O gestor Zeinal Bava, que já foi alguém neste país, em parte ainda o é, pois não passa uma semana sem que tenhamos notícias dele, todas promotoras de sentimentos de inveja e vindicta, os quais, além de péssimos e pouco cristãos, não levam a lado nenhum.
A sua família (de muçulmanos sunitas, idos da Índia para Moçambique, em 1890), sempre se pautou e norteou por valores, uns imobiliários, outros mais mobiliários: os Bava dedicavam-se à compra e venda de casas e terrenos em Lourenço Marques, onde o pequenito Zeinal Abedin Mohamed viu a luz aos 18 de Novembro de 1965; dez anos depois, quando vieram para Portugal, após a descolonização, o pai abriria uma fábrica de móveis, a qual, posto que pequena e modesta, permitiu custear os estudos do seu rebento – e a pedido deste – no Saint Julian”s, em Carcavelos, no Concord College, em Inglaterra, para onde Zeinal foi aos 14 anos, e no University College London, onde se formaria em Engenharia Electrónica e Electrotécnica, após ter deixado de lado o sonho da Medicina, opção que teria nos poupado a todos, a Portugal e a ele, muita despesa e incómodo.
No culminar da sua carreira académica, Zeinal Bava tornou-se, em 21 de Outubro de 2014, o mais jovem doutor honoris causa pela Universidade da Beira Interior, a UBI.
Na cerimónia de atribuição da prebenda, ainda hoje disponível no YouTube, vemos um homem adulto, já grisalho, ao lado de um copo vazio e de uma garrafa de plástico, a apadrinhar o candidato e a proferir, em discurso escrito, a palavra “desenvolvimento” duas vezes na mesma frase, falando ainda em “serviços inovadores disruptivos” e afirmando que, a dado passo da sua existência, Zeinal “agulhou depois para a banca de investimento”.
Mais disse o professor Tribolet, pois é dele que falamos, que “nunca conheci um gestor como Zeinal Bava”, “parece que usa pilhas Duracel, nunca pára!”, e, para sustentar o afirmado, citou, um a um, os quinze pontos da filosofia de Bava (ou “tipologia de gestão de Zeinal Bava”), constantes de uma coisa chamada “Portal da Liderança – Comunidade de Líderes”. A saber:
1 – Comunicar Eficazmente
2 – Focar nos Resultados
3 – Apostar na Equipa
4 – Motivar, Dar Feed-Back e Comunicar Expectativas
5 – Ser Transparente e Indutor de Confiança
6 – Procurar o Crescimento
7 – Investir no Futuro e Apostar na Inovação
8 – Estudar, Planear e Executar
9 – Correr Riscos e Assumir Erros
10 – Conhecer e Estar Próximo do Cliente
11 – Ter uma Visão Clara e Manter o Foco
12 – Fazer pela Sorte, Trabalhando Arduamente
13 – Nunca Parar de Aprender
14 – Valorizar e Cuidar do Físico
15 – Equilibrar a Vida Profissional com a Vida Familiar
Como este é um texto de Verão, para ler na praia ou num pinhal, pode o leitor utilizar estas máximas de Bava como um passatempo estival, igual ao Sudoku ou às palavras cruzadas, e pôr-se a escolher qual a sua platitude favorita (gosto muito, pessoalmente, da n.º 5, Ser Transparente e Indutor de Confiança); pode também fazer um combo dos pensamentos bavistas, agregando o nº. 14 com o nº. 11, ou vice-versa, e juntar mais dois ou três; ou tentar ver quais daquelas máximas, de vida e de management, se poderiam aplicar a outras grandes personagens históricas, como Tamerlão ou Al Capone.
Um derradeiro mas muito compensador exercício será comparar aqueles 15 princípios com o que hoje é sabido do BES e de Bava (se quisermos, de Ali-Ba-Bava e dos 40 Ladrões), cotejando o Zeinal na teoria e na prática – e concluindo, sem esforço, que a langue de bois da “filosofia de liderança e gestão” (e, já agora, do “empreendedorismo”) não passa de uma vulgar aldrabice, mas de uma aldrabice poderosa, presente no mundo inteiro, estudada como ciência, seguida até como fé, que também o é.
A cerimónia doutoral covilhanense seria a última aparição pública de Zeinal Bava antes da sua ida ao parlamento, em Março de 2015, na qual seria depenado e depois estraçalhado por Mariana Mortágua. Nem os ossinhos sobraram.
O país rejubilou, talvez por ter pressentido, e com razão, que aquela seria a sua única oportunidade para ajustar contas com quem não soube fazê-las, pese ter sido premiado, em três anos consecutivos, como o melhor CFO europeu na área das telecomunicações (2003, 2004 e 2005), como o melhor CEO na área de Investor Relations (2009, 2011 e 2013), como o melhor CEO europeu no sector das comunicações e o melhor em Portugal (em 2010 e 2012, em 2011 foi o segundo melhor CEO europeu, mas, claro, o melhor em Portugal).
Perguntado pelo montante do encalacranço da PT no BES (em Maio de 2014, 98,32% dos investimentos da PT, no valor de 897 milhões de euros, concentraram-se numa só entidade, a Rioforte), o “Messi das telecomunicações”, como era conhecido, ensarilhou-se na bola, ainda ensaiou a espargata, foi acometido de singular amnésia, e acabou às voltas com um tableaux de bord, talvez recordando os Malhoa que tem em casa, um duplex simpático às Janelas Verdes, com assombrosa vista de rio, de que hoje pouco desfruta.
Depois foi a vez da Justiça, a palavrosa e fútil Justiça. Zeinal Bava foi acusado de crimes muito catitas (fraude fiscal qualificada, corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos), mas, em 9 de Abril de 2021, o juiz Ivo Rosa, o Messi das decisões revogadas, entendeu nem sequer pronunciá-lo, ilibando-o de todos os cinco delitos por que vinha acusado.
Rosa determinou, do mesmo passo, que Zeinal devolvesse 6,7 milhões de euros do chamado “saco azul do GES”, no prazo de 10 dias, mas as habituais trapalhadas entre os tribunais portugueses e suíços fizeram com que aquela quantia só fosse entregue um ano e oito meses depois, em Fevereiro de 2023.
Logo a seguir, em Maio deste ano, a notícia de que foi condenado pela CMVM do Brasil em duas pesadas multas, no valor de 31 milhões de euros, e na inibição de gerir empresas brasileiras cotadas em bolsa, durante dez anos.
Uma notícia do Expresso, de 26/6/2019, dava conta de que Zeinal Bava, então com apenas 53 anos, se encontrava “tecnicamente desempregado”, não se lhe conhecendo qualquer trabalho e existindo alguns vagos indícios de que daria consultoria a fundos e a projectos na Austrália.
“Vive na sombra”, dizia a mesma notícia, informando que, além do processo-crime, Bava enfrenta mais quatro processos.
Mas diz também a notícia de que, por causa dos prémios recebidos da PT e de outras coisas, era um homem rico, muito rico. Provavelmente, ainda o é, mesmo que para isso tenha manchado e desonrado o seu apelido – e o dos seus três filhos – até ao fim dos seus dias.
De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? – pergunta o Evangelho de Marcos, 8:36. Que responda Zeinal Bava, ou a sua consciência – se a tiver.
*Prova de vida (7) faz parte de uma série de perfis de verão.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
A não esquecer: “10 de Junho de 2014: Zeinal Bava é condecorado, pelas mãos do Presidente da República, Cavaco Silva, com a Classe do Mérito Comercial (Grã-Cruz), que se destina a distinguir “quem haja prestado, como empresário ou trabalhador, serviços relevantes no fomento ou na valorização do comércio, do turismo ou dos serviços”.”
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
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Ninguém nasce Tonicha. Ou, como já dizia Beauvoir na abertura d”O Segundo Sexo: “on ne naît pas Tonichá: on le devient“. Na verdade, até a própria da Tonicha teve de fazer-se Tonicha, construir-se a si própria, com garra e luta, apesar de, e ao contrário do que muitos julgam, Tonicha não ser um nome artístico ou abreviatura de Antónia, seu primeiro nome, antes o apelido com que viu a luz em Beja, aos 8 de Março de 1946: Antónia de Jesus Montes Tonicha. Aliás, Tonicha poderia ser Tonicher, nome também usado na família e apelido de um dos seus irmãos (será isso que explica aquele loiro e ar germânico?).
Antónia de Jesus Tonicha foi a terceira de quatro irmãos e teve, segundo a própria, uma infância “muito feliz”. A mãe era de Serpa, o pai de Baleizão, ambos trabalhadores rurais. “Pertenço com orgulho a essa camada”, como fez questão de notar à Crónica Feminina, no calor da revolução. A revista, seguindo o ar do tempo, acrescentou que ela punha “na voz, na expressão e no sentir o grito desse povo alentejano.
Ela também “emigrante” dentro do seu país, lutando por uma melhoria de vida, que o seu meio ambiente lhe negava” (Crónica Feminina, de 4/12/1975). Se pensarmos que também Cândida Branca Flor e Linda de Suza eram do distrito de Beja, ambas nascidas em Beringel – e pela mesma altura, meados/finais dos anos 40 -, não deixaremos de perguntar que haverá por aquelas bandas para fomentar tantas e tão excelsas vozes. Tonicha responde, dizendo que, enquanto no Alto Alentejo predominam os grupos corais, o Baixo é a terra das vozes solitárias, logo mais apuradas.
Teve, desde cedo, a mania das cantorias, o “bichinho das cantigas”, primeiro na escola, e depois, já mais crescida e espigada, nas festas da “Capricho”, a Sociedade Filarmónica Capricho Bejense, fundada em 1916 e que continua sita ao nº. 10 da Rua da Moeda. Por influência da sua mãe, que tinha uma paixão por Amália, tomou-a por ídolo para sempre e, por volta dos 16 anos, foi viver para o Barreiro, onde um tio-avô era chefe da estação dos caminhos-de-ferro.
A prima, Elizete Tonicher, e o primo, Francisco Naia (Francisco Naia Tonicher), eram cantores, e na família do pai havia muitos amadores de música, pelo que ninguém se opôs a que ela seguisse a carreira nos palcos, ao contrário do que sucederia com outras estrelas candentes, como Marco Paulo, que em jovem chegou a apanhar um valente tabefe do pai por estar a ouvir na sala de jantar, não por acaso, um disco da popular Tonicha.
Mentindo na idade (“Eles fingiam que acreditavam e de vez em quando chamavam-me e perguntavam se já tinha o bilhete de identidade. Dizia que ainda não, que ainda lá estava esquecido na casa dos meus pais, no Alentejo.” – Correio da Manhã, de 16/1/2005), Antónia de Jesus, com apenas 16 anos, e levando consigo Manhã de Carnaval e Velas ao Luar, apresentou-se a concurso da Emissora Nacional, onde ficou aprovada. Acabaria por ingressar nos quadros da Emissora dois anos depois e, meses volvidos, entraria para a RTP.
Entretanto, fora aprendendo com os maestros Armando Tavares Belo (que foi maestro titular da Orquestra Ligeira da Emissora durante 36 anos, até 1982), Fernando de Carvalho e António Melo, entre outros, e recebeu lições de canto de Corina Freire, uma garganta famosa, que chegou a contracenar com Maurice Chevalier e que foi também mestra de António Calvário, seu parente.
Em 1965, Tonicha gravou o seu primeiro disco, Canções de Natal, em conjunto com Saudade dos Santos, Gina Maria e Paulo Jorge, e, no ano anterior, fez a primeira gravação a solo, num EP da RCA, Luar Para esta Noite.
Com Boca de Amora, de José Gouveia, ganhou, em 1966, o primeiro prémio no Festival da Canção da Figueira da Foz, que voltaria a conquistar no ano seguinte, com A Tua Canção Avozinha, que lhe granjeou também o Prémio de Interpretação (“Avozinha serás sempre/Fada dos sonhos meus”).
Entretanto, participou no filme Sarilhos de Fraldas, do prolífico realizador Constantino Esteves, que Bénard da Costa definiu, não sem maldade, como “o herdeiro persistente do pior cinema português dos anos 40 e 50”.
No seu Dicionário do Cinema Português, Jorge Leitão Ramos não é nada meigo para a película, que apelida de “um dos exemplos do nacional-cançonetismo no cinema português dos anos 60” e que desfaz assim: “totalmente inábil do ponto de vista técnico, idiota quando ao entrecho, pessimamente interpretado, com diálogos de absoluta inanidade, este é um filme da vertente mais degradada e degradante da história do cinema português.”
Não seria essa a opinião dos espectadores, que tornaram esta fita, estreada no Odeon a 21 de Setembro de 1966, um grande sucesso de bilheteira, premiada pelos leitores da revista Plateia com os galardões de melhor filme, melhor actor e melhor actriz (cf. Fernando Madaíl, “O filme que começava com um piquenique”, DN, de 16/6/2007). Com argumento de César de Oliveira, o elenco de Sarilhos de Fraldas era composto por António Silva, na sua última aparição no cinema (no papel de Sr. Castelo), Madalena Iglésias, António Calvário, Nicolau Breyner, Mário Pereira, Manuela Maria, Josefina Silva, Paula Ribas, Cremilda Gil e Tonicha, claro.
O enredo, algo complexo, mete António, um cantor de revista que namora com a filha do seu empresário, Lurdes, encarnada por Tonicha. Lurdes, porém, é uma megera e António acaba por se apaixonar por Madalena, sua colega nos palcos. Às tantas, António e Madalena encontram um bebé perdido num automóvel e levam-no de boa-fé, mas acabam perseguidos pela Judiciária, que os intercepta em Leiria.
No final, tudo acaba bem, ou mal, nas raias do péssimo, sendo sintomático que esta meteórica passagem de Tonicha pela 7ª. Arte não seja muito assinalada nas suas biografias (“uma experiência interessante, mas para esquecer”, diria ela ao programa Um Dia Com…, da RTP, em Março de 1971).
Em 1967, um annus mirabilis da sua carreira, Tonicha ganharia, além do já citado Festival da Canção da Figueira, o Prémio de Interpretação do Festival de Ourense, o Microfone de Ouro do Rádio Clube Português, o Prémio de Imprensa, o Prémio “Voz do Ano”, de Moçambique, e seria ainda eleita “Mulher do Ano” pelo Clube das Donas de Casa.
Depois, um cortejo de êxitos e um sem-fim de prémios: 2.º lugar no Festival RTP da Canção, em 1968; 1.º lugar no mesmo, em 1971; 9.º lugar no Festival da Eurovisão, Dublin, 1971; Medalha de Bronze no Festival de Brazov, na Roménia; 1.º Prémio de Interpretação do Festival de Split, na Jugoslávia; 4.º lugar e 1.º Prémio de Interpretação nas Olimpíadas de Atenas, em 1972; Prémio da Crítica do VI Festival do Rio de Janeiro, 1972; 5.º lugar no Festival da OTI, em Madrid, 1972.
Após o 25 de Abril, Tonicha participou numa das primeiras músicas da revolução, porventura a primeira, Portugal Ressuscitado/Canção de Combate escrita por Pedro Osório e Ary dos Santos mal saíram da manifestação em Caxias, no dia 26, a exigir a libertação dos presos políticos.
No 1.º de Maio, ela e dois fernandos, Tordo e Girão, gravaram-na nos estúdios da Musicord, no Pátio dos Artistas, a Campo de Ourique, e, uma semana depois, a música já estava nas rádios, com o refrão chileno “Agora, o Povo Unido Jamais Será Vencido” e um verso sobre a “gaivota da liberdade”, a antecipar o sucesso avícola de Ermelinda Duarte.
Por essa época – mais precisamente, em 24 de Outubro de 1974 -, Tonicha teve a sua primeira e única experiência no teatro de revista, na peça Uma no Cravo, outra na Ditadura, de Sérgio de Azevedo, estreada no Teatro ABC com um elenco de luxo (Ivone Silva, Tonicha, Nicolau Breyner, José Morais e Castro, Fernando Tordo, Herman José, Aida Baptista, Fernando Girão, etc.), e textos, músicas e orquestrações de Ary dos Santos, Bernardo Santareno, César de Oliveira, Rogério Bracinha, Pedro Osório, Thilo Krasmann, Fernando Tordo e Nuno Nazareth Fernandes.
Apesar de se considerar “prá frentex”, sobretudo quando fala dos tempos de Beja, e apesar da sua imagem arrojada de Françoise Hardy ou Sylvie Vartan lusitana, com minissaias, blusões, hot pants e bonés (“bonés à Tonicha”), que a tornaram um ídolo para muitas teenagers, que a imitavam e até davam autógrafos em seu nome, e que lhe granjearam muitos pretendentes, nacionais e estrangeiros, Antónia de Jesus Tonicha só teve um namorado e marido, João Maria Viegas, que conheceu aos 17, 18 anos, num espectáculo em Santarém, para o programa Onda Matinal, na Rádio Ribatejo.
Não foi amor à primeira vista, mas estariam juntos até ele morrer na Casa do Artista, aos 83 anos e de lúpus, em Julho de 2013, naquela que foi, muito provavelmente, uma das maiores perdas da vida da cantora, já que, além de marido,
Viegas foi seu manager e responsável pelos turning points decisivos da trajectória tonichiana, nomeadamente a sua passagem para o folclore e para a música tradicional portuguesa, domínios que ele dominava: nascido em Salvaterra de Magos, fora contemporâneo e amigo de Alves Redol, ajudara-o nas recolhas para o Cancioneiro Ribatejano, fizera trabalhos etnográficos pelo país e estrangeiro.
Um pouco a custo, convenceu Tonicha a fazer uma inflexão para o folclore e os cantares tradicionais, com Vira dos Malmequeres, Resineiro, Senhora do Almortão, O Gaiteiro Português, Sericotalho, Bacalhau, Azeite e Alho, Pézinho do Pico, Lá-Ri- Ló-Lé, Vai de Ruz-Truz Truz e sobretudo, acima de tudo, Zumba na Caneca, o seu maior êxito, do qual, às tantas, já estava para lá de farta.
A sua ligação a Patxi Andión e a Ary dos Santos, do qual gravou 48 canções, a participação nos cantos da revolução (além de Portugal Ressuscitado, os discos Canções de Abril e Cantaremos/Lutaremos, todos de 1974), o facto de se trajar como ceifeira, a modo de tableau vivant neo-realista ou incongruente Catarina Eufémia mignone e loira, tudo isso levou a que fosse conotada com o PCP, coisa que ela rejeita, até com certa veemência: “essa foi uma partida que me pregaram. Eu nunca tive qualquer filiação partidária”, disse à revista Vidas, do Correio da Manhã, em 23/1/2011.
Em 1992, já a RTP perguntava por ela no programa O Que é Feito de Si e, na verdade, Tonicha optara por uma vida mais recatada no campo, gerindo uma exploração turística no Ribatejo, em conjunto com o marido.
Em entrevistas, disse que gostava muito de cantar, mas que nunca almejou a fama e que sempre foi “muito pacata”. Conheceu as agruras da glória (“era complicado ir à praia e ter as pessoas a pedirem-me autógrafos.
Todos nós gostamos de ir a um restaurante e poder almoçar tranquilos”) e, por isso, abrandou o ritmo, saiu de cena, mas nunca se sentiu esquecida ou lamentou a escolha feita, até porque, confessa, fez “tudo o que podia fazer neste país”.
É verdade: gravou 308 canções, pelo menos, vendeu mais de 600 mil discos, esteve na Eurovisão, no Natal dos Hospitais, no “Abraço a Moçambique”, o Live Aid português de 1985, percorreu o globo, cantou a Ave Maria de Schubert num programa de Herman José, gravou o disco Fátima, Altar do Mundo.
Teve regressos intermitentes (v.g., Regresso, de 1993), foi alvo de homenagens, de compilações antológicas, em 2010 entrou no musical Vozes de Trabalho, de Tiago Torres da Silva, no Teatro da Trindade, ao lado de Lourdes Norberto, Cecília Guimarães, Carlos Mendes, Filipa Pais, Joana Negrão et all. Em 2017, seria lançada a foto-biografia Tonicha. A Eterna “Menina”, da autoria de Maria de Lurdes de Carvalho, com testemunhos, de Jorge Palma, Fernando Correia, Ary, Tozé Brito, Baptista Bastos, etc., e do professor Francisco Marzia, gestor do Facebook do Clube de Fãs de Tonicha, que mantém também um impecável e actualizado blogue (já a foto-biografia, infelizmente, além de se encontrar esgotada, não consta sequer do catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal).
Em 2019, antes de ganhar o Festival da Eurovisão, Conan Osíris louvou a deusa: “Eu curto bué a Tonicha e tenho muito respeito, especialmente pela música que ela foi cantar – Menina do Alto da Serra – a primeira vez que ouvi isso eu chorei…
A Tonicha para mim foi uma das maiores cenas no festival”. Interpelada pela TV 7 Dias, Antónia sentiu-se lisonjeada, deixando afirmado: “Não tenho seguido, mas, de facto, disseram-me”.
Recentemente, em Maio de 2022, houve em Beja uma gala de homenagem à sua filha dilecta, um espectáculo intitulado Tonicha – a Eterna Menina, com apresentação de Júlio Isidro e actuações de Anabela, Daniela Helena, Fernando Pardal e Mafalda Vasques, mas a coisa, pelos vistos, não correu bem, nada bem, e o presidente da edilidade mostrou-se “zangado, revoltado, enganado” por um evento que “não podia ter acontecido”, já que, das 17 músicas em cena, apenas uma era de Tonicha e o resto não passava de uma retrospectiva, ademais manhosa, dos Festivais da Canção.
Paulo Arsénio pediu desculpas pelo sucedido e deu instruções aos serviços camarários para devolverem o dinheiro a todos os que, apresentando-se na bilheteira do Pax Julia, quisessem ser ressarcidos por aquele delito de lesa-Tonicha.
Nesse capítulo, mais grave ainda foi a monumental gafe de Judite de Sousa, que a deu como morta, e logo por suicídio. Em 2015, ao entrevistar Nicolau Breyner para o programa 5 Dias 5 Noites, da TVI24, Judite Fernanda desabafou, pesarosa: “Há colegas seus, da sua geração, que acabaram por ter um fim triste.
Estou a pensar na Tonicha, que se suicidou, e estou a pensar na Florbela Queiroz”. Nico assentiu, compungido, sem se aperceber da barraca.
Entrevistada nesse mesmo ano de 2015 pelo programa Giras e Discos, da Rádio Sim, onde foi apelidada, e bem, de “rainha dos discos pedidos”, Tonicha fez prova de vida e contou o seu dia-a-dia: mora em Sines, gosta de passear junto à beira-mar, de ler, ouvir rádio, ver televisão, coisas pacatas.
Problemas de saúde complicados (venceu um cancro da mama, sofreu um atropelamento grave) levaram-na a resguardar-se e, segundo a própria, a “ficar mais sossegada, mais calma”. “Até porque já não tenho 30, 40 anos”, disse. Pois não, tem 77 – e muitos mais lhe desejamos.
*Prova de vida (5) faz parte de uma série de perfis de verão
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Porque é que seres humanos normais aceitam rumores, mesmo que eles sejam falsos, destrutivos e bizarros? – é com esta pergunta cruciante, e bem actual, que o grande jurista norte-americano Cass Sunstein começa o seu livro Dos Rumores – Como se espalham boatos, por que acreditamos neles e que podemos fazer (trad. portuguesa, Publicações Dom Quixote, 2010).
Antes de mais, diz-nos Sunstein, é necessário saber como os rumores começam, e saber que começam, na maioria dos casos, por propagadores conscientes, gente que tem a perfeita noção de que está a difundir uma mentira vil.
Há propagadores egoístas, que visam promover os seus interesses prejudicando terceiros, há propagadores altruístas, que espalham boatos ao serviço de causas, e há, enfim, propagadores maliciosos, que procuram disseminar rumores, inverdades, não por interesse próprio ou em nome de uma causa, mas simplesmente para causar estragos.
Há quase 50 anos – mais precisamente, há 42 anos, em Outubro de 1981 -, a manequim e cantora Laura Diogo, coroada Miss Fotogenia no Japão, em 1979, e uma das vocalistas da banda Doce, foi alvo de um rumor gritante, que incendiou Portugal de cima a baixo e que hoje, quase cinco décadas volvidas, ainda se lhe cola como uma segunda pele, uma cruz que terá de carregar para sempre, como uma pena infamante e perpétua, pior do que lepra ou cadeia.
Tudo começou, parece, por obra e graça, ou desgraça, de dois propagadores maliciosos, dois médicos que, quando as Doce se encontravam a actuar na discoteca Skylab, na noite de 22 de Outubro de 1981, decidiram espalhar um boato em duas boates diferentes, no Stones e n” O Tesouro, dizendo que Laura Diogo tinha dado entrada nas urgências do Santa Maria após ter sido sodomizada por um jogador do Benfica, o avançado Reinaldo Gomes – ou, se quisermos, Maurício Zacarias Reinaldo Rodrigues Gomes, nascido em Bissau, na Guiné, em 2 de Novembro de 1954, que John Mortimore levou para a Luz em 1978, após ter estado no Vila Real (1973-1974), no Famalicão (1974-1978) e, de permeio, emprestado na Régua.
Uma das cantoras da banda, Fátima Padinha, diz que o boato chegaria, inclusive, a ser discutido na Assembleia da República, havendo dele registo nas actas dos trabalhos parlamentares.
Da diligente pesquisa que efectuámos, porém, o mais que se encontra desse período, buscando pelo nome do grupo, foi o então deputado da UEDS, António Vitorino, a afirmar em São Bento que o governo da AD agitava “doces amanhãs que cantam” ou o deputado da UDP, Mário Tomé, a bradar que o mesmo governo andava a assassinar operários e que “as suas palavras doces já não podem enganar ninguém”. Das moças, nem rasto.
Seja como for, é facto que a estória difamatória alastrou como faísca na pradaria (Mao Zedong) e, como também sublinha Padinha, às tantas toda a gente tinha um amigo, um tio ou um primo enfermeiro que estava de banco em Santa Maria na noite fatídica e que jurava a pés juntos ser tudo mais que verdade.
Anedotas, graçolas, piadolas, risinhos boçais e alarves, houve de tudo um pouco, naquele que foi o primeiro grande escândalo sexual do pós-25 de Abril.
O humorista Vilhena, claro, encheu o prato, o caso até inspiraria um abominável jogo para o ZX Spectrum, o “Paradise Café”, pois, na verdade, a história de Reinaldo/Laura tinha todos os ingredientes do barbarismo: um grupo de jovens raparigas, das primeiras girls band da Europa, quiçá do mundo, com poses e visuais arrojados, roupagens minimalistas, cortadas por José Carlos; um acto sexual exquis para os cardápios eróticos da altura, ainda longe do episódio Taveira; uma branca ou, melhor, uma loira com um negro, eterno clássico da javardice, mescla de racismo e sexismo, numa tradição que passa pela “Manteigui” e pela “Ribeirada”, atribuídas por erro a Bocage, que atravessa doutos autores (Paolo Mantegazza, Fisiologia da Mulher, 1893), nomes consagrados das letras (A. Cabral, Vénus Geradora, 1904; Raul Brandão, Memórias, 1919; Alfredo Gallis, Helena Lourenço ou o Preço da Virgindade, s.d.; Fausto Duarte, Auá. Novela Negra, 1934; Hernâni Anjos, Um Negro no País das Loiras, 1968), filmes de antologia (Mandingo, de 1975, com James Mason) e outros não tão antológicos assim, como os do pitéu pornográfico Backs on Blondes (para quem quiser mesmo saber mais, cf. Serge Bilé, La légende du sexe surdimensionné des noirs, Paris, 2005).
Quando a coisa estoirou, as Doce preparavam-se para ir numa tournée pela América e foi já do Canadá que decidiram passar uma procuração ao jovem advogado Agostinho Pereira de Miranda, amigo de António Avelar de Pinho, co-produtor do Fungagá da Bicharada, ex-Banda do Casaco e autor de muitos sucessos do grupo (v.g., Aliabá, um homem das Arábias ou Bem Bom).
Miranda trabalhava no escritório de Francisco de Sousa Tavares, onde defendera, em 1980, o “piratinha do ar” Rui Rodrigues, que aos 16 anos desviara um avião da TAP na Portela, e, em parceria com Miguel Sousa Tavares, Roberto Martelli, membro das Brigadas Vermelhas.
Foi apresentada queixa na Judiciária contra João Duro e Guilherme Martins, membros do corpo clínico do Santa Maria e alegados autores do boato, e requereu-se uma certidão negativa ao hospital, provando que nenhuma das Doce tinha aí sido atendida no período em causa.
“O caricato de tido isto é que as Doce tiveram de pagar a uma pessoa para fazer pesquisa nos arquivos do Hospital, porque este não disponibilizou sequer um funcionário para a tarefa, alegando falta de pessoal”, recordou Pereira de Miranda ao Diário de Notícias, de 10/8/2021, acrescentando que lhes propôs fazerem uma arrasadora conferência de imprensa na Portela, mal regressassem do Canadá, mas percebeu ser uma ideia impossível “já que estavam completamente arrasadas.”
Além da queixa na Judiciária, foi feita participação na esquadra da PSP de Belém, mas o processo, conduzido por Pereira de Miranda e, depois, por Miguel Sousa Tavares, andou quatro anos em bolandas, à espera de melhor prova, até ser arquivado, sem que Laura, as Doce ou Reinaldo recebessem um cêntimo de indemnização.
Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.
Em 2021, aquando da exibição de um documentário televisivo sobre as Doce, emitido pela RTP (Bem Bom – Realidade e Ficção adaptado do filme homónimo de 2020, realizado por Patrícia Sequeira), soube-se a origem da vil mentira: na noite de 22 de Outubro de 1981, um travesti que usava uma cabeleira loura deu entrada, alquebrado, nas urgências do Santa Maria, dizendo chamar-se Laura Diogo, o seu nome artístico; quando estudava Psicologia (que concluiria na Universidade da Florida), Laura chegaria a conhecê-lo e este pediu-lhe que o perdoasse – tarde demais, estava o mal feito e o caldo para lá de entornado.
Meses antes, em Maio de 1981, já tinha circulado outra histórica, a de que as Doce tinham sido presas após terem feito um espectáculo de striptease numa boate de Peniche, mas seria o “caso Reinaldo” que acabou por pegar, até por uma calamitosa intervenção da Ordem dos Médicos (a qual, segundo Fátima Padinha, chegou a emitir um comunicado a dizer que não tinha sido Laura, mas Padinha a ser assistida, e no Hospital Particular) e por uma não menos calamitosa intervenção do jornal Tal e Qual, que durante semanas faria manchetes com o sucedido naquela noite sangrenta.
Aparentemente, a carreira das Doce não sofreu nem terminou por causa do boato: em 1982, a banda obteve o primeiro lugar no Festival da Canção, com o mítico Bem Bom, e representou Portugal na Eurovisão, aí regressando em 1984, com O Barquinho da Esperança.
O fim das Doce, segundo as próprias, deveu-se muito mais à saída, em 1985, de Lena Coelho, por ter engravidado (foi substituída por Fernanda de Sousa, actual Ágata), e, um ano depois, de Fátima Padinha, na mira de uma carreira a solo, que não correu bem. Anunciariam o fim do grupo num programa de Júlio Isidro, despedindo-se com o duplo álbum Doce 1979-1987.
Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.
Numa longa e importante entrevista à revista Flash!, de 22/7/2021, a ex-mulher de Pedro Passos Coelho e mãe de duas das suas filhas, que já venceu uma batalha contra um cancro da mama e uma depressão, traça um retrato do Portugal dos anos 1980 que vale mais do que muitos tratados de sociologia, descrevendo um país paroquial e atrasado, com terras desprovidas de luz ou água canalizada, sem acessos nem redes viárias (“primeiro que se chegasse a Bragança, tinha que se sair às sete da tarde do dia anterior para chegar lá às oito da manhã”), com uma imensa distância entre a capital e a província, mas, ao mesmo tempo, com uma distribuição mais uniforme da população pelo território: “em Lisboa, as pessoas vestiam-se de uma maneira e andava-se 100 a 150 quilómetros e as pessoas já eram de outra maneira.
A ruralidade era um factor presente. O país era todo habitado, hoje em dia está todo à beira-mar. O país era vivido e havia uma décalage enorme entre o que era a urbanidade e a ruralidade.”
Fátima, que diz não ter sido vítima de qualquer assédio ao longo da sua carreira musical, recorda ainda um ponto curioso, o desprezo das elites da cultura pelo trabalho da banda: segundo ela, por alturas do lançamento de Bem Bom, Maria Teresa Horta terá dito urbi et orbi que as Doce eram mais pornográficas do que as prostitutas do Cais do Sodré. Desprezível.
E desprezível tanto mais que, como bem notou o investigador Marcos Cardão, “as Doce veicularam novas formas de vida, temáticas e imaginários” e, no Portugal a preto e branco dos anos 80, “encenaram novos modos de vida e operaram pequenas modificações sobre as condutas, contribuindo possivelmente para remover um catálogo interiorizado de interdições que actuava sobre os corpos e as consciências” (“Pois Claro! Música, política e desejo no Festival RTP da Canção, 1975-1982”, Ler História, nº 67, 2015, p. 44).
Uma vez, ouvi na rua um africano em lamento: “é sempre o preto que paga…”, dizia ele, resignado. Aqui sucedeu o mesmo.
De todos os protagonistas, Reinaldo Gomes foi, provavelmente, o que mais sofreu e perdeu: as Doce nunca o conheceram, mas Fátima Padinha afirma, sem rodeios, que “ele é que realmente foi uma pena, porque lhe estragaram a vida.
Sabemos que estava no apogeu da carreira e depois tiveram até que tirar o filho da escola porque era insultado. Tinham um menino de oito ou nove anos que teve de ir para casa dos pais da mulher, em Vila Nova de Famalicão.
A família teve mesmo de se retirar para se afastar disto tudo.” Reinaldo, cuja mulher chegou quase a pedir o divórcio na altura e que acabou por sair do Benfica, indo jogar para o Boavista (e terminando a carreira em regresso ao Sport Clube da Régua, 1987-1988), vive hoje no Luxemburgo. Em 2021, quando a TV7Dias o contactou para falar sobre o caso, ainda se mostrou atemorizado: “Tenho de falar com o meu advogado, Isso para mim é muito complicado.
Quando se bate nesse assunto, fico na mesma, como se fosse o primeiro dia.” Depois, reiterando o óbvio, afirmou que tudo não passou de “um boato maldoso” e de “uma grande mentira”.
Cass Sunstein termina o seu livro sobre os boatos e as fake news escrevendo que “o êxito ou fracasso dos rumores depende em larga medida das convicções prévias das pessoas”.
Nos anos 80, época em que, por ano, se vendiam 3,5 milhões de singles, quatro milhões de álbuns e um milhão de cassetes, um país inteiro acreditou – e, sobretudo, quis acreditar – na história de Laura e Reinaldo porque estava piamente convicto de que, por cantarem semidespidas e terem poses atrevidas, aquelas raparigas eram, teriam de ser, sexualmente promíscuas e moralmente desatinadas.
O aditivo racista acabaria por compor a história, falsa do princípio ao fim, coisa que na altura não importou a ninguém – do que se sabe, à época nenhuma voz se ergueu para defender a honra perdida de Laura Diogo, das Doce e, já agora, de Reinaldo Rodrigues Gomes. Bem Bom? Não parece.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Eládio Táboas Clímaco, que nasceu em Lisboa em 27 de Outubro 1941 e tem portanto 80 e um ano, quase dois, é hoje encarado como um velho faraó do pequeno écran, uma espécie de Amenófis IV do serviço público, homem nado e criado no preto e branco, mas que aguentou bem, muito bem, e sempre com galanteria e charme, a nem sempre fácil transição para as primeiras cores do sistema PAL.
Noutra encarnação, terá sido um faquir, partenaire do Drácula, porteiro de um hotel de cinco estrelas ou quiçá Gloria Swanson. Nesta, foi o rosto apresentador do Festival da Canção e dos Jogos Sem Fronteiras, aos quais deu a sua cara e o seu corpo, decerto também algo do espírito, coisas de que só hoje temos vaga lembrança e que de nós exigem até basto esforço de memória, cada vez mais falha, pois que, também como ele, já não vamos para novos (e ninguém diga que está bem).
Na rua, diz, a toda a hora lhe pedem para tirar selfies, como se fosse um chefe de Estado, que em parte o foi e é, tantas foram as tardes e noites em que consigo teve um país inteiro à mercê, coladinho à tela.
O mundo a seus pés, ou quase, seja em tempos de ditadura, seja nos pródromos da democracia, que cobriu como locutor do Telejornal do canal público, o único que então existia, para bem dos nossos bocados.
O pai queria-o engenheiro e chegou a andar no Técnico, mas o convívio com os artistas e os intelectuais da Brasileira do Chiado, que diz ter conhecido de perto (mestre Almada, Sarah Afonso, Laura Soveral, Maria Carlota Álvares da Guerra), encaminhou-o para os palcos, não sem antes ter feito a tropa e frequentado Arquitectura.
Através de Maria Carlota Álvares da Guerra, jornalista e locutora do Rádio Clube e da Renascença, mãe da actriz Maria do Céu Guerra e do jornalista João Paulo Guerra, conheceu Fernando Amado, do Centro Nacional de Cultura, dramaturgo e encenador, homem de vários talentos, conservador e monárquico, reaccionário, integralista, que, após ter estado nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, criara uma tabela de marcas atléticas adoptada internacionalmente. Em 1963, com o apoio de João Osório de Castro e de um grupo de jovens actores amadores, Amado fundou a Casa da Comédia, mas retirou-se um ano depois por motivos de saúde.
Eládio estreou o teatro, ao lado de Fernanda Lapa e de Maria do Céu Guerra, com quem fez o parzinho amoroso de Deseja-se Mulher, peça da autoria de Almada, encenada por Fernando Amado.
Seguiram-se outras funções, no palco e na rádio, esteve quatro anos aos microfones da Rádio Graça, fundada em 1932 por um guarda-livros do bairro, e que a partir da Rua Machado de Castro e, depois, da Rua da Verónica, esmagou corações de gerações com o folhetim A Força do Destino, o da “coxinha do Tide“.
Foram os colegas de Eládio na Rádio Graça que o inscreveram, sem ele saber, num concurso para novos locutores que a RTP abrira. No dia das provas, aos Estúdios do Lumiar, estava numa pilha de nervos, mas terá passado bem nos exames de inglês, de francês, de leitura do Telejornal, de leitura da contracapa de um disco de música clássica (para ver se os candidatos sabiam pronunciar a palavra Beethoven), acrescidos de uma entrevista e de uma apresentação em palco.
Tempos depois, recebeu uma carta em casa dos pais, dizendo ter sido seleccionado, na companhia de outras futuras glórias do éter, Raul Durão, Maria Elisa, Ana Zanatti.
Ao início, foram “pau para toda a obra”, dixit Clímaco, que confessou ter feito de tudo um pouco naquela que seria a sua “casa” de sempre: telejornais, locuções de continuidade, gravações, sonorizações, dobragens para filmes infantis, etc., etc.
Em 1973, estreou-se no entretenimento, com o programa Domingo à Noite, ao lado de Alice Cruz, de Maria Margarida, de Henrique Mendes e com rubricas de humor de Florbela Queirós e Norberto de Sousa.
Gravavam aos sábados à tarde, primeiro no Villaret, depois no Maria Matos, e a seguir as fitas iam à censura para depois serem emitidas ao domingo.
Não sendo politizado, confessa, Eládio era “do contra”. E, em Domingo à Noite, ele e Alice Cruz tinham até uma deixa à clef para arreliar os censores, avessos a sufrágios populares: “Votamos por uma noite muito feliz”. Noutra ocasião, esta por alturas do Natal, o lápis-azul cortou uma frase da sua autoria – “As nossas mãos têm sóis que podem aquecer a humanidade” – que Clímaco ainda hoje acha lindíssima (“era uma frase tão bonita, tinha-me custado tanto a magicar, por que é que havia de ser proibido?”), mas que nos abstemos de comentar.
No dia 25 de Abril, tinha locuções marcadas para as 9.30 da manhã e, apesar dos avisos feitos na rádio para que todos ficassem em suas casas, apresentou-se nos Estúdios do Lumiar ao volante do MGB descapotável que tinha comprado, na altura, com os primeiros ordenados e a ajuda do pai.
Ao ver um tanque estacionado à entrada, pensou no pior e disse para os seus botões, por certo doirados: “Olá! Isto não é brincadeira, é um tanque. Epá, eu estou completamente acabado. Um carro descapotável, com um tanque à frente, os tipos dão-me um balázio!”
Esqueceu-se Eládio, nesse aperto, de que aquilo era uma revolução, sem dúvida, mas travada em Portugal, paroquial e compincha: logo do alto do tanque, claro, saiu um antigo colega seu dos tempos de Arquitectura, que lhe deu um grande abraço e o mandou seguir rampa acima.
Dentro dos estúdios, Fernando Balsinha e os homens do MFA disseram-lhe que aquele já estava escalado para apresentar o Telejornal daquela jornada histórica e mandaram-no regressar no dia seguinte, o que fez, sempre com impecável garbo e não menor profissionalismo.
“Entre nós, o grande entusiasta dos Jogos foi José Fialho Gouveia, que com Eládio apresentou a primeira edição portuguesa, transmitida em 1979 a partir Praça de Touros de Cascais.”
Em 1976, ao lado de Ana Zanatti, apresentou o Festival da Canção, nesse ano intitulado Uma Canção para a Europa, com Carlos do Carmo a entoar todas as 12 músicas a concurso.
Do ponto de vista estatístico, ou de custo-benefício, era sempre uma tragédia – até à vitória de Salvador Sobral em 2017, Portugal era o país que participava no Festival há mais anos sem nunca ter vencido, sendo que, em 50 anos, apenas nove canções portuguesas ficaram dentro do top-10 das posições finais -, mas à crueza dos números Eládio prefere a beldade das nostalgias, sobretudo uma, assaz romântica: foi na edição de 1983 que a sua compère Valentina Torres conheceu o vencedor da contenda, Armando Gama, com quem estaria casada 23 anos, antes de o autor da enternecedora Esta Balada que te Dou, recentemente falecido de cancro do pâncreas, ter optado por uma companheira 35 anos mais nova, que acabou acusando o auto-intitulado “5.º Beatle” de violência doméstica e posse de arma proibida.
Antes de Vladimir Putin ter dado um novo e mais sinistro sentido a esta expressão, os Jogos Sem Fronteiras foram uma invenção do general de Gaulle, com o apoio do chanceler Adenauer, coisa portanto política, e ao mais alto nível, visando unir os jovens de um continente que se diz velho e, em simultâneo, aprofundar o ideal europeu.
Em Itália já existia um programa parecido, entre as várias cidades da bota, o Campanile Sera, pelo que foi só juntar o Intervilles francês, a Bélgica e a Alemanha para que a primeira edição visse a luz em 1965 (a última teve lugar em 1999 e, apesar de a União Europeia de Radiodifusão ter anunciado um remake em 2006, nada mais se fez).
Entre nós, o grande entusiasta dos Jogos foi José Fialho Gouveia, que com Eládio apresentou a primeira edição portuguesa, transmitida em 1979 a partir Praça de Touros de Cascais.
Além da dupla Fialho-Clímaco, outro dueto memorável, os árbitros Gennaro Olivieri e Guido Pancaldi – horas felizes, irrepetíveis, menos castas do que muitos julgam; não seria a idade da inocência, já que esta nunca existiu, mas era um tempo de maior decência, ou antes assim parece.
Depois disso, Eládio fez outras e várias coisas: regressou ao teatro com Armando Cortez, em Os Padres Também se Confessam, de 1983; apresentou programas com Felipa Garnel e Isabel Angelino; foi dançarino convidado do Dança Comigo, em 2003; esteve na RTP-Memória; participou na série Nelo e Idália, de 2015, três anos depois do imenso adeus à casa e à caixa onde foi famoso.
Em inúmeras entrevistas, tem dito que gostaria de regressar, não tendo percebido, provavelmente, que a televisão que foi sua, hoje, já não existe e que a sua gentlemanship arrebicada, de tipo britânico, muito característica das burguesias do Estado Novo e do que então se considerava a quintessência da “classe” e de ser “um senhor”, é agora coisa de outro planeta (tratava o pai por “meu pai”, o que só por si define um carácter e uma época).
Eládio Clímaco esteve na charneira entre duas filosofias de entretenimento popular: a que considerava que a recriação das massas deveria ser feita a partir de cima, elevando-lhe a educação e o gosto; e a que rejeita paternalismos de elite, sustentando que os espectadores devem ser senhores absolutos do seu próprio lazer e que só vale, portanto, “o que o meu povo gosta”.
O populismo televisivo antecipou e pavimentou o político e entre a TV de Eládio Clímaco, Ana Zanatti, Maria Leonor e Henrique Mendes, de um lado, e a de Cristina Ferreira, João Baião, Rui Unas ou José Carlos Malato, do outro, não há apenas uma diferença geracional de protagonistas e respectivas origens sociais, há a distância que vai, ou deveria ir, entre o festival da Eurovisão e a música pimba.
Morreu o mundo de Eládio, mas ele, posto que melancólico e tristonho, dizendo não ter hoje mais do que três amigos íntimos, continua vivo e saudável, e nós a ver. Ainda bem.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na semana que passou, além de um incidente doméstico na casa de Putin (problemas com o cozinheiro, parece), andou o mundo alarmado com a saga de um submarino ao largo da Terra Nova, com cinco homens a bordo, um dos quais bilionário, trirrecordista do Guinness e morador no Dubai.
Houve logo quem lembrasse que, poucos dias antes, naufragara um navio em pleno Mediterrâneo, um mar aparentemente mais calmo e mais civilizado, e que nesse navio seguiam não cinco mas 350 seres humanos, dos quais apenas 104 sobreviveram. Disse-se, a esse propósito, que as televisões e as rádios deram muito mais relevo aos cinco infelizes do Titan do que aos 350 não menos infelizes de uma embarcação cujo nome nem sequer se sabe.
Entrevistada pela BBC, Priyamvada Gopal, professora de Estudos Pós-Coloniais em Cambridge, veio explicar essa aberrante disparidade de tratamento: os tripulantes do Titan tinham um nome e um rosto, eram “heróis” potenciais ou reais, ao passo que dos migrantes do Mediterrâneo nada de nada se sabia, nem sequer o número de quantos morreram ou terão morrido na catástrofe.
Por outro lado, a novela do Titan tinha os ingredientes todos de uma boa série de suspense, pois durante dias e horas havia a incerteza sobre se os viajantes se iriam salvar, ou não, ao passo que os paquistaneses, coitados, morreram sabe-se lá como e só foram notícia depois da tragédia acabada.
Tudo isso é verdade, mais do que verdade, mas o que talvez menos se diga é que, enquanto bilionários a morrer não é uma coisa normal, não passa uma semana sem que morra gente, muita gente, nas águas do Mediterrâneo.
Do ponto de vista noticioso, mediático, a morte de paquistaneses, indianos, bengalis é coisa tão corriqueira e banal que já nem desperta o interesse — o dos media e também o nosso, note-se. Por aquelas paragens — Índia, Paquistão, Bangladesh –, um desastre ferroviário só merece notícia, e ainda assim fugaz e curta, para cima de 100 ou mais mortos. Caso contrário, nem cá chega.
Por isso, e até por respeito pela morte humana — a dos cinco tripulantes do Titan e a das centenas de paquistaneses do Mediterrâneo –, importaria não politizar as duas tragédias, tirar partido dos mortos, até porque há uma coisa que sempre tem de ser dita: a Europa autoflagela-se, e em parte bem, por não ajudar mais esta gente, como a humanidade e a moral justamente mandariam.
Sendo isso mais do que óbvio — e abjecto o nosso silêncio –, é também mais do que óbvio que esta massa imensa de gente está a fugir do tão falado “Sul global”, uma entidade difusa que pretende afirmar-se como actor de primeiro plano na cena internacional, mas que, na sua cena doméstica, maltrata e espezinha os próprios cidadãos, a ponto de estes quererem escapar a todo o custo dos seus países de origem, mesmo correndo o risco de perecerem em águas mediterrâneas ou nas arriscadas travessias da Mancha.
Em larga medida, o protagonismo que Lula, Modi, Erdogan e outros querem ter na frente externa destina-se a camuflar as misérias da frente doméstica: milhões e milhões na pobreza, desprezo pelos direitos do ser humano, crimes ambientais, poluição, desigualdades, fome.
“Todo o mundo é um palco”, na frase imortal de Shakespeare, e, na verdade, tanto há “espectáculo” na tragédia do Titan como na forma com que os dirigentes do “Sul global” pretendem apresentar-se, virginais e puros, nos fora deste planeta.
Lula, que se propõe fazer a paz na Ucrânia, é incapaz de garantir a paz social em sua casa e, em matéria ambiental, desdisse já muito do que prometera em campanha: aguardemos os desenvolvimentos de três megaprojectos — a perfuração de petróleo na foz do Amazonas, a hidroeléctrica de Belo Monte e a ferrovia de Ferrograo — para sabermos se o presidente brasileiro estará mesmo ao lado dos índios e do planeta, como prometeu, ou se cederá aos interesses e aos grandes negócios.
E, já que falamos de mortos em submarinos, importaria recordar aos que continuam a fazer o jogo de Putin, falando no “poder nazi” da Ucrânia (!), que, no ano 2000, Vladimir, esse humanista, esse pacifista, deixou morrer lentamente 118 compatriotas seus, os tripulantes do Kursk, depois de ter recusado durante quatro dias a fio as ofertas de ajuda feitas pela Noruega e pelo Reino Unido.
A propósito do bilionário morto na Terra Nova — e da cobertura que mereceu das televisões e dos jornais –, quase apetece lembrar o famoso diálogo, ao que parece inverídico, entre Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, com o primeiro a dizer, deslumbrado: “Os ricos são diferentes de nós”, e o segundo a responder, ácido e cortante: “Sim, têm mais dinheiro.”
Não vale a pena insistir no óbvio, que os super-ricos de hoje têm muito mais dinheiro do que nós, os comuns mortais, até porque nessa constatação vai muita coisa que preferimos deixar na penumbra.
Por um lado, no nosso desprezo pelos ricos há muito de inveja pura e, se acaso enriquecêssemos também nós, por herança inesperada ou favor da lotaria, logo deixaríamos de clamar e bramar contra as injustiças do mundo e o poder dos milionários.
Por outro lado, há muita cumplicidade nossa com o actual estado de coisas — se acham um absurdo a riqueza de Musk, não comprem carros da Tesla, deixem de usar o Twitter.
Será coerente denunciarmos o poder de Musk e continuarmos a fazer posts no Twitter, enchendo-lhe a conta bancária? Ou criticarmos Zuckerberg mas permanecermos no Facebook ou no Instagram? E brincarmos ao TikTok enquanto vituperamos a crueldade da China e os massacres de Tiananmen?
Olhando para os multibilionários da actualidade, talvez o que possa dizer-se é que, além de muitíssimo mais ricos do que os seus congéneres de outrora, têm todos menos graça.
Elon Musk, Jeff Bezos, Bill Gates, Mark Zuckerberg são uma cambada de cinzentões comparados com os milionários do passado, aqueles que marcaram os anos dourados da Riviera Francesa. Pensemos na arte a bordo, por exemplo.
Diz-se que Mohammed bin Salman (MBS), o tirano que duplicou o número de execuções na Arábia Saudita (até Março deste ano já tinham sido mortas 81 pessoas, um número que, pelos vistos, não tira o sono a Messi e a Ronaldo), diz-se que MBS, dizíamos, tem no seu iate um quadro de Leonardo da Vinci, Salvator Mundi (pintura que, como já aqui referimos — “O estado da arte”, DN, 16/1/2021 –, é muito provavelmente falsa, a ponto de MBS ter pressionado o Louvre para que este não dissesse a verdade e o poupasse à humilhação de, bimbo e inculto, ter pago 450 milhões por uma obra forjada).
Também o xeque Mansour bin Zayed al-Nahyan, antigo dono do Manchester City (assistiu a dois jogos, não mais…) e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos, tem centenas de obras de arte a bordo do seu iate, o Topaz, orçado em 350 milhões de libras.
E, de igual modo, John Lewis, o multimilionário do Tavistock Group, sediado nas Bahamas, tem no seu barco telas de assombração, como o Tryptich 1974-1977, de Francis Bacon, comprado em 2008 por mais de 26 milhões de libras.
Pois bem: também Onassis levava muita arte, antiga e moderna, a bordo no seu iate Christina O. Por exemplo, telas de Winston Churchill, como uma que em 1961 lhe foi oferecida pelo antigo primeiro-ministro britânico, um convidado habitual do Christina.
E outra, um fabuloso quadro de El Greco, que tem uma história curiosa, típica dos milionários de outrora: foi num sofá branco frente ao quadro de El Greco que Tina Niachos, a primeira mulher de Onassis, o apanhou em flagrante com Maria Callas, facto que precipitou um divórcio célebre e abriu caminho a um dos romances mais badalados do século.
Foi a bordo do Christina, de resto, que Kennedy conheceu Churchill, outra história de encantar. Ao que parece, o jovem e ambicioso político americano sonhava conhecer o leão britânico, a lenda da 2.ª Guerra.
Um dia, Kennedy e Jacqueline conseguiram o desejado convite de Onassis para um jantar no Christina. Jackie surgiu deslumbrante, bronzeada, num vestido branco, falando fluentemente francês com Churchill e com Onassis, enquanto John estava de smoking branco, com Winston a franzir o sobrolho à sua indumentária. No final da noite, Kennedy, desolado, desabafou com a mulher, disse-lhe que Churchill mal lhe dirigira palavra, ao que Jackie respondeu, cortante: “Acho que te confundiu com um criado.”
Foi também na Riviera que se processou um outro diálogo curioso, desta feita entre Kennedy e o cunhado, Michael Canfield, casado com uma irmã de Jackie. Michael: “Não percebo porque é que queres tanto ser presidente.” Jack: “Bem, Mike, acho que é a única coisa que sei fazer.”
É difícil, quase impossível, enumerarmos todas as histórias e todos os grandes nomes que passaram pela Riviera entre finais do século XIX e meados do século XX. Gente do dinheiro e da alta sociedade, da política e dos negócios, mas também figuras das letras e da cultura, sobretudo das artes plásticas.
Praticamente não houve ninguém, incluindo Lenine, que, numa altura ou noutra, não tenha estado em Nice, em Cannes, em Antibes, nas terras limítrofes, como nos mostra um livro acabado de sair, óptima leitura de férias: Once Upon a Time World. The Dark and Sparkling Story of the French Riviera, de Jonathan Miles (Atlantic Books, 2023).
Não é exagero dizer-se, na verdade, que, por debaixo daquela aparência frívola de paraíso de milionários, a Riviera Francesa foi palco de muita História, de acontecimentos que marcaram o destino de milhões de seres humanos.
Foi lá que os duques de Windsor se refugiaram após a histórica abdicação de Eduardo VIII, em Dezembro de 1936, e do seu casamento com Wallis Simpson, em Junho do ano seguinte, após a confirmação do segundo divórcio dela. Enquanto aguardava pelo casamento, com Wallis já a residir em França, Eduardo foi viver para a Áustria, para a casa de Eugéne e de Kitty de Rothschild, no Schloss Enzensfeld, perto de Viena.
Se o diabo está nos detalhes, como dizem, alguns pormenores definem bem a desprezível personalidade do antigo monarca: enquanto esteve hospedado pelos Rothschild, Eduardo comportou-se de uma forma horrível, tratando os empregados da casa como se fossem seus, fazendo intermináveis chamadas internacionais para Wallis Simpson, de muitas centenas de libras, a pagar pelos seus anfitriões.
E a canalhice suprema: quando os nazis começaram a perseguir os judeus da Áustria e Kitty e o marido, o barão Eugéne, decidiram partir para a América, Eduardo nem sequer desceu para se despedir deles ao pequeno-almoço…
Já em França, os Windsor convidariam 300 pessoas para o seu casamento: apareceram 16. Churchill, que sempre os apoiou, faltaria à boda, mandando o filho Randolph em sua representação.
Winston e os duques estariam juntos em inúmeros almoços e jantares na Riviera, com o futuro primeiro-ministro a notar uma cruel mudança de estatuto: uma vez deposto, Eduardo passou a ser obrigado a disputar o uso da palavra à mesa das refeições, coisa a que não estava habituado e que, claro, o deixava deveras incomodado.
Na mansão que arrendaram em Cap Antibes, o Château de la Croë, os 33 empregados, todos loiros, fardavam imaculadamente de branco e eram instruídos para tratar Eduardo como se continuasse a ser rei.
Outra ilustração do seu carácter: quando saiu às pressas de França, conduzindo o próprio carro, na iminência da chegada dos nazis (com os quais tinha, aliás, fundas e antigas simpatias), Eduardo nem se incomodou sequer com o seu fidelíssimo ajudante de campo, Fruity Metcalfe, que estivera com ele — e inteiramente pro bono — desde os tempos da abdicação, que fora seu padrinho no casamento com Wallis Simpson e que o duque vilmente deixou abandonado em terras de França à mercê dos alemães.
Como ainda hoje dizem alguns dos seus biógrafos, Eduardo Windsor mostrou-se mais preocupado com o bem-estar dos seus terriers do que com a segurança do ajudante de campo, a quem ordenou que levasse os cães para o refúgio de La Croë sem dizer uma palavra sobre o que deveria fazer depois.
Podemos pensar em tudo isto como mero gossip do mundo dos ricos, coisas do domínio do supérfluo e da petite histoire. São, porém, muito mais do que historietas.
Foi ao sol da Riviera, em almoços e jantares, festas e cocktails, que Churchill cimentou a sua relação muito próxima com Aga Khan, de quem, antes sequer de ser primeiro-ministro, ia obtendo informações preciosas sobre a política na Europa e sobretudo no Oriente.
Para o destino da 2.ª Guerra — e depois, na questão da partição da Índia e da génese do Paquistão — não foi indiferente o facto de o líder espiritual de milhões de seres humanos estar alinhado com os ingleses, de ter privado com a rainha Vitória, de considerar-se cidadão britânico de alma e coração.
Como para o destino desses milhões de ismaelitas não foi indiferente a atribulada vida amorosa e sexual de Aly Khan, o qual, apesar do seu tumultuosíssimo casamento com Rita Hayworth (celebrado em Cannes, 1949), não deixou de ser designado embaixador do Paquistão nas Nações Unidas entre 1958 e 1960, onde fez, aliás, um belíssimo lugar, chegando à vice-presidência da Assembleia-Geral.
Porém, os seus excessos de playboy, com epicentro nas costas da Riviera, levariam a que fosse preterido na sucessão de seu pai e, como é sabido, acabou por morrer na sequência de um aparatoso acidente em Suresnes, arredores de Paris. Antes de serem trasladados para a Síria, em 1972, os seus restos mortais repousaram, durante anos, no Château de l”Horizon, Côte d”Azur.
Poderia fazer-se a história da Riviera apenas em torno deste Château de l”Horizon, uma propriedade lendária, construída em 1932 pela americana Maxine Elliott, antiga actriz, femme du monde e empresária teatral de sucesso que decidiu fixar-se no Sul de França, onde morreria durante a guerra, em Março de 1940.
Sobre a história dessa casa há um livro apaixonante, que li há pouco, The Riviera Set. 1920-1960: the golden years of glamour and excesso, de Mary S. Lovell (Little Brown, 2016), onde se conta pari passu a construção de L”Horizon.
Para a conceber, Maxine escolheu o arquitecto americano Barry Dierks, que já antes fizera maravilhas na Villa Mauresque, de Somerset Maugham, tornando-a irreconhecível, de impecável bom gosto.
Descrita como “um palácio branco erguido nas águas”, L”Horizon deslumbrava pelo arrojo modernista das suas linhas, pela dimensão descomunal da piscina, pela proximidade ao mar (Johnny Weissmuller/Tarzan surpreendia os outros convidados atirando-se de uma das janelas do primeiro piso em arrojado salto para o oceano).
Nos tempos de Maxine Elliott, L”Horizon hospedou Winston Churchill, o hóspede dilecto, que aí completou a sua biografia do duque de Marlborough, e foi palco de encontros e conciliábulos entre ele, Lloyd George, os duques de Windsor e, diz-se, Anthony Eden, então MNE britânico, e os seus homólogos franceses e italianos.
Nas festas organizadas por Maxine, um cortejo de celebridades, de Noël Coward a Greta Garbo, passando por Jack L. Warner ou Maurice Chevalier. Inúmeros, dezenas, casos de amor e de sexo, traições e infidelidades, dizendo-se mesmo que foi aí que Churchill terá mantido uma relação muito dúplice com a socialite e beldade Doris Castlerosse, nascida Doris Delevingne, tia-avó da actual e célebre modelo.
Outros garantem que Churchill terá tido um caso, sim, mas com a sua anfitriã, Maxine Elliott, enquanto outros asseveram que tudo não passa de lenda, de resto sem interesse algum (no que talvez estejam certos).
Depois da morte de Maxine, Aly Khan comprou o Château l”Horizon, o qual seria palco de tremendas cenas e épicas brigas conjugais entre o príncipe dos ismaelitas, um incorrigível mulherengo, e a actriz de Gilda, conhecida pelo seu mau génio.
Começámos esta crónica com barcos no Mediterrâneo e, falando deles, uma outra história náutica, esta bem metafórica. No início de 1929, cansado do frio de Londres, o escritor Evelyn Waugh decidiu fazer um cruzeiro pelas águas tépidas da Costa Azul. Consigo levou, disse, “dois ou três livros solenes”, entre os quais o famoso Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler.
Teve azar com o tempo, estava um gelo em Monte Carlo, e Waugh, sempre snobe, anotou no seu diário que “os ricos são tão rígidos na liturgia dos seus movimentos que vêm para Monte Carlo durante o Inverno apenas porque é isso que o calendário lhes manda”. Enquanto Waugh, no conforto do convés, lia uma obra sobre a decadência do Ocidente, um terramoto abalava a Bolsa de Nova Iorque, deixando milhões na penúria.
Depois, seguiu-se a guerra e, regressada a paz, a Riviera não mais foi a mesma: desapareceram os aristocratas britânicos, surgiram fortunas novas de todo o mundo, para uma nova fase de excessos ainda maiores, dos grandes playboys planetários — Aly Khan, Porfirio Rubirosa, Gianni Agnelli –, das beldades do cinema, dos automóveis velozes.
Anos depois, outras mudanças, radicais, profundíssimas, com a Riviera Francesa a ser o espelho e o reflexo dos novos poderes do mundo, dinheiro de outras paragens, sem charme nem qualquer graça.
Em 1979, o rei Fahd, da Arábia Saudita, compraria o Château de l”Horizon aos herdeiros de Aly Khan. O fabuloso palácio, outrora uma casa de festa e de riso, está hoje silencioso, emudecido, sepulcral. O príncipe Abdullah, que herdou o trono do seu irmão Fahd, tem outra mansão em Cannes e pouco ou nada vai lá.
Passam-se anos sem a casa ser aberta, raramente é frequentada pela família saudita, cuja chegada à região, muito discreta, é assinalada tão-só por um pormenor escabroso: o inusitado afluxo de prostitutas de luxo.
A casa foi murada, esventrada, descaracterizada, convertida num horrível bunker. Fizeram obras ilegais, apropriando-se de terrenos e caminhos públicos, mas, sem problemas, no final pagaram a conta, oferecendo as famosas “compensações” ao município de Vallauris.
Não longe, o Château de la Croë, a antiga casa dos Windsor, passaria para as mãos de Onassis, que a vendeu em 1957, após a sua mulher, Tina, atrás citada, o ter apanhado na cama com uma socialite francesa (ser flagrado no acto parece ter sido uma sina do armador grego…).
Acabaria invadido e vandalizado por “ocupas” e depois comprado por um português ilustre, o cidadão Roman Abramovich, cujo processo de aquisição da nacionalidade lusitana permanece envolto em penumbra, pouco ou nada se sabendo sobre o inquérito há muito anunciado pelas nossas autoridades.
Em Abril de 2004, Abramovich iniciou obras de restauro e remodelação profunda, que duraram quatro anos e custaram qualquer coisa como 30 milhões de euros. Mobiliário feito à medida, uma piscina de 15 metros na cobertura, vasto ginásio no subsolo, plantas do Mediterrâneo e da Califórnia.
A propriedade, estimada em 120 milhões de dólares, foi apreendida pelas autoridades francesas na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia ou, como diriam alguns, da patriótica guerra de Moscovo contra o poder nazi de Kiev (a pergunta que se impunha: se Zelensky é nazi, Putin será o quê? Antifascista?).
Para os leitores eventualmente interessados, informa-se que, desde 16 de Junho, há uma propriedade à venda por bandas da Riviera. Fica em Cap d”Antibes, chama-se Château de la Garoupe.
Foi construída em 1907 por Lord Aberconway e, além de uma escada com acesso directo à baía de La Garoupe, tem um parque imenso e frondoso, com roseirais a perder de vista, consecutivamente eleito o mais belo jardim da Côte d”Azur.
La Garoupe foi visitada pelo duque de Connaught, filho da rainha Vitória, acabou arrendada à época por Cole Porter, serviu de cenário a festas em que estiveram Picasso, Hemingway, Zelda e F. Scott Fitzgerald, descritas nalguns livros deste último. Seria comprada por um dos oligarcas de Putin, Peter Berezovsky, e serviu-lhe de refúgio quando este caiu em desgraça e se refugiou no Ocidente, sempre no Ocidente.
Berezovsky, como é sabido, apareceu misteriosamente morto na sua casa de Londres, com uma ligadura à volta do pescoço, coisas que acontecem com frequência aos que ousam enfrentar o Kremlin.
O governo francês, que não é parvo, apreendeu a propriedade logo após a morte do oligarca, fazendo-o no contexto de uma investigação por branqueamento de capitais, que durou mais de 10 anos e que permitiu detectar os fluxos financeiros que levaram à compra de La Garoupe em 1996, por 8,4 milhões de euros, e, mais tarde, de um outro edifício adjacente, por 13,5 milhões de euros. Agora, está à venda, vejam-na: https://www.chateaudelagaroupe.com/.
Árabes do petróleo, tiranos e homicidas, oligarcas russos com longos cadastros de sangue, assim está a Riviera, um reino de podridão. Sempre terá sido assim, em parte ou em larga medida, e também no passado houve crimes, muitos: lembremo-nos, por exemplo, de Basil Zaharoff, senhor de Monte Carlo, com fortuna feita no tráfico de armas, colossalmente rico graças aos mortos da Grande Guerra, imortalizado por Hergé em O Ídolo Roubado.
Mas simplesmente, tristemente os ricos do antigamente parece terem mais graça. E, sem dúvida, deixaram mais, muito mais, histórias para contar do que os bilionários do presente, reclusos e opacos, sem charme ou pingo de humor. Até nisto regredimos, parece – e é pena.
P. S. – Ao fim de precisamente cinco anos, esta coluna “Péssima Companhia” irá dar algum descanso aos leitores, finalmente. Na próxima semana, e nos próximos meses, uma nova rubrica, intitulada “Prova de Vida”: ex-famosos, hoje esquecidos, gente desaparecida, outra em voluntário olvido, travessias do deserto, fugas para o Brasil.
Todas as semanas nomes da política e do desporto, das artes e do espectáculo — no fundo, retratos de Portugal.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Foi dos primeiros a chegar, não se sabe como. Da moldura de um quadro pendia um pedaço da orelha do marquês, projectado com violência. A marquesa fora baleada três vezes, uma das quais no peito opulento, por onde escorria um líquido viscoso cuja aparência láctea intrigou a polícia.
À época ainda não era comum o uso do silicone e só os muito ricos, como ela, faziam cirurgias plásticas para incrementar os seios. A um canto afastado do salão vastíssimo, o corpo contorcido de um jovem, caído de bruços atrás da mesinha com que tentara proteger-se dos primeiros tiros.
Nas buscas da praxe, o comissário da Secção de Homicídios descobriu, numa escrivaninha, um álbum bizarro, encadernado a pele verde, onde o marquês anotava à minúcia, numa caligrafia elegante, centenas de encontros sexuais da sua mulher com outros homens.
E muitas fotografias da marquesa nua, em poses obscenas, que, não se sabe como, seriam passadas à imprensa, enchendo durante meses as páginas dos jornais de escândalos e das revistas pornográficas.
O advogado foi dos primeiros a chegar, não se sabe como. Acompanhou a polícia quando esta subiu a escadaria da sumptuosa residência do marquês Casati Stampa di Soncino, n.º 9 da via Puccini, Roma, pouco passava das dez da noite daquele domingo cinzento, 30 de Agosto de 1970.
A mulher caída sobre uma poltrona, de olhos bem abertos de incredulidade, era Anna Fallarino, tornada por casamento marquesa de Casati Stampa. Nascera há quarenta e um anos numa terriola da Campânia, as origens modestas.
De invulgar beleza e ardentes formas, saíra de casa de seus pais muito nova, rumo a Roma. Nos amargos tempos do pós-guerra, e para uma rapariga educada na leitura de fotonovelas e romances cor-de-rosa, o sonho de uma vida melhor passava, acima de tudo, por encontrar um “bom partido” e casar-se com ele.
Hospedada em casa de um tio, Anna namorou castamente, durante três anos, o filho de um açougueiro especializado em carne de caça, fez-se caixeira de uma loja de roupas, desfilou esporadicamente como modelo.
Em 1950, teve uma fugacíssima aparição de 29 segundos num filme de Totò, Tototarzan, mas na ficha técnica o grande destaque foi para outra jovem de invulgar beleza, com o nome artístico Sofia Lazzaro, mais tarde Sofia Loren.
Se o mundo do cinema não lhe abriu as portas, nesse ano de 1950 a vida de Anna Fallarino começou a mudar. Conhece Giuseppe Drommi, a quem chamavam Peppino, um jovem industrial de 28 anos, filho de uma abastada família romana. O casamento dura uma década de dolce vita, sem amor, nem filhos.
Numa festa de arromba em Cannes, Anna é cortejada por um dos maiores playboys do seu tempo, Porfirio Rubirosa, e a noite acaba numa cena de pugilato. Ajudando aos murros o seu amigo Peppino, e enfurecido pelos avanços do sedutor lendário, encontrava-se o descendente de uma das mais antigas e mais ricas famílias italianas, Camillo Casati Stampa di Soncino, conhecido por “Camillino”.
Poucos meses depois, Camillino inicia junto da Santa Rota os procedimentos para anulação do seu primeiro casamento com uma antiga bailarina napolitana, que reclama uma soma astronómica e lhe impõe a singular exigência de um dia ser sepultada no histórico mausoléu da família Casati. “Nasci entre os pobres, quero acabar debaixo de terra entre os ricos”, terá dito a ex-marquesa. Anna e Camillo casam-se civilmente na Suíça, em 1959, e o matrimónio religioso tem lugar dois anos depois.
Logo na noite de núpcias, o marquês revela as suas inclinações, muito peculiares. Convida um camareiro do hotel a entrar no quarto de banho da mulher, paga-lhe para ter sexo com ela, na sua presença. Durante onze anos de casamento, será sempre assim.
Operários, soldados, banheiros de praia, criados de mesa, acumulam-se às centenas os encontros carnais e fortuitos, que Camillo descreve à minúcia no álbum verde, onde também arquiva fotografias bem explícitas, muitas.
Além da caça e das palavras cruzadas, não se lhe conheciam outros interesses. Irascível e colérico, Camillino era famoso por humilhar e agredir os empregados das suas inúmeras propriedades, entre as quais a deslumbrante Villa San Martino, em Arcore, construída no século XVIII pela família Casati sobre as ruínas de um antigo mosteiro beneditino; ou a Ilha de Zannone, no mar Tirreno, onde o marquês afugentava a tiros de caçadeira os mareantes que ousavam aproximar-se da praia em que ele, a mulher e os seus convidados se entregavam ao nudismo e, dizem, a inconfessáveis orgias.
Num dos encontros, Massimo Minoretti, um jovem de 25 anos e simpatias neofascistas, estudante boémio de Ciência Política, com um vasto currículo de conquistas femininas.
Anna apaixona-se por ele, iniciam uma relação amorosa que deixa o marquês destroçado. Camillino pondera o divórcio, mas sente-se incapaz de viver sem ela, opta pelo suicídio. Também Anna sonha com outra vida, ao lado do amor de Massimo, mas é incapaz de se libertar do marido e daquela existência de depravação e de luxo.
Numa tarde cinzenta de Agosto, Camillo regressa subitamente a Roma, vindo de uma batida de caça. Abre o armário das espingardas, escolhe uma Browning calibre 12, carrega-a com cartuchos para javali. Chama a mulher e o amante, mata-os a tiro, brutalmente. Depois suicida-se, disparando sobre a boca.
O caso apaixona a Itália dos Anos 70 e nas memórias da psiquiatra forense Mariateresa Fiumanó, prima de Anna, afirma-se que deu um impulso decisivo para a revolução de costumes naquele país.
Muitos tentaram explicar o estranho casamento dos Casati, e o seu desenlace sangrento. Emilio Servadio, um dos pais da psicanálise italiana (e também parapsicólogo e maçon esotérico…), avançará a explicação óbvia de que todos os voyeurs e masoquistas têm uma imensa vontade de controlo e domínio, e que, ao apaixonar-se pelo jovem Massimo, Anna infringira as regras do jogo impostas pelo marido, nos termos das quais podia – e devia – ter sexo com outros homens, centenas deles, mas jamais amá-los.
O jornalista e escritor Corrado Augias disse que algum prazer a marquesa terá tirado de tudo aquilo e também já se procurou atribuir o comportamento de Camillino a uma homossexualidade reprimida.
Contudo, ninguém ousou uma explicação para outro comportamento doentio, tão grave como o do marquês, o voyeurismo de todos quantos, durante meses e anos a fio, acompanharam avidamente os pormenores escabrosos do caso na imprensa sensacionalista – e, já agora, o voyeurismo de quem escreveu estas linhas, ou de quem as lê.
O advogado foi dos primeiros a chegar, não se sabe como. O testamento do marquês fazia da mulher sua herdeira universal, mas as perícias demonstraram que Anna morrera primeiro, pelo que a colossal fortuna dos Casati passou para Annamaria, filha única de Camillo, fruto do primeiro casamento. O advogado oferece-lhe os seus préstimos.
A tia de Annamaria pede ao tribunal para ser nomeada tutora da sobrinha menor, mas esta declara ao juiz, surpreendentemente, que quer ficar à guarda do senador Giorgio Bermasco, futuro ministro de Andreotti, e de Cesare Previti, o advogado que, não se sabe como, foi dos primeiros a chegar ao local do crime. A herdeira foge de Itália e do assédio dos paparazzi, casa-se com um conde de nome pomposo, fixa-se em Brasília.
Na Primavera de 1974, o advogado telefona-lhe para Brasília informando-a de que, para pagar os direitos sucessórios, conseguira vender a um belíssimo preço a Villa San Martino, recheio incluído: uma biblioteca de mais de dez mil preciosos volumes, quadros dos séculos XV e XVI, mobiliário antigo.
À distância, Annamaria não se apercebe de que o valor da compra, 500 milhões de liras, mal chegava para adquirir um bom apartamento no centro de Milão. Valor que, aliás, não será pago de imediato, mas em suaves prestações e, durante seis anos, Annamaria terá ainda de suportar as taxas de propriedade.
O comprador instalara-se de imediato na Villa San Martino e no seu parque imenso, uma das mais belas residências de Itália, descrita na escritura de venda como “casa de habitação, com circundantes construções rurais e terrenos de uso diverso.
Pouco depois, essa “casa de habitação”, pela qual o comprador pagou 500 milhões de liras, seria avaliada e dada como garantia de um empréstimo no valor de 7 biliões e 300 milhões de liras.
O advogado Cesare Previti, que tratou do negócio, foi nomeado em 1994 ministro da Defesa de um governo chefiado pelo comprador e proprietário da Villa San Martino, que aí fez erigir um espaventoso mausoléu pessoal, com cem toneladas de travertino e um sarcófago em mármore rosa. O seu nome? Silvio Berlusconi, é óbvio.
Silvio
morreu há dias – e foi velado na Villa San Martino, a casa que comprou nas condições que atrás vimos.
O féretro de Il Cavaliere saiu de lá, rumo à Catedral de Milão, onde se rezou missa pela sua alma em cerimónia imponente. Dentro do Duomo, mais de dois mil convidados, entre membros da família e altas figuras da sociedade e do Estado italianos.
O funeral seria oficiado, segundo o rito ambrosiano, pelo arcebispo de Milão, Mario Delpini, que proferiu uma homilia sobre o sentido da existência humana – e terrena -, na qual aludiu a alguns passos da preenchida vida do falecido, os seus negócios, a sua passagem pela política, e depois concluiu dizendo: “É isto que podemos dizer sobre a vida de Silvio Berlusconi – “foi um homem que agora irá estar na presença de Deus””.
Até na morte foi controverso. Pese ter sido apreciada pela família, segundo parece, a homilia de Delpini gerou celeuma, com Il Fatto Quotidiano a assinalar que ela fora “gélida”, o Il Foglio a chamar-lhe “uma grande homilia”, o Corriere della Sera a enaltecer “um retrato perfeito, despojado de qualquer hipocrisia”, o Il Messagero a fazer notar que nela avultavam traços do pensamento teológico de Luigi Giussani, do Comunhão e Libertação.
Nada disso impediu, como é evidente, que uma multidão imensa tivesse feito questão de se despedir in loco daquele que foi, sem dúvida, o homem público mais marcante da Itália das últimas décadas.
No caminho de ida e volta para San Martino, milhares de pessoas ao longo da estrada, e, na praça do Duomo de Milão, mais de 15 mil pessoas entoaram cânticos anticomunistas e C’é solo un presidente!. “Só existe um presidente” – ele, Berlusconi, único, irrepetível.
Os poderes do Estado, de seu lado, decretaram um dia de luto nacional, com bandeiras a meia-haste, e à missa milanesa, celebrada por um batalhão de padres (o citado Mario Delpini, arcebispo de Milão; Gianatonio Borgonovo, arcipreste da catedral; Francesco Pesce, capelão da Câmara dos Deputados; Emil Paul Schrring, núncio apostólico em Itália; Giandomenico Colombo, capelão privado da Villa San Martino), compareceram tutti quanti da actual política transalpina: o presidente Sergio Mattarella, a primeira-ministra Meloni, os vice-primeiros-ministros Salvini e Tajani, o presidente da Câmara dos Deputados, o presidente do Senado, a presidente do Tribunal Constitucional, quatro antigos primeiros-ministros (Mario Draghi, Paolo Gentiloni, Mario Monti, Matteo Renzi), 19 ministros e 2 secretários de Estado. Na impressionante lista dos convidados, Viktor Orbán, claro, diversos embaixadores, o presidente da FIFA, o inefável Infantino, os presidentes do Turim FC, da Juventus, do Inter de Milão, jogadores de futebol, outras celebridades.
Tudo para homenagear a memória de Silvio Berlusconi, um homem que tem uma longa, longuíssima, entrada na Wikipédia (em língua inglesa), através da qual poderemos ter uma boa noção, pálida ainda assim, das marcas que foi deixando neste mundo que é o nosso: as primícias como cantor em cruzeiros, a entrada na televisão, em 1973, o imobiliário e a Fininvest, os triunfos na política, que usou e manipulou para se eximir aos mil e um processos judiciais de que foi alvo.
Também as relações com a Líbia e com a Rússia, a paixão por Putin, muito correspondida, mas igualmente com Netanyahu e com Lukashenko (e com Bettino Craxi, não esqueçamos), o eurocepticismo, os choques e as picardias com Angela Merkel, as comparações com Trump. Falou um dia do “bronzeado” da pele de Barack Obama, era contra o acolhimento de migrantes e refugiados, profundamente homofóbico, desbragadamente sexista.
Processos, condenações, amnistias, gritantes conflitos de interesses, a guerra com a revista The Economist (à qual chamava “The Ecommunist“), as suspeitas de contactos com a Máfia, nunca esclarecidas, a proclamação da superioridade do Ocidente, no rescaldo dos ataques às Torres Gémeas.
Para completar a pintura, o episódio em que emitiu um decreto proibindo a família de Eluana Englaro, em coma há 17 anos, de praticar a eutanásia, alegando que Eluana ainda podia ter filhos e todos os meses menstruava. Inúmeras anedotas, quase nenhumas com graça, sucessivas gafes, a afirmação inenarrável de que o social-democrata Martin Schulz deveria fazer de guarda de um campo de concentração num filme sobre o nazismo.
Ou a tirada de que Mussolini fora um ditador benigno, que não matava os opositores políticos, só os mandava “de férias”, em contraste com Mao Tsé-tung, que mandava cozer crianças para fertilizar os campos com os seus cadáveres.
Dois dias depois do terramoto de L’Aquila, em 2009, disse que os que então ficaram sem casas deveriam encarar a experiência como um fim-de-semana no campismo e o L’Osservatore Romano chegou a emitir uma nota condenando a forma como Berlusconi falava em público, prenhe de obscenidades e blasfémias. O Rubygate, que envolveu uma dançarina do ventre marroquina de 17 anos, foi só um dos muitos escândalos sexuais em que se viu envolvido, e que não se cingiram, longe disso, às festas do “bunga-bunga“.
Num relatório sobre tráfico humano do Departamento de Estado norte-americano, de 2011, avalizado por Hilary Clinton, o nome de Berlusconi surge citado como tendo estado envolvido na “exploração sexual de uma criança marroquina”. O seu nome também surge abundantemente nos Panama Papers, é evidente.
Ao contrário do que era sua intenção, o corpo não foi sepultado no faraónico mausoléu que mandara construir em San Martino. Razões teológicas, coisas de Igreja, parece, mas com Silvio e com Itália nunca nada é claro. Após a missa solene, o féretro foi transportado para o Tempio Crematorio Valenziano Panta Rei, em Valenza.
As cinzas daí sobrantes seriam depositadas numa urna na Capela de San Martino, perto das sepulturas dos pais de Silvio, Luigi e Rosa, e da sua irmã, Maria Antonietta.
As cerimónias de Milão mostraram, no fundo, que Silvio não faleceu, que a sua sinistra presença continua a fazer-se sentir, e a condicionar, uma nação inteira e os seus máximos dirigentes. Dir-se-á que esse é problema somente dos italianos, que apenas a eles diz e dirá respeito. Sucede, porém, que há muitos iguais a Berlusconi, ou até piores do que ele, e todos os dias nos chegam notícias sobre aquilo a que tem levado a tão tonta ideia, perigosíssima, de que a política é coisa distinta da ética.
Em Villa San Martino, havia um ritual, o jantar de família nas segundas-feiras, aos quais compareciam os filhos de Il Cavaliere – dois do primeiro casamento, três do segundo -, a sua mulher e dois ou três amigos de longa data, da máxima confiança.
Berlusconi, diz o Financial Times, ficou muito impressionado com as lutas fratricidas na família Agnelli e, para evitar algo parecido, assegurou convenientemente o futuro do seu império. Ainda assim, já se ouvem rufar os tambores, surgem sinais de potenciais conflitos dentro da famiglia.
É possível, talvez provável, que um dia, daqui a uns anos, a Villa San Martino volte a mudar de mãos, que apareça um comprador igual a Silvio Berlusconi, ou pior.
Poucos como ele terão colocado de forma tão intensa, tão permanente, tão gritante, a questão das relações entre moral e política. Estar na sua partida, saudar a sua memória, não é um acto político, mas sobretudo, acima de tudo, um gesto moral, ou imoral, pelo que significa de enorme desprezo pelas inúmeras vítimas que Silvio foi fazendo numa vil trajectória de décadas, rumo ao poder e ao asco.
Muitos dos que compareceram ao seu funeral, ou que enviaram mensagens de condolências, fizeram-no por razões “de Estado”, homenageando um governante que, bem ou mal, fora democrática e sucessivamente eleito por um povo em liberdade.
Tudo isso é certo, mais do que evidente, mas tudo isso coloca também o problema de sabermos se um ser humano tão abjecto, que tanto e tão barbaramente desprezou os seus semelhantes, merece ter honras e homenagens (exceptuando, claro, as promovidas pela família e pelos amigos chegados). As cerimónias de Milão mostraram, no fundo, que Silvio não faleceu, que a sua sinistra presença continua a fazer-se sentir, e a condicionar, uma nação inteira e os seus máximos dirigentes.
Dir-se-á que esse é problema somente dos italianos, que apenas a eles diz e dirá respeito. Sucede, porém, que há muitos iguais a Berlusconi, ou até piores do que ele, e todos os dias nos chegam notícias sobre aquilo a que tem levado a tão tonta ideia, perigosíssima, de que a política é coisa distinta da ética. Quando vemos uns jovens imbecis do Partido Conservador britânico a divertirem-se em festas durante a pandemia, desprezando e gozando com as regras do confinamento, quando vemos Bolsonaro, apertado pela Justiça, a pedir desculpas pelas barbaridades que disse sobre as vacinas (Brasil, mais de 700 mil mortos pela covid), mas também quando vemos o nosso primeiro-ministro a sorrir ao lado de Viktór Orbán, num jogo de futebol (!), perguntamo-nos, perplexos, se deixou de haver moral na política do nosso tempo. Pelos vistos, deixou – porque nós deixámos.
P.S. – A primeira parte deste texto, numa versão ligeiramente diferente e com um outro título (“De olhos bem abertos”), já foi publicada há uns anos nas páginas deste jornal. Com o consentimento da Direcção, decidi republicá-la por ocasião da morte de Il Cavaliere, com o propósito de relembrar uma faceta dos actuais populistas de que raramente falamos: a sua corrupção escandalosa. Vejam-nos todos, um a um: sem excepção, todos têm mansões opulentas, fortunas incalculáveis, os filhos, enteados e genros como colaboradores próximos e dilectos. Esse é o traço comum a todos os populistas, sejam de esquerda ou direita. Infelizmente, e fazendo o jogo deles, atemo-nos às barbaridades do seu verbo e às suas tiradas abjectas, à cortina de fumo com que ocultam a sua podridão imoral, a roubalheira pegada. Era tempo, era mais do que tempo, de centrarmos o combate aos populistas, não na sua “ideologia” ou nas suas motivações e palavras, mas na imoralidade dos seus comportamentos, públicos e privados.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Hoje falamos de água por duas razões distintas, ambas aquosas: a primeira, porque estive no casamento dos queridos Rita e Pedro, em Montemor, onde um grupo de cante alentejano entoou, e muito bem, o clássico, inevitável, Dá-Me Uma Gotinha d’Água; a segunda razão prende-se com o facto, esse bem sabido e bem triste, de a Rússia ter destruído a barragem de Nova Kakhova, na região de Kherson, para dificultar o avanço das tropas ucranianas.
Enquanto escrevo, há notícia do rebentamento de uma segunda barragem, esta ao longo do rio Mokri Yaly, a oeste de Donetsk, o que significa que os russos estão a meter água por todos os lados, recorrendo a métodos bélicos tão clássicos e inevitáveis como aquela música transtagana.
Há dias, Bruno Cardoso Reis, sempre sabedor, recordava o uso das águas como arma de guerra, citando três casos: “A Holanda rebentou os seus diques em 1672 para parar as tropas invasoras de Luís XIV.
A China fê-lo no rio Amarelo, em 1938, para travar os invasores japoneses. A União Soviética fê-lo na região de Zaporizhzhia para tentar travar a invasão nazi em 1941″ (“A barragem, a falácia do cinzento e a ofensiva da Ucrânia”, Observador, de 10 de Junho de 2023).
Sobre esta matéria, li há pouco um livro que recomendo, Guerre et eau. L”eau, enjeu stratégique des conflits modernes (Paris, Robert Laffont, 2021), da autoria de Franck Galland, um dos maiores especialistas europeus sobre as questões geopolíticas, estratégicas militares ligadas à água, fundador do Aquasureté e perito consultor do Ministério da Defesa de França.
Da leitura desse livro apercebemo-nos de que, ao longo da História, as águas suscitaram três problemas militares distintos, ainda que interligados: o primeiro é o mais imediato e mais óbvio, o da água como problema logístico para as tropas em campanha; o segundo decorre do uso das águas como arma de guerra ou instrumento de combate, e o terceiro, enfim, o mais vasto e mais importante de todos, de mais longo alcance, é o da água, ou da sua falta, como causa de conflitos e de guerras.
Ariston Men Udor — a frase de Píndaro, que à letra poderíamos traduzir como “o primeiro elemento é a água” ou, mais poeticamente, “a água é o princípio de tudo”, foi inscrita, não por acaso, numa das estações de bombeamento de águas subterrâneas que durante a Segunda Guerra, e na sequência do desembarque na Normandia, os Aliados fizeram construir no Norte de França. O trabalho foi levado a cabo — neste caso em Saint-Gabriel-Brécy — pelo 13th Airfield Group, dos Royal Engineers britânicos.
Um dos oficiais desse grupo, por certo mais culto e versado nas literaturas clássicas, lembrou-se de colocar à entrada da estação das águas aquela divisa de Píndaro, também presente nas salas de banho romanas de Bath, em Inglaterra: Ariston Men Udor, “a água é o princípio de tudo”, nunca o esqueçamos.
A água foi uma das principais preocupações na logística do Dia D, pois era essencial que a operação não fracassasse por falta de um elemento tão básico e tão essencial como a água, fosse para dessedentar as tropas exaustas, fosse para garantir a sua higiene, fosse para o serviço dos hospitais de campanha, fosse, enfim, para refrigerar as máquinas de combate.
No final do mês de Junho de 1944 tinham desembarcado na Normandia qualquer coisa como 850 mil homens e 150 mil veículos. O momento crucial, do ponto de vista operacional e logístico, foram as primeiras 48 horas subsequentes ao desembarque, quando, de uma assentada, como um relâmpago, 72.515 britânicos, franceses e canadianos e 57 mil norte-americanos desaguaram numa extensão de areal de 80 quilómetros, em território hostil, sob fogo nazi.
Teria sido uma tragédia, um desastre imenso, se aquela imensa mole de gente ficasse parada no terreno, à mercê do inimigo, por falta de combustível e de alimentos, mas sobretudo, acima de tudo, por falta do elemento mais primordial e vital de todos: água para beber.
Não podendo correr riscos, pois ninguém poderia prever ao certo o ritmo a que se processaria o avanço das tropas anglo-americanas, nem ninguém poderia prever ao certo se encontrariam fontes de água potável em território francês (até porque os alemães as poderiam ter envenenado ou contaminado), o comando dos Aliados mobilizou quantidades astronómicas do líquido precioso, levadas pelas Water Transport Companies umas vezes nos navios que carregavam as tropas, outras em navios-tanques especialmente adaptados para o efeito.
Prepararam-se portos artificiais, os famosos Mulberry, para acolher carros de combate e munições, mas também gigantescos depósitos de água, capazes de darem de beber a milhares de soldados, cujas necessidades básicas foram estimadas em um galão por dia (4,546 litros); para não correr riscos, duplicou-se a carga para dois galões diários por cada soldado.
E, a acrescer a tudo isso, muita água para os hospitais e para as enfermarias de campanha, cujo consumo médio por dia era ainda maior: 10 galões de água – ou seja, 45 litros – por cama.
Como se não bastasse, surgiram habituais imprevistos: a dada altura, devido ao calor de Verão nos solos calcários normandos, foi necessário regar abundantemente as pistas de aviação; sem água, sem muita água, não teriam existido aviões no ar nos Dia D e seguintes.
Contou-se também, é óbvio, com os recursos hídricos existentes em França, pois teria sido impossível garantir o avanço dos Aliados até Paris ou até à Alemanha apenas com água trazida do lado de lá da Mancha.
Por isso, e muito antes do Dia D, procedeu-se a um levantamento minucioso e exaustivo dos aquíferos gauleses, trabalho levado a cabo por uma equipa liderada por dois homens: o tenente-coronel W. B. King, veterano dos geólogos militares da Primeira Guerra, e o major Frederick Shotton, estudante de Geologia em Cambridge que se voluntariou para a linha da frente.
Graças a eles foi possível elaborar 25 cartas extremamente precisas de todos os recursos hídricos existentes no solo e no subsolo entre Calais e Cherburgo, coroando o esforço feito desde 1940 pelo Inter-Services Topographic Department (ISTD), com o apoio de geógrafos, geólogos e técnicos franceses da Resistência.
Quando hoje vamos ao Ashmolean Museum, em Oxford, um dos museus mais belos do mundo, nem sequer sabemos que nas suas caves funcionou este serviço topográfico secreto e que aí existia, nas vésperas do Dia D, uma gigantesca maquete das costas da Normandia (como também não nos apercebemos de que um outro serviço congénere, este ainda mais secreto, o SOE – Special Operation Executive, esteve sedeado, durante a guerra, no Museu de História Natural de Londres).
A água, de facto, desempenhou um papel decisivo no desenrolar do conflito de 1939-1945 e o êxito da guerra-relâmpago dos alemães na Polónia, em França, no Norte de África é indissociável do esforço que, desde 1937, vinha sendo feito por Ernest Kraus, professor da Universidade de Munique, sob a égide do qual foi criado um grupo técnico de geologia militar que daria lugar aos Wehrgeologen-Gruppen, os quais, com rigor germânico, fizeram o levantamento de todos os terrenos a conquistar pelo Reich.
Quando, em Fevereiro de 1941, o quartel-general nazi decide enviar tropas para auxiliar os italianos, em guerra com os britânicos no Norte de África, logo decide também integrar nessa força uma unidade de geologia militar.
A Wehergeologenstelle 12, explica-nos Franck Galland no livro atrás citado, foi absolutamente crucial para garantir o êxito do Afrika Korps no Egipto e na Líbia, e, não por acaso, estava colocada na dependência directa de Rommel, um homem que se apercebeu, desde o início da guerra no deserto, que ali, mais do que em qualquer outro lugar, a água era uma das chaves para o sucesso ou para a derrota.
Anos depois, num livro escrito em 1952, onde se faz um balanço da campanha nazi no deserto, o general Alfred Toppe afirmou que nessa campanha um Panzer necessitava de 50 litros ao dia para percorrer 100 quilómetros diários nas areias de África e que a sua tripulação de três homens precisava, no mínimo, de 22 litros de água potável por dia.
Para alcançar esse objectivo, as Divisions-Wasserbau-Kompanie deveriam assegurar um mínimo de 120 metros cúbicos de água por dia: 100 de água potável e 20 de água para refrigerar os motores dos carros de combate. Quando o calor aumentava, cresciam as necessidades de água: cinco litros diários para cada soldado, um litro para arrefecer os motores dos camiões e dois litros para refrigerar os veículos blindados.
Além de companhias especializadas na captação e na distribuição de água, compostas por 75 camiões, cada qual com 85 jerricãs de 20 litros, criou-se uma unidade pioneira, uma companhia especializada na dessalinização de água por destilação (Kompanie für Wasserdestillation).
O mais curioso de tudo é que, segundo nos diz Franck Galland, aquele livro do general Toppe foi uma autêntica “bíblia” para os americanos quando estes desencadearam, em 1991, a Operação Tempestade no Deserto, a qual seguiu pari passu os ensinamentos de Rommel e dos seus generais, especialmente na questão vital dos recursos hídricos.
Questão tão vital quanto, no decurso da batalha do Norte de África, os ingleses, para dificultarem o avanço dos alemães pelo Egipto, tinham envenenado os poços de água com hidrocarbonetos, uma técnica impiedosa mas que tem sido usada em inúmeros conflitos.
E aqui entramos na segunda dimensão belicista do H2O: não já não a da importância da água para a logística militar, mas a do uso da água como arma de combate, tal qual os russos agora estão fazendo com as barragens da pobre Ucrânia.
Diga-se, em abono da verdade, que é táctica bem antiga: em 1914, e para não ir mais longe, as defesas franco-belgas abriram as eclusas de Furnes e de Noordvart e provocaram uma inundação gigantesca para travar ou retardar o avanço das tropas germânicas.
O caso mais conhecido seria, porém, o dos Dambusters (“destruidores de barragens”) do 617.º Esquadrão da Royal Air Force. Há um par de meses, nas páginas do Expresso, escrevi o obituário de um dos elementos desse esquadrão lendário: Johnny Johnson, falecido em Dezembro passado, aos 107 anos, participante na famosa Operação Chastise, uma acção ultra-secreta que destruiu ou danificou três barragens nos rios Eder, Möhne e Sorpe vitais para alimentar a indústria do Ruhr e o esforço bélico nazi. Em apenas duas noites, 16 e 17 de Maio de 1943, com uma enorme audácia, os aviadores da RAF conseguiram lançar no coração das barragens germânicas um engenho poderoso e letal, as “bombas saltitantes”, concebidas pelo engenheiro Barnes Wallis.
O comandante do grupo, Guy Gibson, era um jovem que aos 24 anos já era considerado um veterano de guerra, com mais de 170 missões no currículo e, dos 133 homens envolvidos na Operação Chastise, de nacionalidades diversas (britânica, australiana, canadiana, neozelandesa, americana), 53 morreriam em combate e outros três seriam presos.
Dos 19 bombardeiros Lancaster que se fizeram aos ares, oito seriam abatidos e, como dano colateral, no rebentamento das barragens morreriam cerca de 1600 civis, a maioria dos quais soviéticos presos e usados como mão-de-obra escrava pelos nazis. Quando ordenou a destruição das barragens ucranianas, Vladimir Putin sabia o que fazia e, como sempre, estava atento à História.
A História mostrou-lhe — e mostra-nos — diversos exemplos de uso da água como arma de combate: também no decurso da Segunda Guerra, Chiang Kai-chek mandou dinamitar os diques do rio Amarelo para travar a progressão do exército japonês, com isso provocando inundações numa área de 50 mil quilómetros quadrados e dezenas de milhares de mortos.
A História mostra também que, no Vietname, os americanos destruíram centenas de diques e de barragens para dificultarem os movimentos dos vietcongues, e que essa acção foi tão ou mais decisiva do que a das bombas incendiárias e dos ataques de napalm.
Anos depois, no final dos anos 70, numa conferência humanitária internacional, o representante do Vietname do Norte insistiria, vezes sem conta, na necessidade de proibir aquelas tácticas de “guerra hidrológica”, as quais, na opinião do diplomata vietnamita, tinham sido mais lesivas para o seu país e o seu povo do que uma bomba de hidrogénio.
No Vietname, os americanos utilizaram, parece que sem grande sucesso, uma outra técnica aquosa, desenvolvida desde os anos 40 e de que já aqui falei (“A Glória da Manhã”, DN de 20/11/2022): a criação ou manipulação das nuvens para fins militares.
Durante a Segunda Guerra, os cientistas Irving Langmuir e Vincent Schaefer colaboraram com a General Electric num programa para criar nuvens artificiais para dissimular o armamento, o qual se estenderia pelo pós-guerra e daria azo, em 1947, ao Projecto Cirrus, com vista a alterar a trajectória dos furacões e tufões.
Durante a Guerra Fria, americanos e soviéticos gastaram fortunas em projectos militares para controlar o clima através das nuvens, e em 1957 o comité para esse efeito nomeado pelo presidente dos EUA fez uma afirmação lapidar, infelizmente actual: “Alterar o clima pode ser uma arma mais poderosa do que a bomba atómica.”
No decurso da Operação Popeye, em 1966, a América despejou toneladas de químicos sobre os céus do Laos e outros tantos no Vietname e no Camboja para aumentar as chuvas e antecipar a chegada das monções, com vista a perturbar os movimentos do inimigo. Não foi uma loucura do passado: em 1999, a Organização Meteorológica Mundial anunciou que 24 países levavam a cabo mais de uma centena de projectos de alteração do clima.
A China, sempre ela, está na vanguarda do mal, sendo o país que actualmente mais investe na manipulação climática, cerca de 40 milhões de dólares ao ano. Em 2008, por ocasião das Olimpíadas de Pequim, foram definidas 20 zonas em redor da capital chinesa nas quais se fizeram concentrar as nuvens e as chuvas, longe da cerimónia de inauguração dos Jogos.
E, um ano depois, por ocasião do 60.º aniversário do Partido Comunista Chinês, foram disparados para o ar mil foguetes contendo iodeto de prata, para que a chuva não ensombrasse as festividades e a parada militar. Bonito.
Resta-nos a terceira dimensão bélica do H2O: a água como fonte e causa de guerra. Desde o final dos anos 90, quando os efeitos do aquecimento global começaram a tornar-se mais evidentes, inúmeros especialistas garantem que os próximos grandes conflitos serão travados em disputa pelos recursos escassos, como alimentos e, sobretudo, água.
O mais curioso de tudo é que foram os maiores poluidores os primeiros a terem consciência disso: em 2003, Peter Schwartz, antigo responsável pelo departamento de prospectiva da Shell e consultor da CIA, escreveu um relatório para o Pentágono, em conjunto com Doug Randall, no qual se afirmava que a energia, os alimentos e a água irão, a breve trecho, substituir a ideologia, a religião e o orgulho nacional como causas preponderantes dos conflitos humanos.
Hoje isso parece uma banalidade, mas o facto é que ainda não a compreendemos em todo o seu alcance. Resistimos a encarar aquilo que nos mostra, por exemplo, o Atlas Mundial da Água – Defender e Proteger o Nosso Bem Comum, de David Blanchon (Guerra & Paz, 2022), como resistimos a acreditar nos números da OCDE, que nos dizem que em 2050 40% da população mundial, cerca de 3,9 mil milhões de pessoas, viverá em regiões afectadas por stresse hídrico; ou que nos dizem que em 2050 a procura por água aumentará 55% relativamente ao ano 2000.
É estranho, para dizer o mínimo, que aqui, neste canto da Europa, continuemos a ignorar ou, pelo menos, a não prestar a atenção devida a coisas decisivas que se passam do outro lado do mundo.
Entre elas a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), fundada em 2001 pela China, pela Rússia, pelo Cazaquistão, pelo Quirguistão, pelo Tajiquistão e pelo Usbequistão. Já antes, muito antes, em 1996, tinha sido criada uma organização chamada Cinco de Xangai.
E, mais decisivamente ainda, em 9 de Julho de 2017 a Índia e o Paquistão, vencendo as suas históricas dissidências, passaram a integrar a OCX. Enquanto aqui pelas Europas continuamos a maldizer a NATO e a América, a Oriente surgiu um colosso, detentor de 20% do PIB mundial e de 42% da população desta Terra.
Pois bem, em Julho de 2019, enquanto por cá andávamos entretidos com os amores da Georgina & Ronaldo, ou outra coisa que o valha, os membros da OCX assinaram a declaração de Bisqueque (capital do Quirguistão), na qual se reconheceu que nos últimos 20 anos a disponibilidade de água por habitante tinha diminuído de uma forma dramática em muitos dos países da organização, reduzindo-se em 14,4% no Cazaquistão, em 22,1% no Quirguistão, em 33,4% no Tajiquistão, em 24,3% no Turquemenistão e em 25,7% no Usbequistão. Ou seja, e em suma, a Ásia Central encontra-se em profundo stresse hídrico e, pasme-se, 60% da sua superfície é já hoje desértica.
Lembremo-nos do mar de Aral, que nos anos 60 — já no nosso tempo! — era duas vezes o tamanho da Bélgica e em poucos anos esfumou-se, desapareceu do mapa, perdendo nove décimos da sua área, fruto da criminosa e estúpida política da URSS. Em poucos anos, repete-se, extinguiu-se um lago de água salgada com o dobro do tamanho da Bélgica.
Na Ásia Central, insiste-se, 60% da terra é já desértica e dois terços da população de uma vastíssima região depende a 90% da água trazida por apenas dois cursos de água, o Amur Dária e o Sir Dária. Sucede que as nascentes desses dois rios se encontram no Quirguistão e no Tajiquistão, a dupla de países “hidro-dominantes” da Ásia Central.
A água é vital não apenas para o consumo ou a higiene humana, mas também para as hidroeléctricas e para o fornecimento de energia, pelo que se pressentem já conflitos grandes, terríveis, em torno dos rios e dos escassos lagos.
A construção pelo Tajiquistão da monumental barragem de Rogun está já a suscitar enormes temores nos países vizinhos, sendo essa a causa da tensão patente, insanável, entre o Tajiquistão e o Usbequistão, que teme, e bem, que a barragem venha a destruir as culturas de algodão usbeques, fundamentais para a economia do país.
Mais perto de nós, a Grande Barragem do Renascimento Etíope irá levar certamente, mais cedo ou mais tarde, a um grave conflito entre o Egipto, a Etiópia e o Sudão, e se quisermos vir ainda mais perto, mesmo que sem contornos tão belicistas, lembremos o que aconteceu entre Portugal e Espanha por causa da seca do ano passado.
Uma notícia de há poucas semanas: em Espanha, o passado mês de Abril foi o mais quente desde que existem registos e as barragens do país vizinho estão a menos de 50% da sua capacidade de armazenamento; em 2022 choveu em Espanha menos de 80% do que seria normal, mesmo numa época de seca controlada.
As bacias hidrográficas que afectam Portugal estão assim: a do Tejo, a 61% da sua capacidade; a do Douro, a 69%, e a do Guadiana, imagine-se, a 34% da sua capacidade (cf. Expresso, de 10/5/2023).
Alguém de bom senso pode negar que, mais cedo ou mais tarde, iremos ter graves conflitos diplomáticos com Espanha por causa da água? Não seria mais prudente e avisado começarmos já a preveni-los? Não deveríamos estar atentos à evolução do regadio em Espanha, que consome 80% de toda a água das suas barragens?
“Entre pedras e pedrinhas/Alguma gota há-de haver”, assim diz, esperançosa, a letra da Gotinha d’Água, a música com que começámos estas linhas. A realidade, porém, mostra-nos outra coisa bem diferente: por este andar, qualquer dia não teremos água nem sequer debaixo de pedras e de pedrinhas.
Razão para a pouparmos e gastarmos melhor. Infelizmente, quase dois mil milhões de litros de água perdem-se em Portugal antes de chegar ao consumidor: dos cerca de 8,2 mil milhões de litros de água captados para consumo humano, apenas 1,94 mil milhões chegam às torneiras dos portugueses; o desperdício nas condutas daria para abastecer um milhão de pessoas; cerca de 25% da água que passa nas condutas de abastecimento em Portugal é desperdiçada (TSF, de 26/8/2022). Melhorar o abastecimento de água e combater o seu desperdício não deveria ser uma aposta de todos?
Num país ameaçado pela seca, se um quarto da água se perde nos nossos canos, melhorar as condutas e a rede não deveria ser uma prioridade das prioridades para os financiamentos PRR e outros fundos congéneres?
Perguntas que ficam no ar, ou no mar, e que decerto se perderão no caudal das notícias do dia-a-dia, na espuma dos casos e casinhos de que se fazem as misérias do nosso quotidiano. Aqui as deixo, porém, na esperança de que água mole…
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
A história é conhecida, ou assim parece. Todos ouvimos falar do caso de Hiroo Onoda, o soldado japonês que passou 30 anos escondido nas selvas das Filipinas, julgando que a guerra, a 2ª Guerra, não terminara: só se renderia em 1974, para espanto do mundo e da História.
Onoda escreveu uma autobiografia – ou, melhor dito, uma narrativa dos seus anos de guerra – e, mais recentemente, o realizador alemão Werner Herzog escreveu um relato da sua vida, que acaba de ser traduzido e publicado entre nós na novel e excelsa chancela Zigurate, de Carlos Vaz Marques (O Crepúsculo do Mundo, 2023; declaração de interesses: no passado dia 5, em conjunto com o Pedro Mexia, fui apresentar esta obra à Feira do Livro).
A história bizarra de Hiroo Onoda foi também alvo, como é óbvio, da atenção do cinema e objecto de vários filmes: uns de comédia, com Terence Hill e Bud Spencer (Quem Encontra um Amigo, Encontra um Tesouro, de 1981), outros mais sérios, com destaque para o recente Onoda: 10.000 Noites na Selva, do francês Arthur Harari, por cá estreado o ano passado com grande aplauso da crítica.
Também a TV se interessou pela história, recriando-a em algumas séries, e – informa-nos a Wikipédia -, em 1981 foi até lançado um álbum musical, Nude, da autoria da banda inglesa Camel, inteiramente inspirado nas aventuras e desventuras do soldadito nipónico.
O que menos se sabe, porque menos se fala, é que o último filme de Josef von Sternberg, A Saga de Anatahan, de 1953, aborda um tema parecido, contando a história de 12 marinheiros japoneses que, em Junho de 1944, foram deixados sós numa ilha do Pacífico, onde permaneceram durante sete anos.
A fita baseia-se num livro do escritor Michirô Maruyama, um dos sobreviventes dessa saga, sobre a qual ainda hoje pairam muitas histórias, a mais conhecida das quais – com um fundo de verdade – assevera que os resistentes nipónicos eram liderados por uma mulher, Kazuko Higa, que vivia nos confins da ilha com um harém de cinco militares do Sol Nascente. O mundo é um lugar estranho.
Existiram muitos casos como estes, histórias de soldados japoneses que se recusaram a aceitar a derrota do seu país e a perda do poder divino do imperador: atemorizados pela propaganda de guerra, que dizia que os americanos tratavam barbaramente os seus presos, o sargento Masashi Ito e o soldado Bunzo Minagawa refugiaram-se nas florestas de Guam quando esta ilha foi tomada pelos Aliados em 1944 – aí permaneceram durante 16 anos, em condições miseráveis, e só foram capturados em Maio de 1960.
Quando lhes perguntaram se não tinham recebido notícias da derrota do Japão, enviadas por milhares de panfletos lançados a partir dos céus, responderam que tinham julgado que tudo não passava de uma mentira da propaganda yankee, o mesmíssimo argumento que Hiroo Onoda usou para justificar ter passado 30 anos em combate nas selvas das Filipinas.
Diferente foi o caso de outro soldado, Soichi Yokoi, também refugiado nas florestas de Guam durante dezenas de anos, juntamente com outros nove camaradas, que acabaram por perecer um a um, deixando-o sozinho contra tudo e todos.
Em 1952, Yokoi soube que a guerra acabara e que o seu país se rendera, mas recusou entregar-se – e aceitar a verdade – pois, por um lado, tinha vergonha de regressar a casa como um derrotado e, por outro, convencera-se de que o Japão voltaria a erguer-se das cinzas para enfrentar a América e retomar o domínio de Guam.
Viveu escondido num buraco escavado na terra, quase três metros abaixo do solo, coberto por uma densa mata de bambu e aí esteve, imagine-se, durante 28 anos, até Janeiro de 1972, quando foi descoberto casualmente por dois camponeses, que enfrentou com violência e aos quais se rendeu a muito custo.
Regressou ao Japão como uma celebridade e, compreensivelmente, tornou-se um paladino de uma vida frugal e austera, como aquela que levara metido num buraco imundo.
São muitos e variados os casos de soldados insurrectos: Teruo Nakamura, que esteve escondido no interior da Ilha de Morotai até 1974, o recordista dos foragidos, que, por não ser de etnia japonesa, mas de uma tribo aborígene, não recebeu a fama, nem os louvores concedidos a Hiroo Onoda.
Enquanto este foi tratado como um herói e recompensado com um prémio de 160 mil dólares, equivalente a 850 mil dólares ao câmbio de 2017, o aborígene Nakamura não recebeu mais do que 227 dólares, equivalentes a 1186 dólares ao câmbio de 2017.
Também bizarro foi o caso de Ishinosuke Uwano: colocado na Ilha Sacalina, acabou por ser capturado pelos soviéticos quando estes capturaram a parte sul dessa ilha, em Agosto de 1945. Levado para a Sibéria, acabou por não ser repatriado para o Japão e desde 1953 que a família nunca mais soube dele. Em 2006, soube-se que estava vivo, com 83 anos, e que se tinha fixado na Ucrânia, onde casara e constituíra família, mulher e três filhos.
Entretanto, tinha sido declarado morto pelas autoridades japonesas, pelo que, quando regressou ao seu país de origem para visitar as campas dos antepassados e para ver as cerejeiras em flor, fê-lo na qualidade de cidadão ucraniano, a terra que o próprio dizia ter passado a ser a sua.
Outros renderam-se mais cedo, mas ainda assim muito depois de a guerra ter acabado, como foi o caso de Ei Yamaguchi, refugiado na Ilha de Peleliu, que se entregou apenas em Abril de 1947, ou de Matsudo Linsoki e Yamakage Kifuku, detidos em Iwo Jima em 1949.
Mais trágico seria o caso do marinheiro Noboru Kinoshita, foragido nas Filipinas e capturado pelas autoridades deste país em 1955; pediu aos guardas prisionais que o matassem, pois dizia ter vergonha de regressar ao Japão como um derrotado. Um mês depois de ter sido capturado, enforcou-se na sua cela. Tinha 33 anos.
Na Alemanha nazi, também houve quem não aceitasse a derrota e Himmler chegou a criar a Operação Lobisomem, uma força de resistência e guerrilha que deveria operar atrás das linhas dos Aliados.
Foi sol de pouca dura. De acordo com a maioria dos historiadores, os “lobisomens” nunca foram uma ameaça séria para as tropas anglo-americanas e, apesar de terem perpetrado uma série de atentados, alguns dos quais mortais, jamais conseguiram captar o apoio da população alemã, cansada de guerra, sedenta de paz, apavorada ante o avanço dos russos e, de um modo geral, cooperante com os seus libertadores americanos e ingleses.
Para tantos casos de resistência nipónica terão militado, como é óbvio, um código moral e uma noção de honra castrense muito diferentes dos que vigoravam a Ocidente – e patentes, desde logo, no exemplo sacrificial do kamikaze -, mas também a peculiar configuração física e geográfica do teatro de guerra do Pacífico, travada em centenas de ilhas semi-virgens, com montanhas e florestas de acesso remoto.
Mais interessante do que tentar perceber o “caso” de Onoda e de outros camaradas seus, que estiveram durante décadas perdidos na selva, é compreender o processo de mitificação e heroicização que ainda hoje nos leva a julgarmos que a saga daquele japonês foi um acontecimento singular e isolado.
Como atrás se mostrou, foram muitos os japoneses que não aceitaram a derrota e a rendição, muito mais do que julgamos. Num livro apaixonante, Corações Sujos. A história da Shindo Renmei (Companhia das Letras, 2001), o jornalista e escritor Fernando Morais reconstruiu as peripécias da Shindo Renmei – ou Liga do Caminho dos Súbditos – uma organização secreta criada por imigrantes japoneses em São Paulo que se recusaram a admitir que o Japão tivesse perdido uma guerra pela primeira vez em 2600 anos de História.
A comunidade nipónica paulista dividiu-se entre uma minoria de cerca de 20%, que aceitou a derrota, e uma esmagadora maioria, cerca de 80%, que se recusou a admitir o óbvio e optou pela luta armada. Muito curiosamente, o ódio dos “vitoristas” da Shindo Renmei, os kachigumi, não se virou contra as autoridades brasileiras, mas contra a minoria dos “derrotistas”, os makegumi, logo apelidados de “corações sujos”.
Militarista e tradicionalista ao extremo, a seita semeou o caos durante um ano – sensivelmente, entre Janeiro de 1946 e Fevereiro de 1947 -, perpetrando atentados e sabotagens que fizeram 23 mortos e cerca de 150 feridos. A polícia acabaria por deter mais de 30 mil suspeitos de crimes, dos quais 381 foram condenados a penas que variaram entre um e 30 anos de prisão.
O Presidente da República chegou a assinar uma ordem de deportação de 155 dirigentes e matadores da Shindo Renmei, mas o exílio nunca acabou por ter lugar e o caso acabaria por prescrever. Ainda assim, 14 dos operacionais da seita (os tokkotais) cumpririam pesadas penas no cárcere.
A diferença dos destinos: enquanto os membros desta seita brasileira foram condenados, ostracizados, perseguidos, Hiroo Onoda regressou em glória ao seu país natal, escreveu uma autobiografia, foi objecto de filmes e série de televisão.
Quando Werner Herzog foi ao Japão, em 1997, para encenar a ópera Chushingura, declinou um convite para se encontrar com o imperador, mas pediu para se avistar com uma e uma só pessoa: Hiroo Onoda, o combatente perdido das Filipinas.
Um homem que, note-se, omitiu na sua biografia as vítimas mortais que fez nos 30 anos que passou na selva, nomeadamente entre os camponeses pobres da Ilha de Lubang, que não hesitou em abater para lhes roubar comida, gado, bens de primeira necessidade.
Seria indultado pelo Presidente Ferdinand Marcos, num gesto de boa vontade e de charme para com o governo de Tóquio, mas a triste memória das suas acções não se perdeu entre os ilhéus de Lubang, que viveram durante décadas aterrorizados por aqueles a quem chamavam “os demónios da montanha”.
Quando Onoda retornou a casa, incentivaram-no a entrar na política, a candidatar-se à Dieta, recebeu uma indemnização vultuosa pelos anos de serviço (que ele doaria ao Santuário Yasukuni).
Decidiu fixar-se uns tempos no Brasil, onde vivia o seu irmão, e fez-se criador de gado em Mato Grosso. Seria agraciado com a Medalha do Mérito Santos Dumont, pela Força Aérea Brasileira, e, em 2010, receberia o título de Cidadão Honorário da Assembleia Legislativa de Mato Grosso.
Quando morreu aos 91 anos, em 2014, de uma insuficiência cardíaca motivada por uma pneumonia, o secretário-chefe do governo japonês, e depois primeiro-ministro, Yoshihide Sunga, elogiou a sua capacidade de sobrevivência e o seu exemplo de combatente.
Num certo sentido, é inquestionável e até admirável a resistência – ou, como agora se diz, a resiliência – de um homem que viveu 30 anos no mato, em condições perigosas e deploráveis. É também admirável o seu sentido de dever e de amor à pátria, por muito surreal e bizarro que nos pareça aquele seu conceito de patriotismo.
Do ponto de vista literário ou cinematográfico, a história de Hiroo Onoda tem ingredientes notáveis: a solidão de quem abraça um ideal de vida e de morte; a fusão com a natureza e a terra, em jeito de Robinson Crusoe moderno, numa linha “anti-sistema” que vai do Thoreau de Walden ou a Vida nos Bosques aos hippies e a muitos ecologistas da actualidade.
De igual modo, a saga de Onoda presta-se a divagações filosóficas sobre o tempo ou, melhor, sobre o situar-se fora do tempo e do mundo, não sendo ao acaso que, a dado trecho da sua autobiografia (Au Nom du Japon, trad. francesa, 2021), ele afirme precisamente isso, que durante anos viveu fora do tempo, mantendo-se fiel apenas a uma coisa, essa, absoluta e sagrada: o juramento que fizera ao seu superior hierárquico, em Dezembro de 1944, a quem disse que continuaria a lutar até ao fim – e, note-se, que em circunstância alguma iria suicidar-se.
No entanto, faz parte da lenda e do mito dizer-se, por um lado, que o seu exemplo foi singular e jamais visto, uma vez que, como atrás referimos, muitos procederam como ele e até houve alguns que bateram os seus recordes de resistência.
Por outro lado, a ideia de que Onoda passou três décadas sozinho na selva é, também ela, inverídica, já que esteve acompanhado de três camaradas, o último dos quais faleceu não muito antes de Onoda se ter rendido.
Por fim, e o mais importante, não é verdade que ele e os seus camaradas tenham sido esquecidos na selva durante 30 anos, seja pelas autoridades filipinas, seja pelas japonesas. O que a sua autobiografia mostra, bem pelo contrário, é que, ao longo de décadas, e de uma forma sistemática, houve muitas dezenas, talvez centenas, de tentativas de contacto do exterior.
Até pelos ataques que frequentemente fazia aos camponeses de Lubang, sempre se soube que estava vivo, nunca se perdeu a esperança de o chamar à razão e à paz.
Assim, foram efectuadas diversas tentativas de resgate, foram lançados papéis e jornais sobre as montanhas, mostrando que o Japão perdera, foram assinadas e transmitidas ordens para que se rendesse, deixaram-se sinais e avisos nas cavernas, nos trilhos mais frequentados, junto aos cursos de água.
Em mais do que uma ocasião, o seu irmão deslocou-se de propósito do Brasil até Lubang, fez apelos ao microfone para a selva dentro, recitou poemas e cantou canções de juventude, para provar que era ele; noutras vezes, deixaram-se no campo fotografias das famílias dos soldados resistentes, umas tiradas antes de 1944, outras passados vários anos, tudo para lhes provar que a guerra tinha acabado e que era tempo de voltar a casa. Tudo em vão.
O que sucedeu a Onoda e aos seus companheiros é um assombroso estudo de caso sobre a psicologia humana e, mais do que isso, sobre até onde pode levar a auto-ilusão e o conspirativismo: em todas as provas que lhes eram apresentadas – jornais, panfletos, imagens do casamento do príncipe herdeiro, fotografias de família -, Onoda e os camaradas encontravam pormenores que os levavam a desconfiar, detalhes ínfimos que, na sua perspectiva, demonstravam que tudo não passava de um ardil e de uma artimanha dos norte-americanos, que ao longo de décadas forjavam jornais inteiros, faziam comunicados falsos, manipulavam imagens e sons – até a voz do seu irmão! – para os fazerem cair numa cilada e para os levarem a baixar as armas.
Mesmo perante as evidências mais retumbantes e esmagadoras de que o Japão havia perdido a guerra, aqueles homens optaram sempre, mas sempre, pela cegueira e pela crença, pela irracionalidade absoluta.
Quando hoje nos espantamos por haver gente que não acredita que a Terra é redonda, que nega a existência da covid e a eficácia das vacinas, que rejeita o que dizem cientistas e organizações internacionais sobre o aquecimento climático, deveríamos ler o que nos escreve Hiroo Onoda nas suas memórias ou o que afirma Werner Herzog no seu livro. Dois ensaios sobre a cegueira.
Na selva, formou-se aquilo a que, num estudo clássico (Secrets: On the Ethics of Concealment and Revelation, 1982), a psicóloga e filósofa Sissela Bok chamou uma “comunidade de segredo”, feita da partilha das mesmas convicções inabaláveis, numa atitude de cerco e de autodefesa contra tudo e todos.
Em momento algum os camaradas de Onoda duvidaram de que as mensagens que recebiam do exterior eram fruto de propaganda dos americanos, pois estavam totalmente convictos de que o Japão não só não perdera a guerra como continuava a lutar pelo domínio do Pacífico.
Paradoxalmente, o facto de serem um grupo, uma “comunidade”, ajudou à ilusão: em vez de se questionarem uns aos outros, Onoda e os seus camaradas foram reforçando mutuamente a certeza de que estavam certos – e o mundo inteiro enganado.
Não por acaso, foi só quando morreu o último dos seus companheiros que Onoda começou a vacilar e a interrogar-se sobre o sentido da sua luta, acabando por render-se após ter encontrado um hippie seu compatriota acampado nas montanhas de Lubang.
Também paradoxalmente, ou talvez não, as agruras da vida na selva não dissuadiram aqueles soldados: pelo contrário, o facto de terem de lutar por comida e por um abrigo, o facto de estarem permanentemente alerta, deslocando-se de um lado para outro, não estando no mesmo lugar mais do que dois ou três dias, tudo isso, todo esse movimento perpétuo, acabou por reforçar os traços sacrificiais e quase místicos da sua “missão”, tornando-a mais nobre e heróica, mais inquestionável.
Por estranho que pareça, se a permanência na selva fosse mais agradável, se não tivessem de enfrentar as picadas das abelhas e das centopeias, os escorpiões e as cobras “da grossura de uma perna” (Onoda dixit), ter-se-iam, provavelmente, rendido mais cedo.
A existência de um grupo e de uma atmosfera hostil, ou assim pressentida como tal, foram dois elementos essenciais para aquela queda no surrealismo negacionista, para décadas passadas num ambiente onírico e irreal, de dream within a dream, muito potenciado pelas neblinas da selva e pelas brumas da montanha.
Não haveria, por isso, grandes motivos para que Hiroo Onoda fosse tão festejado e celebrado quando regressou ao Japão: negou a verdade histórica, matou camponeses inocentes, liderou um punhado de homens que morreram estupidamente, um a um, por uma causa perdida.
No entanto – e é disso que se fazem os mitos e as glórias das nações -, Onoda era mais do que um destroço ou um despojo de guerra, era o símbolo vivo de uma ética e de um código de combate que, apesar de auto-destrutivo e homicida, permitia ao Japão orgulhar-se de alguma coisa, mesmo tendo perdido a guerra e a sua honra, sobretudo, acima de tudo, após o traiçoeiro ataque a Pearl Harbor.
A criação da lenda do resistente intrépido, perdido na selva e isolado do mundo, e mesmo que ao serviço de uma causa estúpida, permitiu encontrar uma réstia de abnegação e nobreza numa guerra sem sentido e sem norte.
Para uns, o sucedido com Onoda e com outros como ele não passou de uma idiotia monumental, ademais responsável por escusadas mortes. Para outros, há um lado admirável no modo como aquele soldado aceitou a sua missão e a levou até ao fim, contra tudo e todos.
Seja qual for a opinião que tenhamos sobre Onoda e os seus camaradas, há algo que eles nos merecem: o respeito. Hiroo Onoda tinha pouco mais de 20 anos quando foi incorporado no Exército, ao serviço do qual esteve 32 anos. Lutou e sofreu durante três décadas apenas e tão-só porque aquela era a missão que lhe tinha sido atribuída.
Alguns dos seus companheiros sofreram tanto ou mais do que ele: um deles era casado, tinha a mulher grávida à espera do segundo filho, que nunca chegou a conhecer, pois acabou morto em Lubang. Durante anos, suspirou por reencontrar a família, mas nunca se afastou do dever nem sugeriu aos camaradas que se rendessem para voltar a casa.
Em Ultramar na Pele, um livro editado em 2020 pelo Instituto Açoriano de Cultura, a tatuadora e body piercer Diana Gomes e o fotógrafo Rui Caria fizeram um levantamento extraordinário das inscrições no corpo e dos testemunhos de alguns dos ex-combatentes da Guerra Colonial.
O resultado, como é óbvio, é comovente: homens no entardecer da vida, com os braços e os peitos tatuados com imagens de mulheres nuas, de corações, de aviões de combate, e dizeres como “Sangue, Suor e Lágrimas”, “Angola 1974”, “Angola Por Ti Lutei”, “Amor” ou o clássico “Amor de Mãe”.
Um, mais convicto, chegara a inscrever “Viva Salazar” no antebraço, mas depois pediu insistentemente que Diana Gomes removesse o dito; outro afirmou que “Ainda hoje as feridas não sararam”; e outro ainda, o mais pungente de todos, que disse, a dado passo da entrevista, “Se eu chorar, não me leve a mal.” (uma nota pessoal: ali encontrei, por mero acaso, Luiz Espanhol, que em 1974 se voluntariou para os pára-quedistas em Angola e que, muitos anos depois, seria o meu instrutor de recruta na Base da Ota).
Em Ultramar na Pele e em muitos outros relatos que têm surgido de ex-combatentes, percebemos que, como sempre, há gente de diversas ideologias e variadas opiniões: uns que criticam a guerra e o regime que a ordenou (“O tempo de Salazar foi muito triste”, diz um deles, Manuel Santos Melo Ferreira), outros que não se arrependem de nada e até defendem o governo da altura.
É abusivo e abominável politizar os ex-combatentes, convocando-os para as guerras ideológicas do presente, usando-os como armas de arremesso contra a democracia ou, em sentido oposto, tratando-os como um bando de saudosistas da ditadura ou como agentes do colonialismo lusitano.
Manda a verdade que se diga – e reconheça – que, na sua esmagadora maioria, os soldados portugueses que combateram em África foram, também eles, vítimas da Guerra Colonial, cujas marcas ainda hoje carregam consigo, indelevelmente inscritas nos seus corpos e nos seus espíritos.
Devemos-lhe, por isso, o respeito merecido por todos os que sofreram e sofrem, algo que está muito acima das querelas da política e das lutas da ideologia. O respeito devido aos antigos combatentes não é de esquerda, nem de direita, mas um imperativo humano, de dignidade e memória.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Simon comprou uma casa. Uma casa não, um terreno. Um terreno na América, em Berkshire, no Massachusetts. E desse terreno escreveu um livro, um livro sobre o terreno que comprou na América.
Simon – ou, se quiserem, Simon Winchester – começou a vida a estudar terrenos. Depois de se formar em Geologia, em 1966, foi trabalhar para as minas de cobre do Uganda, ao serviço de uma companhia canadiana, e aí leu o relato da subida ao Evereste feito pelo então jornalista James Morris, que mais tarde mudou de sexo e se tornou a conhecida escritora de viagens Jan Morris.
Foi ele/ela que instou Simon a largar a geologia e as minas e a tornar-se também jornalista, contador de histórias, profissão em que Simon Winchester se notabilizou à grande, cobrindo de perto acontecimentos marcantes do século pretérito: o Domingo Sangrento da Irlanda do Norte, o escândalo do Watergate, a invasão das Falkland, onde os argentinos suspeitaram que ele fosse espião e o prenderam durante três meses. Em 1975, escreveu o seu primeiro livro, sobre os “Troubles” do Ulster, e nunca mais parou, numa catadupa de obras extraordinárias, entre livros de História e relatos de viagem.
Dos seus títulos mais conhecidos, O Professor e o Louco (Temas e Debates, 2001), a história fantástica da criação do Oxford English Dictionary, e, também traduzido entre nós, Atlântico, um calhamaço maior do que o oceano (Dom Quixote, 2013). Era bom, muito bom, que por cá se publicassem, pelo menos, o seu livro sobre o Krakatoa, de que já falei nestas páginas, e a monumental saga que dedicou ao Pacífico.
Um dos seus últimos livros – melhor dito, o penúltimo dos seus livros – chama-se Land. How the Hunger for Ownership Shaped the Modern World (HarperCollins, 2021) e começa justamente pela compra do terreno e da casa onde Simon decidiu morar.
Land abre com a aquisição de uma propriedade no Massachusetts, em acto solene realizado num escritório de advogados de Kent, Connecticut: através de um cheque emitido à ordem de um canalizador de nome Cesare, um americano de segunda geração vindo da Sicília e morador no Bronx, Simon Winchester tornou-se proprietário de um pedaço dos Estados Unidos da América do Norte.
Um pedaço de 123 acres, minúsculo em comparação com a superfície de terra da Terra (37 mil milhões de acres), e correspondente, nas nossas contas, a cerca de 50 hectares.
Em breves minutos, o tempo que demorou a compra e venda daquela propriedade, um pedaço de crosta terrestre com árvores, com um riacho, com pedras, com uma casa, passou para o domínio do cidadão Simon Winchester, que se naturalizara americano anos antes, em 2011, em cerimónia realizada bordo do USS Constitution.
Doravante, e sobre aquele preciso bocado de terra, oficialmente delimitado, o novo proprietário passou a deter um conjunto de direitos em exclusivo, que canhestramente poderemos traduzir como um direito de controlo, um direito de exclusão (de intrusos e de terceiros não autorizados), um direito gozo, um direito de disposição. No fundo, e em suma, tudo aquilo que corresponde e integra o direito de propriedade.
Mas como Winchester é jornalista e escritor, senhor de uma curiosidade imensa, quis saber quem lhe tinha antecedido no senhorio daquele pedaço de planeta.
É um exercício fantástico, fazer a genealogia de uma propriedade, aquilo a que os juristas chamam o trato sucessivo dos seus vários detentores.
Fácil no caso da América, pois não é possível ir muito atrás do século XVIII, ao tempo dos índios e dos primeiros colonos, mas também não impossível de realizar em Portugal, decerto com resultados fascinantes e surpreendentes – aqui fica o repto aos leitores-proprietários. Winchester descobriu que, naquele pedaço de América, comprado por um punhado de dólares, estava a história de uma nação inteira: aquele terreno foi detido, entre outros, por um grupo de famílias ou comunidades dos índios Moicanos, depois passou para um grupo de famílias ou comunidades dos índios Schaghticoke, a seguir para a soberania de três stadtholders holandeses da Casa de Orange-Nassau.
Com o domínio britânico, a terra passou a pertencer, ao menos nominalmente, a sucessivos monarcas ingleses, da dinastia Stuart (Charles II, James II, Mary II, William III e Anne) e a seguir da dinastia de Hanover (os três reis George).
Seguiu-se a família Philipse, uns holandeses convertidos à causa britânica, e depois, sem título formal, a terra esteve na posse de diversos caçadores e carvoeiros, que não deixaram rasto nem documentos.
Depois disso, e já com títulos legalizados, aqueles 49 hectares foram propriedade da família Bascher, que vivia nas imediações, a seguir seriam vendidos a um imigrante siciliano chamado Vacirca.
Este, por sua vez, venderia a propriedade a um americano de origem germânica de apelido Doll, que a vendeu a seguir a Cesare Luria, o canalizador do Bronx que, em 1999, a vendeu a Simon Winchester.
Seria tentador escrever “e a história termina aqui”, mas não é verdade. A terra é hoje da propriedade de Simon Winchester, mas pode vir a ser confiscada ou expropriada, pode ser dividida em parcelas, pode ser vendida a um novo comprador. E, mesmo que Winchester a não venda, um dia irá morrer, como todos nós. A propriedade pertence-lhe, a eternidade não.
Por isso, aquela terra irá mudar de dono, fatalmente: para os filhos e netos de Winchester, se os houver, ou para outros quaisquer, a prova provada de que a propriedade é um direito poderoso, mas tão efémero como a existência humana.
Se quisermos, a prova provada de que o direito àquela propriedade é uma ficção jurídica, uma construção social e artificial, e que a única coisa verdadeiramente autêntica é a terra, não a sua posse.
Simon Winchester será só, quando muito, o fugaz titular de um bocado do planeta, daquilo que já era terra antes sequer da Terra ser como era.
Há muitos milhões de anos, aqueles 50 hectares em Berkshire, no Massachusetts, encontravam-se, provavelmente, no extremo leste de Laurência, ou Cratão Norte-Americano, em tempos tão distantes e com nomes tão bizarros que parecem tirados de um enredo de ficção científica: Vaalbara, Kenorland, Columbia, Rodínia, Pannotia, Pangeia, Laurásia, Gondwana, Ur, Ártica, Atlântica, Orosiriano, Kenorano, Statheriano, Neopoterozoico, Siluriano-Triássico (é estranho, muito estranho, o que nós, cidadãos comuns, com escassos conhecimentos de geologia, sabemos da história da Terra e dos seus super-continentes.)
O movimento das placas e muitas coisas que não alcanço – ciclos de Wilson, rifteamentos, arcos vulcânicos, arcos de ilhas – mostram que a Terra muda mais do que pensamos, ou sequer somos capazes de imaginar, e que possivelmente, provavelmente, num futuro distante, entre 50 e 250 milhões de anos, se irá formar um novo super-continente sobre o Pólo Norte, juntando a Ásia e a América do Norte, terra a que os geólogos chamam Amásia.
Falam outros em Aurica, juntando o Atlântico e o Pacífico, outros ainda em Novopangaea, unindo a Austrália, a Ásia Oriental e o norte da Antártida, enquanto outros preferem falar em Pangeia Próxima, Pangeia Última, Pangeia Júnior ou Pangeia II. Cenários decerto longínquos, mas já hoje previsíveis – e tão intrigantes como o facto de teimarmos em chamar “Terra” a um planeta composto sobretudo de água.
Numa célebre deixa de E Tudo o Vento Levou, Gerald O’Hara diz à sua filha Scarlett que a terra é a única coisa no mundo pela qual vale a pena trabalhar, lutar e morrer, porque só a terra perdurará quando tudo desaparecer.
A história da Terra demonstra, porém, que até a terra é efémera e transitória, que aquilo que temos por eterno – a Europa, a América, a África – irá um dia extinguir-se, dando lugar a novas terras, outros mundos d’assombração.
Ao ritmo que estamos estragando o planeta, é muito possível que a vida humana desapareça antes disso e que já não estejamos por cá quando se formarem os novos continentes.
O mais bizarro de tudo é pensar que destruímos a biodiversidade do planeta e colocamos em perigo a sobrevivência da espécie humana – com guerras, com armas nucleares, com o aquecimento global – tudo na ânsia e ganância de acumularmos terra e mais terra e as riquezas que a terra dá.
Na invasão da Ucrânia pela Rússia não se jogam apenas questões de geopolítica ou de “esferas de influência”; disputa-se também a posse das preciosas “terras negras” ucranianas, do mesmo modo em que, no confronto entre a China e os EUA (melhor, entre a China e o Ocidente), as “terras raras” desempenham um papel crucial.
A Europa, como sempre, só agora despertou para o problema e, do mesmo modo que se colocou na dependência da energia da Rússia, está à mercê da China, do Chile, da África do Sul. Se queremos ter uma indústria de ponta, se ambicionamos um futuro sem carbono, importa percebermos as nossas fragilidades, sabermos que em toda a Europa só existe uma instalação comercial de separação de terras raras (em Sillamäe, na Estónia), que 98% das terras raras que consumimos vêm da China (98%, repete-se), que a China nos fornece 66% das matérias-primas críticas, que 78% do fornecimento do lítio da União Europeia é importado do Chile e que 78% da platina tem origem na África do Sul.
No passado mês de Março, quando apresentou os projectos da Indústria Zero Poluição e das Matérias-Primas Críticas, Ursula von der Leyden apresentou dados aterradores: além dos 98% de terras raras, 93% do magnésio e 97% do lítio que consumimos provêm da China (Euronews, de 15/3/2023).
É um problema crítico, absolutamente crítico, que baralha todos os dados do jogo da geopolítica, mas sobre o qual pouco ou nada se diz: com uma tal dependência das matérias-primas chinesas, como podemos bater o pé a Pequim?
A Europa encontra-se à mercê de uma ditadura e, muito por culpa dos governantes e da imprensa, os seus cidadãos nem têm consciência disso, narcotizados que estão pelo furor do consumo e das férias, pelas palermices do Tik-Tok e das “redes”, pelo ritmo alucinante e diário, em jeito de telenovela, a que se sucedem mil e um “casos e casinhos”, os faits divers com que se faz a miséria do nosso quotidiano político.
Hoje, curiosamente, os mais ricos do mundo já não são os grandes proprietários de terra, como sucedia num passado não muito distante.
Na lista dos grandes multibilionários do planeta encontramos agora, por esta ordem: Bernard Arnault, dono de um império de luxo; o inenarrável Elon Musk, que, não podendo candidatar-se à presidência da América, quer ser o king maker das próximas eleições (com o apoio de todos quantos usam o Twitter); Jeff Bezos, da Amazon; Bill Gates, da Microsoft; Warren Buffett; Steve Balmer, também da Microsoft; Larry Ellison, da Oracle; Larry Page, da Google; Françoise Bettencourt Meyers, da L”Oréal; e Sergey Brin, da Google.
Só na 55ª posição da Forbes encontramos alguém cuja fortuna se baseia primordialmente na propriedade da terra, a australiana Gina Rinehart, dona de colossais minas de ferro, senhora de opiniões controversas e radical apoiante de Trump.
O facto de os mais ricos do mundo já não serem terratenentes, mas gente do luxo e do digital, é um sinal bem expressivo da progressiva desmaterialização da riqueza e daquilo a que alguns chamam a “financeirização das economias”.
Menos fortunas criadas pela terra e pela indústria, mais património gerado pela especulação financeira, pelas novas tecnologias, pelos sectores dito “imateriais”, feitos de coisas intangíveis, mas muito fungíveis.
Portugal, como sempre, está na vanguarda deste processo e há mesmo coisas em que somos primeiros: soube-se há dias, através do Anuário do Eurostat, que fomos o país da União Europeia que mais produção industrial perdeu desde 2005.
Nesse período, a indústria da UE cresceu 13,9%, mas nós, a contra-ciclo, cometemos a proeza de decrescer 18,9%, a maior contracção industrial de todos os países da União.
A notícia de que, nos últimos 18 anos, o país perdeu quase 20% da sua indústria deveria ter provocado alguma discussão e debate, estudos e comentários, porventura até alarme, preocupação de futuro, não andássemos nós tão ocupados com o computador do Pinheiro, a indemnização da Alexandra ou a final da Liga.
Na agricultura, em contraste – e isto é preciso ser dito -, fomos o quarto país da União com maior crescimento do valor da sua produção agrícola.
O sector gerou 3.500 milhões de euros em 2021, parabéns. Simplesmente, colocadas as coisas em perspectiva, a agricultura tem vindo a perder importância na criação da riqueza do país: na década de 1980, gerava mais do dobro da riqueza actual.
Em 1995, era responsável por 3,7% do PIB; em 2020, não passou de 1,6%, do nosso produto interno, informa a Pordata.
Há coisas paradoxais, ou não: num mundo em que as grandes fortunas se fazem cada vez mais a partir do “imaterial” (v.g., finança, tecnologia), a terra não perdeu valor, pelo contrário.
Na última década, o preço dos terrenos agrícolas em Tavira cresceu 2400%. Em dois anos, a valorização dos terrenos foi de 100% e o preço do hectare agrícola atingiu os 120 mil euros.
Não se pense que é um exclusivo algarvio, assente no abacate e na laranja: no resto do país, o aumento do preço dos terrenos agrícolas foi de 40%, chegando nalguns casos a 50%.
Espiral motivada por fundos internacionais, por investidores estrangeiros que, de acordo com uma notícia de 2021 (Expresso, de 13/11/2021), eram sobretudo russos, chilenos e espanhóis. Alguém sabe ao certo quanto do nosso Alentejo está hoje na mão de castelhanos?
Que russos por cá têm terras? Quantas, onde? Notícias mais recentes, já de 2023, dão conta de que o “agribusiness” pode ser um dos “sectores-estrela deste ano, com investimentos de norte-americanos, australianos, brasileiros e alemães.
Só em Janeiro fizeram-se negócios no valor de 300 milhões de euros, no perímetro de rega do Alqueva, na Costa Alentejana (para frutos vermelhos), no Algarve (para abacate), em certas zonas do Fundão, Castelo Branco e Idanha-a-Nova (jornal ECO, 2/2/2023).
Nos últimos 15 anos, o número de fundos que investem no sector agrícola multiplicou por 15 vezes e a tendência é para aumentar ainda mais.
Seria fácil esgrimir o argumento nacionalista de que estão a levar-nos a nossa terra, que deveríamos fazer como a Nova Zelândia ou como o Canadá de Trudeau, que decidiram proibir a compra de imóveis por estrangeiros, medidas que têm sido discutidas noutros países da Europa, sem conclusão ou solução à vista (em Setembro do ano passado, o ministro das Infra-estruturas anunciou um estudo sobre a matéria, mas entretanto mudou o ministro e houve um adjunto que partiu as infra-estruturas do Ministério das ditas).
A questão, parece-me, não tem tanto a ver com serem portugueses ou estrangeiros os donos da terra, mas com a lógica e com a forma como nela se está investindo.
É bem diferente, julgo eu, a lógica de um fundo de investimento e a lógica de um proprietário: enquanto o primeiro pensa primacialmente na rentabilidade da terra, numa perspectiva de retorno do capital investido, o proprietário tradicional, digamos assim, tem outros propósitos para além da rentabilidade financeira, nomeadamente a preservação do valor patrimonial da terra como herança ou legado para os seus filhos e descendentes.
É muito diferente ver a terra como um “investimento” ou como uma “propriedade”: no primeiro caso, investe-se na terra devido à sua rentabilidade ou à segurança que ela dá, em confronto com apostas de capital mais arriscadas; no segundo, visa-se o lucro também, mas existem outras considerações e motivações (emocionais e afectivas, familiares e sucessórias) que tendem a promover um maior cuidado na preservação e no cuidado do património numa perspectiva de longo prazo, ainda que à custa de uma menor rentabilidade no imediato.
Não se trata de diabolizar os investidores e os fundos, estrangeiros ou nacionais, nem de afirmar que apenas os “lavradores” de antanho tinham amor à terra (que muitas vezes deixavam por cultivar ou maltratavam em absentismo deplorável).
Trata-se, isso sim, de perceber que a lógica do investidor tenderá, naturalmente, para um modelo de agricultura muito mais extractivista e intensivista, mais exploratório, mais predador. Ou seja, o inverso, diametralmente o inverso, daquilo que, nas actuais condições do planeta, pode e deve ser feito.
Repare-se no seguinte: segundo informam os próprios consultores imobiliários (Francisco Horta e Costa, da CBRE, em declarações ao jornal ECO, de 2/2/2023), os investidores estrangeiros compram terras para olival, para abacate e para frutos vermelhos, justamente as três culturas que o governo acaba de proibir devido à seca, um problema que o ministro do Ambiente definiu, e bem, como “estrutural, não conjuntural”.
Com o abacate passou-se, aliás, um fenómeno caricato: com base num estudo de 2019 (Armindo Rosa, Rega das Culturas/Uso Eficiente da Água, Edição da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, 2019), clamou-se que a cultura do abacate não era, afinal, grande consumidora de recursos hídricos, que tudo não passava de uma falácia e de um embuste (ver, por exemplo, a inflamada opinião do CEO da Inspire Farms, João Paulo Pereira, “O desperdício de água e os abacates!”, Diário de Notícias, de 7/3/2019; ou “Abacate: a monocultura da desinformação”, Vida Rural, de 15/9/2020).
Pois bem, o governo acaba de proibir, por causa da seca, a cultura do abacate no Alentejo e no Algarve. Em que ficamos, então? Têm razão o estudo de 2019 e os produtores de abacates ou tem razão o governo, que os proibiu?
Quase se poderia dizer, sem receio de exagero, que os fundos estrangeiros que investem na nossa agricultura não estão verdadeiramente a comprar terra, mas água, um bem cada vez mais escasso em todo o planeta.
E que, uma vez esgotada a água, irão buscá-la noutras paragens, pois é essa a lógica de quem investe num “activo” com o qual não tem qualquer outra ligação que não seja a do lucro e da rentabilidade financeira.
A “financeirização” chegou à agricultura, num processo em que cada vez mais se notará a discrepância entre, por um lado, os objectivos definidos pelos governos e, por outro, a estrutura da propriedade fundiária à qual tais objectivos irão ser aplicados. De um lado, proíbe-se o abacate; do outro, investe-se no abacate.
Não seria melhor terem conversado antes? Não seria melhor definir regras claras para quem investe ou quer investir na agricultura? Não seria melhor ter evitado conflitos que agora são inevitáveis?
Em 2022, Portugal sofreu um dos piores anos de seca de que há registo e, este ano, a seca severa e extrema afecta já cerca de 40% do território nacional.
Notícias desta semana dizem que a produção de azeite pode estar “à beira do colapso” e já há quem fale em “catástrofe”, enquanto os criadores de gado do Baixo Alentejo se desfazem do seu gado por causa da seca (Público, 28/5/2023).
A isto conduziu o negacionismo climático de muitos que hoje se calam ou tentam relativizar o óbvio. Agora, amanhem-se.
Para a Tia Tá e para o Tio Manecas
Para o Miguel Nogueira de Brito
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
No ano de 1938, Hitler anexou a Áustria, começaram os processos de Moscovo e António Nunes levou um tabefe. Não terá sido um tabefe qualquer, ou um qualquer tabefe, pois que, em 2017, muitos e muitos anos volvidos, ao ser entrevistado com a bonita idade de 97 primaveras, aquilo que António mais recordou do essencial da sua vida foi aquele tabefe pré-Segunda Guerra (Mundial). Tabefe apanhado tinha ele 18 anos, tabefe aplicado por sua Mãe, por um singelo, decisivo e mais do que justificado motivo: António deslocara-se a Almeirim na companhia do Gabriel Fidalgo sem ter comunicado previamente tal facto à sua progenitora, que ficou danada.
“Nunca mais esqueci do que a minha mãe me fez, porque não foi justo o que fez”, disse António Nunes, 79 anos depois da ocorrência, a qual, a traços largos, ocorreu assim: uma noite, depois de jantar, António foi ter com a rapaziada amiga à Brasileira, um dos cafés mais frequentados de Alpiarça naquela época, a par do Central, propriedade de Gregório Joaquim Monteiro (é facto sabido de todos, mas aqui vai recordado: quer a Brasileira quer o Central ficavam na Rua Direita, quase junto ao Largo das Águias).
Foi na Brasileira que Gabriel Fidalgo lhe fez o convite fatal, quase delituoso, para irem ambos nessa noite a Almeirim. Perante o repto, António sugeriu a realização de uma cimeira bilateral, na qual impôs que regressassem antes da meia-noite. Como lembraria ele, oito décadas mais tarde, “Aceitaram-se as condições e partimos até Almeirim.”
A vida, porém, é madrasta e a História nem sempre justa: vá-se lá saber como e porquê, António e Gabriel regressaram a Alpiarça já passava um pouco da meia-noite. António foi para casa pé ante pé, pespegado e colado às paredes, silente que nem um rato, colocou a chave à porta, rodou-a na fechadura.
Sobre o que se passou depois é sempre melhor o discurso directo e o testemunho em primeira mão. Palavra, portanto, à vítima, no seu lugar de fala:
“Mal tinha entrado… Zás! Levei um tabefe da minha mãe, que nunca esqueci até hoje, e já tinha nessa altura 18 anos. Depois disse-me a minha mãe levaste, não por entrares a esta hora, mas por teres saído da terra sem me teres avisado.
Isto quer dizer que houve “uma alma caridosa” que foi a correr junto da minha mãe para denunciar o que tinha acontecido Olhe que o seu filho mais o Gabriel Fidalgo foram para Almeirim sozinhos!… ter-lhe-ão coscuvilhado.”
Até hoje não foi possível apurar quem terá sido o bufo denunciante de Gabriel e António, a voz coscuvilheira e maligna que, ao cabo e ao resto, esteve na origem da história – e de um tabefe que foi maternal, é certo, mas ainda assim aleijou.
Talvez também não interesse, hoje é tudo gente morta, dela sobrando tão-só a memória ou memórias como esta, íntimas e irrelevantes, mas que outros, por coscuvilhice benigna, teimam em registar.
Refiro-me, naturalmente, a algo de que já aqui falei e a que sempre regressarei: o extraordinário e a todos os títulos notável trabalho que, sob a égide de João Monteiro Serrano, a AIDIA – Associação Independente para o Desenvolvimento de Alpiarça tem levado a cabo para recuperar e fixar a memória das gentes da beira-Tejo.
Em cooperação com o município de Alpiarça, a freguesia de Alpiarça e a Confraria Ibérica do Tejo a AIDIA edita uma colecção prodigiosa, os Cadernos Culturais, que já vão no número 50, ou mais, sempre a um excelente nível.
Entre os temas abordados, os arroteadores do Vale da Lama da Atela; a cultura dos avieiros; a doçaria tradicional de Alpiarça; os moinhos e as azenhas de Mouriscas; a astronomia no Tejo; memórias de um calceteiro; a história de um emigrante, da Sertã ao Recife; as trovas de um pescador do Montijo; memórias do contrabando em terras alcoutenejas; a arte de frioleiras de Ivone Branco Mendes. Não é maravilhoso?
Na vida de António Nunes, além do tabefe materno, houve outros factos com relevância. Caso não saibam, foi ele a fons et origo do melão Manuel António, cabe-lhe a paternidade de um dos ex-líbris do concelho. No site da Câmara Municipal de Alpiarça, a vila apresenta-se, orgulhosa, como “Terra de Melão” e todos os anos, pelo mês de Julho, ocorre o “Festival do Melão” e, a ele associado, o “Concurso do Melhor Melão e Melancia de Alpiarça”. No ano passado, foram a concurso nada menos do que 20 melões brancos, 12 melancias sugarbaby e 11 melancias crimson sweet.
Nas fotografias, tiradas no Pólo Etnoturístico da Casa dos Patudos, vemo-los todos lustrosos, aos melões e às melancias, encostados à parede, prestes a serem provados e degustados por um júri integrado pelo Dr. Luís Saldanha, da CNJ, pelo Dr. Igor Dias, da Escola Agrária de Santarém, pelo Eng. Luís Filipe Sousa, em representação da DRAP – Lisboa e Vale do Tejo (ou DRAPLVT), e por Jorge Costa, da Junta de Freguesia de Alpiarça.
As categorias em compita eram, a saber: “Melhor Melão Branco”, “Melhor Melancia Crimson Sweet (riscada)” e “Melhor Melancia Sugar Baby (preta)”, mas como os resultados da refrega só foram oficialmente anunciados a 26 de Agosto, no decorrer da ALPIAGRA, não consegui apurar quem terá sido o Mr. Melão e a Miss Melancia Alpiarça/2022.
De todo o modo – e esse é o ponto que interessa -, por aqui se vê a importância do melão para a economia da região, devendo ainda acrescentar-se que o Mercado de Fruta do Carril é “considerado um dos mais um dos mais importantes mercados do país, não só pela quantidade, mas também pela qualidade dos melões e melancias que aqui se transacionam”, informa o site Reforma Agrária – Coma Bem, Viva Bem.
A vitalidade económica de uma terra, o emprego para muita gente, gerações e gerações de gente deliciada com os melões de Alpiarça, muito disto se deve a António Nunes, o tal do tabefe, razão que eloquentemente explica o valor do labor do professor João Monteiro Serrano, da Associação Independente para o Desenvolvimento de Alpiarça e, claro, dos seus Cadernos Culturais.
Nado e criado em Alpiarça, António Nunes foi estudar muito novo, aos 11 anos (!), para Santarém, mais precisamente para o Liceu Nacional Sá da Bandeira.
Só vinha a casa aos fins-de-semana. “Naquele tempo quem ia estudar sabia que o ia fazer com muitas dificuldades da família, como foi o meu caso”, recordou António aos 97 anos de vida.
Trabalhou e estudou, ao fim de quatro anos de liceu passou para a Escola Agrícola, também em Santarém, onde, em 1940, concluiu o curso de regente agrícola.
Depois seguiu-se a tropa, três anos nos quartéis, e, regressado a casa, nem sequer passou um mês quando António Nunes foi contactado por Rafael Duque, amigo de seu pai, que lhe disse para ir ter com ele ao Ministério.
Recorda Nunes: “Notei que o Rafael Duque gostava muito de falar comigo ali em Vale de Cavalos, mas em Lisboa a conversa já foi outra. Mandou-me uma carta pelo contínuo para ir a uma repartição na Rua de São Bento, em Lisboa, e assim fiz”.
Têm os historiadores estudado muito o período do Estado Novo, escrutinado à lupa a vida e a política agrária do ministro Rafael Duque (sobre a qual Fernando Rosas escreveu em 1991 um importante ensaio nas páginas da revista Análise Social, “Rafael Duque e a política agrária do Estado Novo, 1933-1944”), analisado a “campanha do trigo” e outras iniciativas, mas neste pequeno episódio sucedido com António Nunes está todo o retrato de um regime – ou talvez mesmo de um Portugal que continua a ser o nosso.
Munido da recomendação do ministro, foi António Nunes à Rua de São Bento, onde o engenheiro Francisco Aranha, após passar os olhos pela missiva de Duque, ficou um pouco agastado (“o Sr. Ministro há de pensar que eu tenho emprego para toda a gente”), mas lá conseguiu arranjar uma colocação em Chaves, por três meses.
António lá foi então para Trás-os-Montes, onde acabou por ficar três anos, ao fim dos quais regressou a Lisboa, sendo aí colocado na Junta Nacional das Frutas. Nessa qualidade, correu o Ribatejo de uma ponta à outra, fazendo a inspecção dos meloais da lezíria.
Entre 1943-1944 e dos anos 1950 em diante, a área dos meloeiros de Alpiarça ia de Vila Franca de Xira a Salvaterra de Magos, mas sempre na margem esquerda do Tejo, esclarece António, adiantando um pormenor importante, quiçá bairrista: ao tempo, nessa zona, só se viam meloeiros de Alpiarça, quase nenhuns de Almeirim. Nas décadas de 1940-50, os dois lados da Recta do Cabo enchiam-se de pargas de melões e melancias, vendidos por gente de Alpiarça, quase só de Alpiarça, e a fama dos melões de Almeirim baseou-se num erro ou numa manipulação da História.
“Almeirim nunca teve melões, porque por tradição e história sempre teve melancias” – diz-nos António Nunes. Ecuménico, advoga o seguinte Tordesilhas frutífero: para Alpiarça, a primazia nos melões (Cucumis melo); para Almeirim, o reino das melancias (Citrullus lanatus).
Alcançada a harmonia, reponha-se a verdade histórica: “começou a ser criada a fama do que é conhecido como melão de Almeirim, mas esta terra nunca teve melões, embora hoje queira fazer acreditar que teve.
O que é verdade tem de ser dito e temos de ter frontalidade e honestidade para defender a verdade, porque foi assim que a minha mãe me educou.
Só por isso valeu o valente tabefe que apanhei aos 18 anos, por ter ido a Almeirim de noite sem o conhecimento dela e ter chegado a casa pouco depois da meia-noite, como contei.”
Por esta altura, já perguntais, e bem, pelos melões Manuel António. Vamos a eles: os melhores campos para meloal, dixit António Nunes, eram as várzeas dos campos de Vila Franca, Benavente e Salvaterra.
Quando chegava a época das sementeiras, os meloeiros de Alpiarça – não de Almeirim, note-se – mudavam-se de armas e bagagens para as terras da margem do Tejo, levando o que então chamavam a tralha toda, desde enxadas a colchões, apetrechos de cozinha, os cães e os gatos da casa. Acampados em barracas, chegavam a lá viver uns seis meses, imagine-se.
Um dia, nos idos de 40, António foi até ao Alentejo a fiscalizar a fruta e, por bandas da Amareleja, deu com uns melões estupendos.
Pediu ao produtor se lhe arranjava umas sementes, o outro disse que tinha de as ir buscar a Espanha, fez-se negócio e António retornou a Alpiarça todo contente. Passaram-se então semanas, meses, e sementes nada. António sentiu-se defraudado.
Um belo dia, porém, recebeu senha para ir buscar uma encomenda à estação dos caminhos-de-ferro. Era o saco das sementes, que levou para Santarém.
Tempos depois, no Grémio da Lavoura de Alpiarça, um meloeiro de nome Manuel António queixou-se das fracas colheitas e António lembrou-se das sementes de Espanha, vendeu-lhas.
Assim nasceu uma variedade assaz singular, fresca e dulcíssima, a que Manuel António, com orgulho justificado, deu o seu próprio nome, melões Manuel António.
Foram exportados aos quilos, às toneladas, para o país-irmão do Brasil, para a exigente Inglaterra, que impunha melões calibrados, todos de um quilo, não mais.
Dinheiro, empregos, uma vida melhor para muita gente, graças a António Nunes, que por esse tempo já fora colocado noutras paragens, terras da Beira Alta, à zona do Bravo de Esmolfe.
António Nunes era filho de uma parteira, a tal que o brindou com um tabefe, e irmão de outra parteira, Noémia Domingos Nunes de Carvalho. A vida de Noémia é tão ou mais interessante do que a dele, tendo ambas um denominador comum: o trabalho.
Noémia ambicionava estudar, mas, por falta de recursos paternos, só conseguiu fazê-lo mais tarde do que o seu irmão, terminando o curso com 23 anos.
Em 2016, quando foi entrevistada para o Caderno Cultural nº 48, intitulado justamente A Parteira de Alpiarça. Memórias de Noémia Domingos Nunes Coelho, tinha 93 anos e nem sei se ainda é viva, mas sei que guardou para sempre, com enorme orgulho, a Carta de Curso de Parteira, exarada em 14 de Agosto de 1946 pelo Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, Professor Maximino José de Morais Correia.
Em Alpiarça e terras limítrofes, fez nascer, durante décadas, muita e muita gente, e num caderninho que tinha chegou a apontar o nome de mais de 100 bebés por si dados à luz.
Chamada de dia ou noite, sem horários nem descanso, nunca sabendo quando terminariam os trabalhosos trabalhos de parto, corria aos casebres palafitas no leito do Tejo, partilhava a vida anfíbia dos avieiros no Patacão de Cima, Casal do Leão, dos pescadores do Touco, da Vala Real, e das suas mulheres, as “peixeiras”, a quem chegou a arranjar colchões para estarem deitadas para receber, de três em três horas, injecções de penicilina, a prevenir infecções.
Viajava de burro, numa carroça, mas, quando chegava à beira-Tejo, os maridos das parturientes iam buscá-la de barco. Então, viajava pelas águas, às vezes noite dentro, cheia de medo.
Ameaçou muitas mães de que não mais regressaria ali enquanto elas teimassem em ter os filhos naquelas palhotas, ao invés de irem para a Misericórdia de Alpiarça. “Foi assim que as habituei, mas admito que foi dificílimo.
Elas não queriam sair da casa delas nem por nada, de maneira nenhuma”. Difíceis foram também os seus anos de juventude: “foram tempos complicados porque tive de estudar e aplicar-me muito para poder chegar onde cheguei.
Não foi fácil, porque precisei de trabalhar e de estudar muito. No entanto, no final, concluí que estudei e trabalhei, mas vi o resultado positivo de tudo, pelo que valeram os sacrifícios”, disse a parteira Noémia, do alto dos seus 93 anos.
Quando João Monteiro Serrano a entrevistou, já se encontrava no Centro da Fundação José Relvas, onde era visitada por gente que fizera nascer e que, passados tantos e tantos anos, ia lá agradecer-lhe.
Recordava com saudade os médicos que conheceu, o Dr. Neves, o Dr. Romão, o Dr. Dias Pereira, que em Lisboa abrira consultório na Praça do Chile, e, na Misericórdia de Alpiarça, o Dr. Lagoa, ou seja, Alfredo Duarte Lagoa, notário e proprietário, o primeiro provedor daquela instituição.
No livro das suas memórias, há fotografias, muitas, inclusive dela vestida de noiva, no seu casamento com Manuel Henriques Coelho, em 1947 (“Namorámos e viemos a casar.
Gostámos sempre bastante um do outro e fomos felizes”), e dos dois a dançar nos bailes do Enterro do Galo, ou no baile quando o Águias se despediu da sua antiga sede. Por sorte ou engenho, das muitas crianças que fez nascer, nenhuma lhe morreu nos braços.
No final da vida, afirmou tão-só: “Tudo isto se passou, nada foi fácil para mim, mas foi uma profissão que eu abracei e gostei muito do que fiz. Por ter gostado tanto da minha profissão de parteira, abracei-a com todas as minhas forças.”
Na mesma semana em que li as memórias de Noémia (e, já agora, do seu irmão António, o pai dos melões lendários), li também a biografia de Pedro Luz, empresário da noite e não só, escrita pela sua antiga namorada, a advogada Rita Delgado (Pedro Luz. Um Homem, Quatro Vidas, ed. Zero a Oito, 2022).
À primeira, à segunda e à terceira vista, nada por nada aproxima o fundador e ex-proprietário do Alcântara Café e da discoteca Alcântara Mar daquela parteira alpiarcense, podendo até dizer-se que um e outro pertencem a planetas ou galáxias diferentes: ela, uma mulher humilde, apegada à terra e ao povo, com uma profissão normal, mas mui nobre; ele, um gato cosmopolita, terrivelmente narciso, vivendo num mundo de frivolidade e luxo.
O “homem mais bem vestido de Portugal”, como o define a sua embevecida e inconfidente biógrafa, viaja sempre, nem que seja para um simples fim-de-semana, na companhia de duas malas contendo várias e várias camisas, impecavelmente dobradas nas respectivas caixas, para não amarrotarem, diversos pares de sapatos, múltiplos fatos, écharpes e chapéus estilosos.
Se no livro de Noémia vemos fotografias dos miseráveis lacustres da beira-Tejo, de bailaricos de Entrudo ou de piqueniques na Nazaré dos marretas, na biografia de Pedro temos uma sucessão de imagens da noite, coloridas e feéricas, com celebridades sempre felizes, de gengivas a sorrir para a câmara.
Desfile dos nossos famosos: a socialite Lili Caneças; António Mexia, artista de variedades, ora arguido por corrupção activa; Ana Salazar e Manuel Alves, malta dos trapos; as aves canoras Luís Represas e Paulo Gonzo; Margarida Rebelo Pinto, magérrima mulher das letras, entre outros boémios e noctívagos de várias origens e obscuras proveniências.
O biografado, esse, vai passeando o seu charme por ambientes internacionais absolutamente previsíveis – Ibiza, Marraquexe, Saint-Tropez, Nova Iorque -, sendo caso para dizer que alguém que tanto se gaba da sua criatividade e do seu arrojo acaba, no fim de contas, por seguir uma pauta bem conformista, limitando-se a cumprir à risca aquilo que aparece nas revistas de moda e “tendências”, das quais, segundo confessa, jamais pode prescindir.
Publicar um livro destes, e ademais com estrondo, ao invés de mantê-lo circunscrito a um núcleo reduzido de amigos, é um singular e quase obsceno exercício de desnudamento, pois, através dele, ficamos a saber, por exemplo, todos os pormenores do início do romance entre biógrafa e biografado, os nomes dos muitos empregados de Pedro Luz ou os interiores da sua casa no Restelo, exibidos em visita guiada de Rita Delgado, que no seu deslumbramento não nos poupa sequer o name dropping decorativo: “Entrando na sala, temos uma barcelonas cor de caramelo, rodeadas de uma Bubble, de uma Kiss, da Felt e da Joe Glove (…) uma mesa rectangular em mogno estilo art nouveau, rodeada por Tulips e Eames Chairs brancas, um lustre moderno preto e branco de Veneza e, na parede, um único quadro de sépia (sic) de um homem imponente, com o tronco definido e uma mão que atravessa (?), como se fosse um desenho romano interpretado e executado agora.”
Não podendo ir à cerimónia-festa do lançamento da obra, que teve lugar em Setembro passado num dos hotéis de Pedro Luz, o presidente da CML, Eng. Carlos Moedas, fez questão de enviar uma extensa mensagem-vídeo, na qual classificou o homenageado como “um dos símbolos da chamada movida lisboeta que trouxe o ar fresco da modernidade a espaços icónicos como o Plateau ou o Alcântara-Mar”.
A concluir, em remate à trave: “O Pedro é a personificação de uma capital cosmopolita que é a minha, daquela Lisboa que não tem de pedir licença a Paris para ser a nossa cidade-luz.”
Importa, no entanto, despirmo-nos de preconceitos intelectualistas, de invejas e mesquinhezes. Se formos capazes disso, deveremos olhar este “homem de cultura” (Luís Marques Mendes) ou mesmo este “grande homem de cultura” (José Miguel Júdice), para além do modo como ele se apresenta e representa perante si próprio e perante o mundo.
Apesar de não gostar muito de falar das suas origens, Pedro Luz é um self-made man que alcançou inquestionável sucesso nos sucessivos e muito competitivos ramos de negócio em que operou – roupas, croissanterias e pronto-a-comer, diversão nocturna e agora hotelaria -, o que, não fazendo dele um “caso de estudo”, mostra, ainda assim, a importância de certas coisas.
Nas viagens que faz, e di-lo Rita Delgado, tudo é milimetricamente preparado para observar o que de melhor se faz “lá fora”, para acompanhar e estar a par das tendências e dos gostos, das evoluções dos modismos. Por trás daquele insuportável triunfalismo de vencedor, parece existir, afinal, uma enorme humildade, o querer aprender com os outros.
E sobretudo, acima de tudo, há muito e muito trabalho, um labor incessante, tal qual o de Noémia Carvalho, a parteira de Alpiarça (um dos capítulos da biografia de Luz intitula-se precisamente “Trabalho, mais trabalho e trabalho.”)
Entre um e outro há um Portugal de permeio e, de facto, na abissal diferença entre Noémia e Pedro estão também as fundas transformações que o país foi sofrendo ao longo de quase um século.
Mudanças que afectaram o próprio valor do trabalho e que, fruto das vicissitudes do mundo, mas também de males internos, estão retirando o propósito àqueles que agora nascem.
Nos tempos de Noémia e Pedro, trabalhava-se com um sentido, com um objectivo de vida, mais ou menos realista, mais ou menos alcançável.
Agora, não têm os jovens qualquer incentivo e motivo para labutar e suar, pois ignoram se tudo quanto trabalham ou trabalharem será um dia recompensado, mesmo nos termos das suas aspirações mais modestas: uma casa para morar, emprego com salário digno, um futuro acutelado.
Não admira, por isso, que muitos apenas vivam para o dia-a-dia, que só queiram divertir-se nas discotecas do Pedro ou de quem hoje lhe sucede. Ter filhos, para as Noémias-parteiras de agora, é coisa que nem pensar.
Para que todos meditem: em geral, os jovens da actualidade têm hoje menos esperança de futuro do que os jovens de há 30, 40 ou 50 anos. É esta a verdade autêntica, como os melões de Alpiarça.
Para a minha Mãe, uma mulher de trabalho
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.