todas as especialidades médicas, sejam elas quais forem.

Quando os especialistas de medicina interna identificam uma doença mais complexa do foro cardíaco têm, na maioria das vezes de a enviar a um serviço de cardiologia, e o mesmo acontece com as doenças neurológicas de alta complexidade, nas quais os neurologistas podem ser mais competentes e eficazes.

Dei estes dois exemplos, como poderia falar das doenças renais, hepáticas, gastro-enterológicas e muitas outras, onde se criaram especialidades médicas dedicadas ao tratamento dessas doenças.

Todas as especialidades médicas e cirúrgicas foram, durante o século XX, saindo das duas grandes especialidades da época, as médicas e as cirúrgicas.

Ninguém contesta hoje que da especialidade mãe chamada cirurgia geral, dos começos do século XX, fossem saindo especialidades cirúrgicas, como a ortopedia, a neurocirurgia, a urologia, a cirurgia torácica e a vascular, a ginecologia e muitas outras que todos conhecem. Isto implicou que os chamados cirurgiões gerais do último terço do século XX, vissem cada vez mais reduzidos os seus campos de acção.

Com a saída da cirurgia da mama, das partes moles ou da cabeça e pescoço, os cirurgiões gerais deste século XXI, ficaram apenas com a cirurgia digestiva e a cirurgia de urgência.

APENAS? Da própria cirurgia digestiva foram saindo várias sub-especializações, por absoluta necessidade de se conseguir números mínimos (casuísticas) que permitissem ganhar e manter experiência e conseguir treinar os mais novos.

Tal como no século XX foram saindo dos dois grandes ramos da medicina especialidades médicas e especialidades cirúrgicas que hoje ninguém contesta, dessas especialidades, ainda no final do século passado, se foram criando áreas de interesse com a mesma finalidade.

Não sendo ortopedista, sei que os meus colegas dessa especialidade não podem ser competentes em toda a vasta área que abrange essa especialidade. Uns dedicam-se mais ao joelho, outros à coluna, outros ao ombro, para só dar curtos exemplos.

Como cirurgião geral, cedo percebi que, para ganhar experiência, ter competência e poder formar os mais novos, tinha de me dedicar a uma área mais restrita, e escolhi as doenças cirúrgicas do fígado, das vias biliares e do pâncreas.

O meu querido e saudoso mestre em cirurgia geral, Rui Câmara Pestana, nascido no primeiro quarto do século XX, falava-me dos tempos iniciais do seu exercício de cirurgião, quando realizou imensas cirurgias ortopédicas, urológicas e até neuro-cirúrgicas na urgência – coisa impensável, mesmo nos meus tempos iniciais de formação.

Cresci como cirurgião, exercendo cirurgia hospitalar em serviços de cirurgia que funcionavam como quintas isoladas, sem os apoios de outras especialidades, que hoje consideramos fundamentais, quer para confirmação de diagnósticos quer para a definição de estratégias globais de tratamento naquilo que chamamos reuniões multidisciplinares de decisão.

Como posso eu hoje tratar com competência doenças graves e complexas do foro HBP sem o apoio de gastro/hepatologistas e radiologistas dedicados a essa área, quer para diagnóstico quer para intervir, os chamados gastro e radiologistas de intervenção? E se os casos forem simultaneamente oncológicos, como acontece na maioria deles, a participação de oncologistas dedicados é também fundamental.

Funcionar com abordagens multidisciplinares é hoje a realidade da moderna medicina hospitalar.

Para podermos tratar os nossos doentes com competência e dar-lhes as maiores probabilidades de vencerem as doenças temos obrigação de ter as condições infra-estruturais, técnicas e humanas reunidas. No caso da cirurgia, temos de ter cirurgiões preparados, com acesso a casuísticas que permitam manter competências e formar os mais novos.

E num país pequeno como o nosso, mas com óptimas vias de comunicação, temos obrigação de os enviar para os locais onde sabemos que estão reunidas todas as condições.

No que diz respeito ao SNS, há que organizá-lo para tratamento de doenças raras ou graves e complexas em verdadeiros Centros de Referência, tal como aliás foi previsto pelo legislador em 2014.

Com bom senso, mas com todo o empenhamento e rigor, temos de dar a muitos dos nossos doentes a melhor probabilidade de poderem vencer certas doenças.

Mas mais uma vez aqui, não fazer distinção entre o público e o privado: todos devem aceitar e cumprir as mesmas regras, todos devem respeitar da mesma maneira os doentes que os procurem.

Como dizia, Francis Moore, grande cirurgião americano, ainda no século passado, “todos são contra a especialização, excepto os doentes”.

Cirurgião

Escreve com a antiga ortografia

D.N.
Eduardo Barroso
08 Abril 2023 — 07:00


Web-designer e Criador
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