🇵🇹 OPINIÃO
Muitas estrelas do futebol mundial acodem ali como moscas, atraídas por salários estratosféricos. Em pleno deserto, a Arábia Saudita é o novo El Dorado da bola, onde já militam 14 jogadores e cinco treinadores portugueses, entre os quais avulta a estrela maior dos garimpeiros, o nosso Cristiano, que concorda em emprestar a fama própria para branquear o crime alheio. Mas já lá vamos.
A maior monarquia muçulmana do mundo tem em curso uma operação sem precedentes, com investimentos calculados em 25 mil milhões de euros, o equivalente à soma dos nossos orçamentos anuais para a Saúde e Educação.
O objectivo é criar rapidamente uma indústria desportiva masculina – sublinho masculina – altamente competitiva e com impacto nos mercados globais de transferências e direitos de transmissão de TV do futebol, ténis, fórmula 1 e golfe.
É como o pão e o circo dos imperadores romanos, um instrumento para mascarar o despotismo saudita, baseado na severidade moral islâmica e na escravização das mulheres. E é, também, uma arma política para lavar a face externa do regime, condenado por constantes violações dos Direitos Humanos.
A vergonha das democracias está em renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.
Petróleo à parte, a Arábia Saudita é um país que nada produz e que nem sequer é capaz de garantir a sua própria segurança, sempre confiada aos Estados Unidos.
Apesar de pertencer ao clube dos 20 países mais ricos (G20), este Estado, cujo chão foi berço do Profeta Maomé, também não foi capaz de construir uma Administração e forças de segurança à altura dos tempos, como demonstra o método selvagem de controlo das suas fronteiras com um dos vizinhos do lado, o Iémen, onde os refugiados etíopes são recebidos a tiro.
O mesmo acontece com a Internet e as redes sociais, onde qualquer pequena dissidência pode ser punida com a pena de morte – e já cá não está para o contar o professor reformado Mohammed al-Ghandi, executado há pouco por mensagens críticas ao regime nas redes sociais, onde tinha apenas dez seguidores.
Para consumo externo, os cúmplices mais visíveis do regime autoritário saudita são atletas como Cristiano Ronaldo, Karim Benzema ou Neymar, que disputam as competições em troca de contratos fabulosos, num plano de negócios que se estende a todo o futebol europeu, aos grandes clubes – alguns, aliás, já são propriedade de capital árabe – e à própria FIFA, de domínio tão masculino como as autocracias do petróleo, das quais a Arábia é o principal produtor mundial.
O ajuste com o português mais famoso do mundo saiu-lhes fartamente: segundo Carlo Nohra, dirigente da Liga Saudita, “contratar Cristiano Ronaldo ajudou a transmitir a liga para 140 países e fez crescer as receitas em 650%.”
O negócio e todos estes investimentos fabulosos são realizados pelo fundo soberano saudita, alimentado pela Aramco, a empresa petrolífera que obteve os maiores lucros do mundo, em 2022, graças à guerra na Ucrânia.
E fazem também parte de uma estratégia energética que, perante a crescente pressão das políticas de redução de emissões poluentes, consiste em retardar, com a maior parcimónia possível e ao menor custo, a transição da sua economia apenas sustentada no petróleo bruto. Eis uma das faces mais sombrias do mundo multipolar em que estamos a entrar.
Ainda anteontem, exaltando a “identidade lusa” perante emigrantes portugueses no Canadá, o Presidente da República disse que “somos fado e alma, vira e corridinho, somos caldo-verde e bacalhau, somos tudo isso, somos Cristiano Ronaldo”.
Pois sim, também, acrescento eu, mas cuidado com as espinhas: por mais que admiremos as nossas celebridades, a vergonha dos democratas e das democracias está em ignorar o contexto e renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.
Jornalista
DN
Afonso Camões
19 Setembro 2023 — 00:27
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 3 dias ago