348: Pensamento empresarial, conhecimento e a independência das universidades

 

🇵🇹 OPINIÃO

Muitas das principais decisões governativas passam ao largo das preocupações (ou das ocupações) da maioria dos portugueses. Alienados pela tentacular indústria do futebol e pelas perigosas e estupidificantes redes sociais, no nosso país as decisões de hoje, e que farão o dia seguinte, não são verdadeiramente discutidas. A democracia perde sentido quando as pessoas ignoram o que os seus governantes decidem.

Vêm estas palavras a propósito do que se prepara depois de o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior ter possibilitado a passagem das universidades a fundações públicas.

O Governo não hesita, agora, em mercantilizar o Ensino Superior à luz dos contratos-programa de desenvolvimento. Através dos fundos regionais e das Comissões de Coordenação e de Desenvolvimento Regional (CCDR), as instituições privadas passam a pagar universidades e politécnicos.

Ao contrário do que o Governo propagandeia, esta medida não irá fortalecer “o papel das Instituições de Ensino Superior” no desenvolvimento das regiões onde se encontram, mas transformar as Universidades em meras instituições serventuárias dos poderes empresariais que venham a estabelecer-se nesta ou naquela região.

O Estado retira-se da sua função investidora e protectora, demite-se de financiar as universidades: pagará 1/3 do valor dos contratos-programa, deixando para instituições privadas os outros dois terços.

É grave tudo isto porque o que daqui se infere é que não haverá, a breve trecho, qualquer independência de universidades e politécnicos relativamente à produção de conhecimento. Os interesses privados irão ditar o fim de certos cursos considerados dispensáveis – as Humanidades e as Artes, obviamente.

Num quadro de formação de jovens que serão meros assalariados ao serviço das empresas privadas, que Ensino Superior será este, fiel a um só fim: o suposto lucro que certos cursos irão garantir? Que resposta deram o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos? Uma resposta tíbia, sem verdadeira indignação e sem denunciar o que essa decisão significa em termos de corrupção dum ideal de conhecimento e de Ensino verdadeiramente Superior.

Com efeito, o Governo, adepto do provinciano pensamento gestor, fascinado com as “últimas novidades” da digitalização e das tecnologias, no afã de estar sempre “up to date”, esquece-se, e em particular a Tutela, que não existe universidade digna desse nome quando ao conhecimento universal prefere o saber imediato.

O que é grave nisto tudo é o que não me tenho cansado de denunciar: a instauração definitiva de um modo de pensar e de agir que despreza as Humanidades e as Artes, nomeadamente a Literatura, a Filosofia, a História e a Música. Estas são as áreas do conhecimento em que as empresas privadas dificilmente irão apostar.

As Artes e as Letras estão do lado da inquietação, da sensibilidade e da erudição, do questionamento e da dúvida, isto é, de tudo o que é contrário à lógica instrumental, literal e maquinal das reformas educativas que cortam a direito em tudo o que exija tempo, ponderação, espera. E nesta época embrutecida, quem poderia esperar 20 anos para ver os resultados duma educação independente e culta?

Em Portugal governa-se para o já. O amanhã não existe. Os que viverão aqui em 2043 não contam. Mas daqui, de 2023, olhando para 2003, vemos bem o emburrecimento a que chegámos depois de 20 anos de políticas educativas erradas.

Sem as Humanidades, sem pensamento, sem independência, sem sensibilidade, que futuro? Quando o Deus-dinheiro tudo manda, o que é a Universidade?

Sugestão de Leitura:

Livro a necessitar de reedição urgente, estes ensaios de António Ramos Rosa vieram a lume em 1962 na prestigiosa colecção da Livraria Moraes Editora O Tempo e o Modo, onde igualmente se tinham publicado ensaios de Jorge de Sena e de Manuel Antunes.

Com textos escritos entre 1959 e 62, inicialmente publicados em suplementos literários e revistas da especialidade, o que é importante neste livro em 2023? Para além do que nos ensina quanto à poesia de autores como Casais Monteiro, Jorge de Sena, Alexandre O”Neill, Pedro Tamen, Herberto Helder e José Gomes Ferreira, Ramos Rosa tem nos ensaios A Poesia e o Humano, Poesia e Espontaneidade Criadora, O Poeta e o Homem Autêntico e Humano e ainda O Poema, sua génese e significação peças de enorme actualidade já pela denúncia dos totalitarismos e paternalismos que ameaçam a liberdade livre de que falou Rimbaud, já porque, analisando poesia, o poeta-crítico, mostra como contra a alienação a palavra imaginante é arma poderosa.

Professor, poeta e crítico literário.

DN
António Carlos Cortez
23 Agosto 2023 — 00:01


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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312: A juventude, as jornadas mundiais: espiritualidade ou espectáculo?

 

🇵🇹 OPINIÃO

– “… Num país de salários indignos, que oração pode melhorar a vida de quem mora e paga contas em Portugal?

Foi do agrado do poder político que se realizasse a Jornada Mundial da Juventude em Portugal, repartida, esta conglomeração da Igreja Católica, por dois locais simbólicos: Lisboa e Fátima.

Nada tenho contra esta manifestação religiosa, sobretudo quando tal reunião é dirigida aos jovens. Nada tenho contra o organigrama deste certame, com diferentes modalidades de inscrição, diferentes pacotes consoante a permanência dos peregrinos em Lisboa e as possibilidades financeiras de cada grupo. Nada tenho contra o kit do peregrino.

Agrada-me até a ideia – pragmática, comercial, económica, utilitária – de haver preços em conformidade com os dias (e as noites) de permanência; preços que vão dos 255 (o Pacote A1+8 Agosto – inclui alimentação, transporte, desde a noite de 31 de Julho à manhã de 8 de Agosto, com pequeno-almoço incluído) aos 100 euros.

Porque é impossível não escapar ao lado mercantil que tudo isto encerra (os olhos de Carlos Moedas brilham de felicidade ao falar dos ganhos para a capital e o país) pergunto-me sobre a questão da espiritualidade nesta 3.ª fase da nossa Modernidade.

Deus, desde a Querela dos Antigos e Modernos, desde a Revolução Francesa e da Revolução Industrial, onde habita, onde está? Da I Guerra Mundial a Auschwitz, de Hiroxima à Cibernética e à Inteligência Artificial, onde está o Espírito?

Para além do niilismo triunfante e dos seus rostos polimórficos (consumismo, alienação, tédio), na sociedade dos espectáculos, nem mesmo a mais nefanda ou legítima Razão Instrumental garante o sentido.

Tudo é hoje decidido no mercado mundial das sensações e, atolados na Net, no Digital, mesmo os defensores da urgência do Espírito sabem que só resta este Nada vestido de cores berrantes e ululando a alegria de se estar vivo.

É um grande Nada que, em bom rigor, sacrifica a meditação em nome da eficácia publicitária. Assim se diz que a Eclésia existe.

Nesta Jornada haverá tempo, lugar e vontade para reflectir sobre o mundo em que os jovens vivem? Para além das palavras da praxe de Francisco, ter-se-á vontade de discutir o porquê da Igreja no quadro mais vasto e complexo da secularização de tudo? Que Igreja é esta depois do Iluminismo e do Kantismo? Como viver Cristo depois do primado do “pensar por si mesmo”?

Se hoje as questões mais básicas da Razão Crítica e da Razão Prática (“Que posso eu saber?”, “Que posso eu esperar?” “Que devo eu fazer?”) não se colocam – como viver Deus? Haverá forma de, cá para fora, dar-se a ideia (ao menos a ideia!) de que há uma juventude que responde à dessacralização interrogando-se sobre para onde vai a Humanidade? No fundo, perguntar-se-ão: “Deus e o Espírito estarão hoje onde?”

É que na cultura secular, laica, televisiva, digital; nas democracias cada vez mais entregues à mera dialéctica do débito-crédito das trocas (tudo e todos nas operações de venda e de aquisição), esta Jornada da Juventude deveria agitar as consciências. Mais que propaganda de uma instituição em crise, a estes jovens caberia o papel de pensar a Igreja na sua humanidade e agitar as consciências.

Os cerca de 1,5 milhões de peregrinos que terão oportunidade de viver a sua fé nos três palcos construídos para o efeito, estarão eles conscientes de que, para quem vê de fora, tudo isto nada mais é que um grande negócio? Num país de salários indignos, que oração pode melhorar a vida de quem mora e paga contas em Portugal?

É simbólico, e por isso extremamente significativo, que o palco a Oriente venha a suster 2 mil pessoas ao mesmo tempo (mil bispos, 300 concelebrantes, 200 membros de coro, 90 músicos de orquestra, 30 tradutores, restante pessoal técnico), numa espécie de festa das massas que rezam…

Onde fica o Espírito? Onde a humilitas e a gravitas que o Papa Francisco valoriza?

No mundo-festival em que sobrevivemos, na Europa em guerra, dispensam-se as lágrimas de contrição. E dispensa-se bem aquela atmosfera de fraternidade toda abraços e beijos, padres-nossos e êxtases desejando-se “feliz dia!” ao irmão ou à irmã, em jeito de selo católico.

Bom seria que a Igreja pudesse inspirar, de facto, no combate à pobreza, que exigisse o perdão total da dívida do 3.º Mundo. Bom seria que a Igreja não se calasse em face da corrupção desenfreada, da fome. Erradicasse a pedofilia, condenasse sem pejo o racismo, a violência sobre as mulheres e os velhos.

Condenasse, alto-e-bom-som, os ricos cada vez mais ricos… Seria outro mundo… Saberão estes jovens porque Deus está longe de África? Há muitos milhões que não podem desejar “feliz dia!” porque há muito que não têm dias felizes. Jovens: onde está uma educação para o Espírito?

Sugestão de livro: Homo Deus (tradução de Bruno Vieira Amaral)
Autor: Yuval Harari
Editora: Elsinore, 2015.

Sinopse: Nestes dias de JMJ, eis um livro que o leitor poderá, numa qualquer livraria, adquirir com facilidade.

Publicado em 2015, o autor colocava, nesse tempo pré-pandemia e pré-guerra da Ucrânia, como horizonte possível e próximo da Humanidade quer a erradicação da pobreza, quer o fim da guerra. O ideal deste nosso século reside na tentativa de vencer a morte. Erradicar a mortalidade, eis o fito.

Pois bem, Harari é hoje um dos mais destacados críticos da IA, tem avisado sobre os malefícios do digital e desta “cegueira tecnológica” que a tudo imprime a lógica do frenesim, do superficial e do lucro fácil.

Homo Deus é, para fiéis e não fiéis, um livro essencial até para se poder negar uma das mais evidentes teses deste historiador, professor na Universidade de Jerusalém: o Homem é o criador único.

Professor, poeta e crítico literário.

DN
António Carlos Cortez
04 Agosto 2023 — 00:17


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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Appetite for destruction: a “geração mais bem preparada de sempre” (2.ª parte)

 

– É triste constatar que um “Professor, poeta e crítico literário.” escreva em “brasuquês”, renegando a Língua de Camões… Está na moda!

🇵🇹 OPINIÃO

Jovens à porta do Chiado

“Vêem-se ao telemóvel como ao espelho nos nomes e nos números buscando o lodo morno dum profundo poço.”

Gastão Cruz, Escarpas,

Assírio & Alvim, Lisboa, p. 39

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de Junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos.

Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos “nativos digitais” quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital?

Todos vemos que nada lêem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está “à distância de um clique”, tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o “como” e o “para quê” das aprendizagens é questionado pelos estudantes.

Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas excepções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que “esta é a geração mais bem preparada de sempre”.

Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. “Débito e crédito”, eis a novilíngua.

O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a óptica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor.

Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca lêem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como “método” de compreensão de um texto literário.

Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que “a geração mais bem preparada de sempre” à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada.

Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multi-mediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica.

Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado.

Tudo – das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos – obedece à lógica do “não há tempo a perder, porque não há tempo”. A geração “mais bem preparada de sempre” nunca será filha de Voltaire: “Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo.”

Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão “cantando e rindo”, olhando-se nos telemóveis como num espelho. No “profundo poço” de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o “não”, porque tudo foi “sim” nas suas vidas.

Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes “nativos digitais” é sinónimo de individualismo — o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da porno-grafia.

A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade — onde todos são educados para serem “todos iguais” e geniais — o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

Livro: Escarpas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

Autor: Gastão Cruz

Sinopse:

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017).

A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo.

Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala.

Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, actualizadíssimo, sintetizou em versos impressionantes: “A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido.” Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

Professor, poeta e crítico literário.

D.N.
António Carlos Cortez
02 Julho 2023 — 00:18



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156: Appetite for destruction: os filhos da pandemia (parte 1)

 

🇵🇹 OPINIÃO

Trata-se de universalizar uma mensagem e de constatar que, em face da globalização, da revolução digital (ou melhor: da imposição digital), o retrato que aqui se fará é talvez injusto, catastrofista, pessimista ou, quando não – dirão alguns -, feito por alguém que deixou de ter esperança no futuro. Mas não deixámos de ter esperança no futuro.

Se falo aqui do “apetite pela destruição” é porque, ao contrário das promessas de uma “escola para a felicidade” (expressão ingénua, infantil e doutrinária), todos nós vemos o óbvio: os “nativos digitais” vivem entre o fascínio pelos influencers (o mau gosto, a superficialidade, a estupidez como virtudes) e a alienação, a boçalidade e a ignorância que tudo formatam.

Perante as malhas dum império digital brutalizante, é natural que os estudantes não encontrem um verdadeiro sentido para as razões que os deveriam levar a ler bem, a escrever melhor e a pensar criticamente.

Perante estes factos, a Escola o que faz? Segue a moda, obedece aos ditames do ME: digitalizar, padronizar, formatar, descerebrar os estudantes (é ver os manuais escolares, é ver as imposições do Projecto Maia).

O apetite pela destruição? Causa e consequência. As crianças na escola portuguesa estão a ser roubadas da sua imaginação. Sem curiosidade em relação ao mundo que as rodeia, cedo se transformam em adictos digitais, afundados nos ecrãs.

Se na primeira infância a criança era ainda ingénua, espantando-se com o mundo, a verdade é que, por volta dos 10, 11 anos, à criança que lia, que desenhava, que se deixava espantar, sucede, por causa dos telemóveis e outros aparelhos, o adolescente seco de espírito e de ânimo.

Sempre nervoso, ou adormecido, avesso à curiosidade intelectual, o adolescente e futuro universitário, salvo excepções, é inimigo de tudo quanto seja exigência, descoberta e esforço.

A Escola onde todos transitam sem nada saberem, onde se nivela por baixo, onde o quotidiano é uma amálgama de burocracia e projectos falhos de real valor – a Escola é cúmplice no crime que estamos a cometer contra crianças, adolescentes e jovens adultos.

Os pais, compreenderão eles que são os seus filhos, sem imaginação e cultura, carne para canhão do mercado de trabalho onde empresas estrangeiras pagarão pobremente aos jovens licenciados? Hoje pede-se à Escola que tudo resolva: a violência, o saber estar, o saber ser.

Na camisa-de-forças em que muitos leccionam, quem haverá que se insurja e diga que a Escola não pode e não deve reproduzir modas, gostos e opiniões duma sociedade alienada e bestial?

Factos: quantos – pais e professores, educadores dos mais diversos graus de ensino – não se queixam, impotentes, da falta de conhecimentos básicos por parte dos adolescentes que frequentam o 3.º ciclo, o Secundário?

Quantos, no 1.º ano de Ensino Superior, não se questionam acerca do que aprendem os estudantes em 12 anos de escola? Como escrevem tão mal?

Como não têm qualquer interesse pelo saber? Em empresas, em sectores do Estado, grassa a impreparação de futuros advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, arquitectos. Que dizer dos políticos de agora? Apetite pela destruição, pois.

A aceleração da vida actual e os “desafios” (não há dificuldades no novo mundo das relações computacionais) que se colocam à nossa geração e aos vindouros, outra coisa não são senão a imposição global do “homo laborans” de que fala Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço.

A Covid-19, a dita transição digital visa substituir os antigos sectores primário, secundário e terciário, ainda com um pé nos ritmos e competências do século passado, por um novo tipo de relações de trabalho e de relações humanas guiadas, doravante, pela frieza maquinal do novo humano.

Ideais ditos progressistas não faltarão. É a construção do mundo-empresa, onde todo e qualquer um será apenas um número para os grupos económicos do digital, o que a Europa sem professores e sem cultura está a construir.

Espelho fiel desta mudança civilizacional? Inteligência Artificial, que Yuval Harari, em conferência inspiradora, analisou.

Mas, e sobretudo, as crianças e adolescentes, reféns do digital, oscilando entre a insensibilidade e a incuriosidade (é ver o seu olhar); entre a raiva e a inquietação (pressentem que não há futuro, estudem ou não, em Portugal). O único paliativo que os acalma é, claro, o digital.

A História nada lhes diz, a Literatura e as Artes, a Política e a Economia, as Ciências… tudo isso é o Passado. No indiferentismo actual só o Ego lhes importa, só o imediato que o Deus-dinheiro dá lhes interessa.

O professor culto? Detestam-no. Ele é o passado, a memória, a lentidão, a exigência. Preferem o professor cool, “digitaliza- do”, inovador, moderno, que faz das aulas, “conversas”.

Esse é o “profissional da educação”, exímio fazedor de folhas Excel, que não lê porque não tem tempo, já que está ao serviço “do rigor e da excelência”.

São, todos, filhos da pandemia: a nova Humanidade acéfala, maquinal, insensível. Filhos do Grande Nada, a última ideologia. Os novos bárbaros.

Livro: A Barbárie da Ignorância, ed. Fim-de-século, 1999.
Autor: George Steiner

Sinopse: Pessimista, mas realista, neste livro premonitório, Steiner interroga o sentido para que nos dirige a cultura da barbárie.

Que sentido pode emergir das ruínas do século XX? Hoje, em 2023, este livro é actual porque é já possível questionar que sentido pode emergir das ruínas destas primeiras décadas do século XXI.

As injustiças sociais prolongam-se, fruto da educação da incultura, delapidando as energias de uma Europa que, sem livros, sem memória e sem linguagem, pode já não saber o sentido de Sísifo na sua existência e pode, sem uma educação centrada no livro, ser esse continente onde a Morte é o único fim porque não há utopia, pois tudo é agora desconstrução, niilismo absoluto.

Professor, poeta e crítico literário

D.N.
António Carlos Cortez
08 Junho 2023 — 00:19


Web-designer, Investigador
e Criador de Conteúdos Digitais


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124: Resposta a Cavaco: Este país

 

🇵🇹 OPINIÃO

Para quem tenha nascido nos anos de 1970 (sensivelmente entre 1970 e 1980) e tenha, hoje, os seus 54, 50, 45, 40 anos, e seja pai, mãe, encarregado de educação, com casa para pagar ao banco, ou renda de casa a pagar ao senhorio, uma pergunta se impõe: para onde foram os três mil milhões de euros despejados na TAP?

Para quem, hoje, tenha chegado a meio da carreira tributária, a meio da carreira profissional (se a tiver), seja como professor, médico, polícia, oficial de contas, enfermeiro, agente cultural, profissional do sector terciário, pequeno e médio empresário, outra pergunta se impõe: por que houve dinheiro para os bancos e para quem trabalha congelamentos de ordenados e de progressão nas carreiras?

Para quem – desempregado de longa duração, dependente de subsídios do Estado, de redes de solidariedade social, outra pergunta se impõe: para onde foram os nossos sonhos? Para quem oiça Galamba e Cavaco uma pergunta se impõe: que país é este?

Portugal é, antes de mais, o país que, à beira de celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e não obstante as notícias de crescimento económico acima da média europeia previstas pelo BCE, conta ainda com dois milhões de pobres.

Portugal é o país onde, não obstante os inúmeros e óbvios sinais de progresso que Abril nos deu (SNS, sobretudo) há um ressentimento geral, uma vez que a sensação que todos temos é a de que, aqui, empobrecemos a trabalhar. É o país dos recibos-verdes (criação cavaquista), é o país onde, mesmo com contrato, os salários são manifestamente baixos face ao custo de vida.

País onde um Primeiro-Ministro do PSD convidou à emigração dos mais jovens em tempo de TROIKA.

País onde um outro Primeiro-Ministro, também do PSD, para ter um cargo chorudo na Europa, entregou o país a essa “má moeda” – escreveu Cavaco -, chamado Santana Lopes.

Portugal, que, com Salazar, era pouco mais que um país medieval com aviões a passar por cima, é o lugar onde, depois de uma ponte cair, um Primeiro-Ministro, agora do PS, dos mais bem preparados da nossa democracia, saiu do cargo porque Portugal não podia “cair num pântano político”.

Portugal é o país onde a classe política em exercício, criada no cavaquismo e no guterrismo, é quase toda filha das “jotas” partidárias: da JSD à JS, da Juventude Popular à Juventude Comunista, dos grupescos da IL aos arremedos de políticos que vêm do Chega.

Para os portugueses que não são filiados em partidos, a impressão que dá, ancorada em factos, é que, neste país, só quem tiver o cartão do PS ou do PSD, pode almejar a viver com alguma qualidade de vida.

Neste sentido, Portugal é ainda esse país de Rafael Bordalo Pinheiro onde todos – empresários, políticos, autarcas – mamam as tetas da “porca da política”.

Por estes e outros factos incontornáveis é que as palavras de Cavaco Silva são uma óbvia manipulação da verdade histórica, na medida em que Cavaco Silva, o político que mais tempo dirigiu o país depois de Salazar, é directamente responsável pela fragilização do Estado.

Defensor da livre iniciativa, fez, porém, entrar interesses privados em sectores estratégicos da economia, com impacto nas políticas de emprego que à minha geração foram oferecidas.

Dos salários baixos, em nome do perpétuo combate à inflação, à precariedade laboral, foi com Cavaco Silva que a minha “geração rasca” (disse um iluminado) cresceu nas escolas e nas universidades tendo o deus-dinheiro como valor absoluto.

Muitos dos políticos actuais são filhos da cábula, da praxe e da estupidez institucionalizada na educação alienante que (de)forma os jovens portugueses há décadas, incapazes de se projectarem num Portugal mais justo e digno, porque roubados na igualdade de oportunidades.

Quem é rico em Portugal, vive; quem é pobre ou da classe média, paga impostos e mata-se num quotidiano sem energia vital.

Assim, o cavaquismo consolidou, na democracia, a existência comezinha de se ser funcionário público com ordenado baixo, mas certinho.

O PS, assombrado por Cavaco, repetiu esse liberalismo à portuguesa, sem nunca combater as oligarquias instaladas. Com o cavaquismo regressaram os tiques de autoritarismo salazarista: quem se esqueceu da célebre carga policial na Ponte 25 de Abril? Quem não se lembra das cargas sobre os estudantes na 5 de Outubro?

País feito à imagem e semelhança do homem de Boliqueime, Portugal é hoje, como ontem, o país da protecção dos interesses de classe: país de serventuários dos partidos e das empresas e das famílias ricas. “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas”, disse Cavaco.

Para a minha geração, Portugal é um país onde é impossível viver. Saúde, habitação, educação: tudo caro, inacessível para os nossos rendimentos. Com a mais longa ditadura da Europa, Portugal é um país, hoje ainda, semi-analfabeto, inculto, pobre.

Vítimas, na verdade, da nossa cegueira, do nosso atavismo, aceitamos que a nossa democracia, esse regime que Cavaco deplora, seja hoje o regime da raiva e do ódio. Ora, o PS, bem como toda a Esquerda, têm de se unir contra o ódio e a raiva vindas de um político para quem Os Lusíadas tinham quatro cantos.

Montenegro, de resto, não diria coisa diferente – e que ideias de facto tem o líder do PSD para não trair a minha geração e os nossos filhos – os da classe média, os filhos dos pobres?

Professor, poeta e crítico literário

D.N.
António Carlos Cortez
26 Maio 2023 — 08:45


Web-designer, Investigador
e Criador de Conteúdos Digitais


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53: Galamba: que Socialismo?

 

“… Em 2023, Portugal está longe de continuar a poder ser fiel 1974 prometeu. Abril deu-nos imenso: mas Abril aburguesou-se, descaracterizou-se, partidarizou-se. Os ideais de Abril corromperam-se em nome do deus-dinheiro, única lição que o cavaquismo soube dar à minha geração.”

🇵🇹 OPINIÃO

“Isto anda tudo ligado”
Eduardo Guerra Carneiro

O estado a que o Governo do Partido Socialista chegou é, diga-se sem rodeios, preocupante. Até certo ponto chocante e, por último, revelador. O PS obteve maioria absoluta e, há dias, celebrou os 50 anos da sua existência.

Fundado por Mário Soares a 19 de Abril de 1973, e cuja origem tem na A.S.P um dos momentos-chave da sua história e tem em Antero de Quental, José Fontana e Azedo Gneco três presenças inspiradoras do século XIX, quem sabe desse passado em que ideal e competência eram traves-mestras da acção política no contexto pré-Iª República.

Grandes figuras do movimento socialista antes de 1973, do Núcleo de Doutrinação e Acção Socialista (1942-44), à já referida A.S.P, que Mário Soares, Manuel Tito de Morais e Francisco Ramos da Costa criaram em Genebra em 1964, deviam inspirar este PS. Tecnocratas nunca foram políticos com visão estratégica e raramente têm consciência histórica.

Mas António Costa rodeou-se de fiéis ao Chefe — tecnocratas, mas muitos nada conhecem do país real, são só gente de gabinete.

O Partido Socialista tem uma história indissociável da luta pela liberdade e a democracia em Portugal. Só o PCP, por onde passaram intelectuais e resistentes de enorme envergadura, pode orgulhar-se do mesmo património, pese embora, hoje, a ortodoxia cegar de anacronismo um partido fundamental para o nosso país.

E no entanto, julgo que aliança de esquerda jamais deveria ter sido desfeita, pois a reboque do chumbo do OE de 2021 foi o socialismo que se descaracterizou por completo.

É pena que este Governo, em quem muitos depositaram grandes esperanças, seja o espelho dessa descaracterização. Não obstante os indicadores económicos serem (diz-se) positivos, os portugueses não o sentem. O PM insiste em erros de casting.

Da educação ancorada num ideal digital-tecnocrata estupidificante, à Justiça, morosa, com dois pesos e duas medidas; da corrupção na TAP, ao nepotismo óbvio em empresas e sectores estatais, há sintomas de doença sistémica na democracia portuguesa.

Que diria Soares se estivesse vivo? A crise na habitação, os baixos salários, a carga altíssima de impostos, muito do PS de Salgado Zenha, de António Arnaut, de António Macedo e de Jorge Sampaio e de Maria Barroso – o socialismo de rosto humano — parece ter desaparecido.

Governa-se ao serviço da privatização e dos grupos económicos que têm milhões de lucros ao passo que quem trabalha, empobrece.

O caso de João Galamba é, neste contexto, o ponto culminante da ideologia oca que, de há duas décadas, faz de Portugal um país de fogos-fátuos.

Do Euro-2004 às Jornadas Mundiais da Juventude, do World Web Summit aos eventos “para inglês ver”, o erro do PS e do PSD está em olharem apenas para dentro das suas máquinas.

Nós, portugueses, não vislumbramos praticamente ninguém que tenha prestado um serviço público digno desse nome, independentemente do partido A ou B ou C. Da história do computador roubado, à intervenção do SIS e da PJ; das agressões entre o Ministro Galamba e o seu ex-assessor, a pessoas do gabinete de Galamba barricadas num WC do MI; das perguntas e respostas combinadas entre deputados do PS e a CEO da TAP, às mensagens trocadas entre Galamba e o seu adjunto (um treinador de andebol do Benfica…), tudo confirma a falência da nobreza de espírito das classes dirigentes do país.

O sonho de uma vida melhor que Abril nos deu, onde está? Em 2023, Portugal está longe de continuar a poder ser fiel 1974 prometeu.

Abril deu-nos imenso: mas Abril aburguesou-se, descaracterizou-se, partidarizou-se. Os ideais de Abril corromperam-se em nome do deus-dinheiro, única lição que o cavaquismo soube dar à minha geração.

Se não há comparação entre o país medieval e obscurantista do Estado Novo com o país de 2023, a verdade é que constatamos o óbvio: para se ser alguém em Portugal é preciso ser-se visconde ou barão.

Há teses imutáveis. Jovens da JS que, por sê-lo, chegam a presidências de juntas de freguesia; ou por serem filhos, sobrinhos, familiares, amigos, deste ou daqueles “altos quadros” do PS ou do PSD são postos em chefias de organismos, entidades, pelouros, ou convidados para assessores. Toda esta gente é exímia no carreirismo político.

O que estudaram? Como estudaram? O que leram? Que trabalhos na vida tiveram? Também aqui o PSD ilude-se e ilude-nos ao dizer-se preparado para governar. Que social-democracia é, de facto, a do PSD? No afã de estar up to date, todos se esquecem que a História pesa. A Educação conta.

Olhando para os nossos políticos, pergunto-me se não são já o reflexo óbvio da degenerescência do ensino em Portugal: ignorantes, mas saídos com mestrados e doutoramentos das faculdades.

Ministros, parlamentares (o Chega é a caricatura animalesca desta realidade) que, servindo-se da democracia, servem-se a si e aos seus apetites.

Muitos dos nossos deputados, nascidos já depois de Abril de 74, venderem a alma ao diabo no carreirismo partidário. Vivem à sombra da árvore das patacas que são os partidos. Por isso João Galamba tem de se demitir.

Ele é o espelho da falência moral de uma massa de “políticos” que o PS, da pior forma, doutrinou e industriou. Francisco Salgado Zenha, Jorge Sampaio, António José Seguro… Quem é independente, culto e corajoso tem, hoje, lugar neste PS?

Livro: A Nobreza de Espírito

Autor: Rob Riemen Editora: Bizâncio

Sinopse: É breve a sinopse de hoje e a razão é simples: neste livro o filósofo holandês, autor de O Eterno Retorno do Fascismo (Bizâncio, 2012), apela a que a Europa, e em especial os seus governantes e intelectuais resgatem da ideologia oca neoliberal, a que impera desde Reagan e Tatcher em todo o mundo, o valor e a verdade de certas palavras e expressões. “Nobreza de Espírito” é uma dessas expressões.

Clássica, com raízes na filosofia grega, na ética dum Cícero, na moral iluminista, hoje a nobreza de espírito é o que de novo se pede na política.

A crença de que está tudo bem se a economia estiver bem é a mentira que Rob Riemen neste livro desmonta. É o espírito e a sua nobreza que de novo devemos (urgentemente) cultivar.

Professor, poeta e crítico literário

D.N.
António Carlos Cortez
02 Maio 2023 — 00:19


Web-designer e Criador
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