405: A grande lavandaria

 

🇵🇹 OPINIÃO

Muitas estrelas do futebol mundial acodem ali como moscas, atraídas por salários estratosféricos. Em pleno deserto, a Arábia Saudita é o novo El Dorado da bola, onde já militam 14 jogadores e cinco treinadores portugueses, entre os quais avulta a estrela maior dos garimpeiros, o nosso Cristiano, que concorda em emprestar a fama própria para branquear o crime alheio. Mas já lá vamos.

A maior monarquia muçulmana do mundo tem em curso uma operação sem precedentes, com investimentos calculados em 25 mil milhões de euros, o equivalente à soma dos nossos orçamentos anuais para a Saúde e Educação.

O objectivo é criar rapidamente uma indústria desportiva masculina – sublinho masculina – altamente competitiva e com impacto nos mercados globais de transferências e direitos de transmissão de TV do futebol, ténis, fórmula 1 e golfe.

É como o pão e o circo dos imperadores romanos, um instrumento para mascarar o despotismo saudita, baseado na severidade moral islâmica e na escravização das mulheres. E é, também, uma arma política para lavar a face externa do regime, condenado por constantes violações dos Direitos Humanos.

A vergonha das democracias está em renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.

Petróleo à parte, a Arábia Saudita é um país que nada produz e que nem sequer é capaz de garantir a sua própria segurança, sempre confiada aos Estados Unidos.

Apesar de pertencer ao clube dos 20 países mais ricos (G20), este Estado, cujo chão foi berço do Profeta Maomé, também não foi capaz de construir uma Administração e forças de segurança à altura dos tempos, como demonstra o método selvagem de controlo das suas fronteiras com um dos vizinhos do lado, o Iémen, onde os refugiados etíopes são recebidos a tiro.

O mesmo acontece com a Internet e as redes sociais, onde qualquer pequena dissidência pode ser punida com a pena de morte – e já cá não está para o contar o professor reformado Mohammed al-Ghandi, executado há pouco por mensagens críticas ao regime nas redes sociais, onde tinha apenas dez seguidores.

Para consumo externo, os cúmplices mais visíveis do regime autoritário saudita são atletas como Cristiano Ronaldo, Karim Benzema ou Neymar, que disputam as competições em troca de contratos fabulosos, num plano de negócios que se estende a todo o futebol europeu, aos grandes clubes – alguns, aliás, já são propriedade de capital árabe – e à própria FIFA, de domínio tão masculino como as autocracias do petróleo, das quais a Arábia é o principal produtor mundial.

O ajuste com o português mais famoso do mundo saiu-lhes fartamente: segundo Carlo Nohra, dirigente da Liga Saudita, “contratar Cristiano Ronaldo ajudou a transmitir a liga para 140 países e fez crescer as receitas em 650%.”

O negócio e todos estes investimentos fabulosos são realizados pelo fundo soberano saudita, alimentado pela Aramco, a empresa petrolífera que obteve os maiores lucros do mundo, em 2022, graças à guerra na Ucrânia.

E fazem também parte de uma estratégia energética que, perante a crescente pressão das políticas de redução de emissões poluentes, consiste em retardar, com a maior parcimónia possível e ao menor custo, a transição da sua economia apenas sustentada no petróleo bruto. Eis uma das faces mais sombrias do mundo multipolar em que estamos a entrar.

Ainda anteontem, exaltando a “identidade lusa” perante emigrantes portugueses no Canadá, o Presidente da República disse que “somos fado e alma, vira e corridinho, somos caldo-verde e bacalhau, somos tudo isso, somos Cristiano Ronaldo”.

Pois sim, também, acrescento eu, mas cuidado com as espinhas: por mais que admiremos as nossas celebridades, a vergonha dos democratas e das democracias está em ignorar o contexto e renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.

Jornalista

DN
Afonso Camões
19 Setembro 2023 — 00:27


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 3 dias ago

Loading

373: Feliz Ano Novo!

 

– Eu então acho que os anos deveriam começar no dia do são nunca, se é que ele existe…

🇵🇹 OPINIÃO

Eu acho isto, eu acho aquilo. No país do “achismo” todos achamos qualquer coisa, ainda que muito pouca, pelo menos para a maioria, mas já lá vou.

Eu, por exemplo, sou dos que acham que os anos deveriam começar no primeiro dia de Setembro e não como agora, em Janeiro, essa convenção gregoriana que levou mais de três séculos para realizar e que ainda hoje absolve governos do seu maior pecado, o de procrastinar na execução dos seus programas.

O ano deveria começar em Setembro, o mês que para muitos marca o regresso às suas ocupações habituais. O pessoal, na sua maioria, está na ressaca estival, embora resistam alguns sortudos que ainda têm dias para gozar.

Começar o ano agora seria muito mais apropriado e maneirinho que em Janeiro. Até porque esta primeira semana de Setembro, geralmente precedida pelas férias, representa a rotura mais importante no decurso dos 12 meses que compõem o calendário. Setembro é o mês do recomeço.

Depois de uma pausa mais longa, é o regresso ao trabalho, às escolas, às actividades de todos esquecidas durante algumas semanas, aos propósitos renovados, mas quase sempre incumpridos.

E é aqui que bate o ponto, o novo embate frontal com a realidade: a carestia de vida, para quase todos, a perda de poder de compra dos salários e das pensões que não acompanham a inflação; as taxas de juro que agravam os custos da habitação ou o acesso a ela, … – e, por consequência, um agravamento das tensões sociais em quase todos os sectores: da saúde aos transportes, da educação à justiça.

Ninguém perdoaria que uma maioria absoluta fosse tão escandalosamente desperdiçada. Até por isto, o ano deveria começar a 1 de Setembro.

Dados da OCDE inscritos no “Employment Outlook” revelam que os salários reais caíram praticamente em todos os sectores e países desenvolvidos, Portugal incluído, enquanto as margens de lucro cresceram mais do que os custos do trabalho.

E se as margens empresariais têm vindo a contribuir para a inflação, os salários, pelo contrário, acabaram por ter um efeito moderador nos aumentos de preços.

Se Portugal evitou o risco de uma maior espiral inflacionista, ao longo do último ano, isso deveu-se em grande parte ao comportamento dos salários e ao sacrifício dos trabalhadores.

As consequências estão aí: a perda de poder de compra afecta directamente o rendimento disponível das famílias e, desta forma, o consumo interno. E o enfraquecimento do consumo interno acabará por afectar também o crescimento económico, que será mais reduzido.

Apesar da instabilidade internacional e de certas previsões exageradamente derrotistas, a economia portuguesa, nos seus números mais gordos, até tem resistido melhor do que algumas das europeias.

Ainda assim, os desequilíbrios internos e o agravamento das desigualdades de rendimentos continuam a ser as ameaças que mais pesam sobre nós, quando se sabe que um em cada cinco portugueses está em risco de pobreza: quase dois milhões de pessoas, das quais 345 mil são crianças. E este risco afectaria o dobro dos desgraçados, não fossem os apoios sociais, alguns deles reforçados no último ano.

O embate com a realidade revela, porém, que é preciso ir mais além na medida desses apoios. E que é urgente recuperar o poder de compra dos salários, sem esperar mesmo pelo próximo orçamento do Estado – instrumento que, na melhor das hipóteses, não estará aprovado antes de finais de Novembro.

Não atender a esta emergência seria ignorar os riscos de um efeito ainda mais negativo sobre a desigualdade e a pobreza nos sectores com salários mais baixos.

Isto, claro, para além do previsível agravamento das tensões sociais, em particular para aqueles que nunca perdoariam que uma maioria absoluta pudesse ser tão escandalosamente desperdiçada. Até por isto, o ano deveria começar em 1 de Setembro. E já vamos, hoje, com cinco dias de atraso.

Jornalista

DN
Afonso Camões
05 Setembro 2023 — 00:29


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 semanas ago

Loading

342: As férias da minha vida

 

🇵🇹 OPINIÃO 🏖️

Férias e feira: talvez a mesma família etimológica explique que as férias me tragam à memória a Feira Popular da minha infância, a doçura de um tempo que lambia nuvens de açúcar, quando a idade não se atrevia ao Poço da Morte, à Casa do Terror ou ao Túnel do Medo.

À parte os carrinhos de choque, para “mais uma corrida, mais uma viagem”, e muito antes de me deixarem subir a Montanha-Russa que se enroscava em incríveis cabriolas, não restava outra opção que ir às farturas e passar o tempo na Sala dos Espelhos Mágicos.

Aí, boquiaberto, descobria-me no reflexo daquelas magníficas deformações, ora quando a figura se alongava de tal forma que a cabeça diminuta quase não cabia no extremo superior do espelho, ora quando a magia do vidrado me devolvia a imagem de anão gordo a toda a largura do engenho.

A diversão inocente oferecia a oportunidade de mudar de corpo, a tentação de esquecer que era eu mesmo que estava do lado de fora do espelho.

Quando em férias e vagueando no telemóvel, em algumas das redes sociais, é a essa Sala dos Espelhos que por vezes regresso, testemunha ocular de centenas de fotografias todos os dias iguais: aquela pose na praia, as duas taças de vinho branco a embater contra o horizonte de um pôr-do-sol inesquecível, a Torre Eiffel ao fundo na selfie de um casal enamorado, aqueles pés com pedicure na areia branca imaculada, ou aquela família feliz – que porventura não é assim tão feliz – de sorriso aberto como se todos tivessem acabado de ouvir a melhor piada das suas vidas.

Em suma: a exibição ao vivo desse desejo mimético de nos mostrarmos felizes, nessa padronização perversa da felicidade oferecida pelos escaparates digitais.

Quando a idade não se atrevia ao Poço da Morte, à Casa do Terror ou ao Túnel do Medo, e muito antes de me deixarem subir a Montanha-Russa que se enroscava em incríveis cabriolas, não restava outra opção que ir às farturas e passar o tempo na Sala dos Espelhos Mágicos.

Como foram as férias da tua vida? Sem foto, nunca existiram. Ainda não gozaste as férias da tua vida? Com foto, faz por existirem. Há mais de um século, a publicidade da Kodak garantia que “umas férias sem Kodak são umas férias perdidas”.

A ideia era criar a obrigação de fotografar o vivido. E fotografar significava ter rolo, accionar o carreto e levar à revelação química que imprimia em papel para um círculo limitado de pessoas.

Agora, na pontinha do dedo exibimos fotos para serem vistas por centenas, às vezes milhares, amiúde maquilhadas com filtros graciosos que adoçam rostos e arredores, partilhadas com outros, conheçamos ou não, calculando impacto e visualizações.

Nas redes sociais, nessa ampliação da Sala dos Espelhos, ambos, fingimento e quantidade, parecem coligados. É como se quiséssemos converter-nos na própria imagem.

As fantasias do ego, motor das redes sociais, levam-nos diante desse espelho hipotético e distorcido para nos convencermos de que podemos ser outros, convertidos à ideia que queremos transmitir de nós mesmos.

Depois daquela frase batida a lembrar que mais importante que chegar é o caminho, agora nem sequer importa chegar, o que importa é mesmo a fotografia. E, porventura, de tanto olhar a mesma foto, talvez consigamos a magia de acreditar nela.

Aliás, em breve, o Google vai esfregar-nos nos narizes as fotos deste verão e, verdade ou fingimento, vai parecer que fomos felizes. Há quem, no entanto, não saia, nem volte de lugar nenhum. Excluídos da festa, da feira ou das férias, riscam os dias para que voltem os que partiram, nem que seja para se sentirem menos sozinhos.

Ainda assim, para os mais bafejados, gozem essas férias como se não houvesse amanhã. Boa sorte para os que vão. E um brinde para os que voltam. Encontramo-nos em Setembro.

Jornalista

DN
Afonso Camões
21 Agosto 2023 — 23:47

Boas férias!



Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 1 mês ago

Loading

331: O Rei da Batata a Murro

 

🇵🇹 OPINIÃO

À hora a que vos escrevo começa o arraial em Quarteira, a tradicional Festa do Pontal com que o PSD inaugura a nova temporada política.

É o início da etapa decisiva para Montenegro, a ganhar balanço para a maioria absoluta na Madeira, chegar à frente nas Europeias, daqui a nove meses e, porventura, ganhar aí o estatuto de alternativa que lhe permita o regresso ao poder após oito anos de jejum.

E por falar em jejum, há de perdoar-me o secretário-geral social-democrata se lhe disser quão redutora foi a escolha da ementa da noite, já que o porco no espeto deixou de fora algum eleitorado prosélito do Alcorão.

Antes o velho frango na brasa, tão popular no verão como a toalha de banho, que também serve para dar caça às malditas melgas.

Entre nós, comer frango na brasa aos domingos e feriados é um fenómeno gastronómico e identitário que vai muito além do hábito, quase universal, de comer de galo nos dias festivos – coisa da classe média, essa a quem nunca falta apetite e sem a qual não se ganham eleições.

À parte o Frango à maricas, aquele mais simples em que se entala um limão no rabo do bicho, temperado apenas com sal e manteiga antes de ir ao forno, sobre o frango na brasa há listas e classificações para todo o género de procura, desde as entregas ao domicílio, às dicas para fazer o melhor em casa.

Mas nada disso me faz sentido: o melhor frango é mesmo na brasa, e mais do que comê-lo – sabem as antigas “donas-de-casa” – é não ter de o cozinhar. O frango assado não é uma receita, é um estilo de vida. E nunca coloca questões de género, porque nunca sabemos se era frango ou franga.

Democrática, a batata a murro está ao alcance de todos e é boa coligação para qualquer alternativa de churrasco, até o político. Que o diga o nosso Rei da Batata a Murro, que mora ali à direita de quem sobe da Caniçada para o Santuário do S. Bento da Porta Aberta, ainda bem longe deste Pontal.

Galo e galinha viajaram para a Europa, vindos do remoto sudeste asiático, onde, no seu estado selvagem, de crista vermelha e esporão pontiagudo e carnívoro, esse despertador com pernas é assado e servido em mesas festivas há mais de dois milénios, sendo considerado entre nós uma iguaria de luxo, ao alcance de poucos, até há pouco mais de 50 anos.

A partir dos Anos 60, com a emergência da avicultura industrial e o aumento da capacidade de consumo da classe média, frangos e galinhas deixaram de ser um meio de ter ovos o ano todo e passaram a ser vistos como carne, a pontos de cada português consumir em média mais de 30 quilos de frango por ano, o que faz de nós campeões em título na União Europeia.

O consumo disparou com a chegada a Portugal de um novo modelo de assador, inventado por um catalão no tempo da milícia republicana.

O engenho permitia grelhar em série, e o marketing desse tempo aproveitou para dizer às mulheres que, a partir de então, aos domingos e feriados, já havia uma alternativa a ficar em casa a cozinhar, enquanto eles rumavam ao café para discutir a bola.

Ora, pensando já no próximo arraial social-democrata, perdoar-me-á ainda o secretário-geral se à ementa proposta lhe juntar um acompanhamento.

Sugiro a batata a murro, receita tipicamente nacional: as batatas, de preferência jovens e tenras, são cozidas ou assadas com pitada de sal, e levam depois uma pancada para abrirem, antes de temperadas com azeite e alho, a que eu gosto de acrescentar alecrim.

Entre nós, temos até o Rei da Batata a Murro, em Terras de Bouro, junto ao Rio Caldo: é ali à direita de quem sobe da Albufeira da Caniçada para o Santuário do S. Bento da Porta Aberta, ainda bem longe deste Pontal.

Esta batata a murro, para além de democrática, ao alcance de todos, acompanha bem as diferentes alternativas de churrasco – do frango ao bacalhau – logo, faz sempre boa coligação. Bom apetite!

Jornalista

DN
Afonso Camões
15 Agosto 2023 — 00:19

– E aproveitando a dica do cronista “… À parte o Frango à maricas, aquele mais simples em que se entala um limão no rabo do bicho, temperado apenas com sal e manteiga antes de ir ao forno“, aqui fica, para quem interessar, a receita em apreço:

Frango Paneleiro

Ingredientes:

– 1 frango inteiro
– 2 colheres de sopa de Massa de Pimentão
– 2 colheres de sopa de alho picado congelado
– 1 limão inteiro com casca
– sumo de limão a gosto
– tempero Espiga “Cebola & Alho”
– 1 cubo Knorr para Aves com Limão (Edição Limitada)
– margarina q.b.

Preparação:

1.- Lavar o frango e colocá-lo num Pyrex. Entretanto, fazer um preparado com a massa de pimentão, o alho picado, as gotas de limão e o tempero Espiga “Alho & Cebola” ou outro a gosto. Misturar muito bem todos os ingredientes até ficar uma massa.

2.- Picar o frango e o limão com um garfo em redor deles (frango e limão). Espetar com o cubo Knorr e o limão inteiro para dentro do frango (mesmo morto não se livra da fama…) e depois pincelar o frango com o preparado da massa de pimentão. Não esquecer os sovacos das asas, pernas e todo à volta para ficar vem besuntado. Deixar a marinar cerca de 60 a 90 minutos.

3.- Na altura da verdade, ligar o forno a 200º., voltar a besuntar o melro com o resto do preparado da massa de pimentão, colocar por cima umas nozes de margarina a gosto e assá-lo durante 40 minutos ou até ficar douradinho (o tempo varia de forno para forno).

4.- Pode depois aproveitar o limão para espremê-lo por cima do frango depois de saído do forno. Servir de imediato, acompanhado com arroz branco ou outra guarnição a gosto.
Bom apetite!


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 1 mês ago

Loading

323: Esgotada a água benta

 

🇵🇹 OPINIÃO

Esgotada a água benta dos últimos dias, vivemos o tempo mais quente e seco desde que há registos e também escasseia a água propriamente dita: a que bebemos e a que consumimos na rega, na indústria e no banho.

A água é a mais antiga das nossas memórias, e quanta desperdiçamos! Lembro o meu avô, Francisco, no tempo em que as férias me devolviam à aldeia, e a falta de água já era uma das faces da invariável injustiça do mundo.

Todas as noites, depois de dar de comer ao gado e antes de se deitar, o velho endireitava-se no curral para olhar o céu, encontrar sinais de uma chuva que raramente vinha quando mais falta fazia. E quando ela finalmente caía, mansa e copiosa sobre a horta, era ouvi-lo murmurar: “Bendita água, louvado seja Deus!”

A água era um prodígio imprevisível. Caía do céu ou brotava do interior obscuro da terra, mesmo da própria rocha, como num milagre bíblico, de poços e nascentes que se regiam pelas suas próprias leis secretas. A água era a divindade cruel, que tanto podia abençoar o esforço do trabalho quanto arrasá-lo.

E havia fontes muito celebradas pela limpidez e pureza das suas águas, em áreas arborizadas, frescas no verão, onde o gentio guardava a sua vez para encher os cântaros.

Entre secas mais severas e inundações catastróficas, está aí a emergência climática e, diante dela, de toalha estendida, há todo um mar que separa os profetas dos carapaus de corrida.

A água para rega e para consumo era administrada segundo técnicas ancestrais, transmitidas desde a antiga Mesopotâmia e aperfeiçoadas depois pela ocupação mourisca: desde a picota e da nora, às levadas e açudes – engenhos tão eficientes na sua simplicidade, como no desenho dos cântaros que se levavam para casa antes da chegada da água da rede pública, que nas nossas aldeias só se generalizou no final dos Anos 70 do século passado.

Foi nessa época que vi pela primeira vez uma piscina no seu luxuoso azul. Esse azul de cloro que me surpreendeu tanto, quanto a facilidade dos ociosos que nele nadavam agilmente e depois se deitavam ao sol, em vez de se abrigar dele, como nós, na minha aldeia.

Em poucas décadas, com o abandono do mundo rural, desleixámos antigas sabedorias. O mato substituiu antigas hortas de cultivo, e a floresta desordenada vai ardendo em alternância, deixando os solos sem capacidade para reter humidade e à mercê da erosão, enquanto o leito das nossas ribeiras é tomado de vegetação que potencia as cheias e inundações quando vem a tempestade. Há pelo menos duas gerações que desgovernamos um dos nossos principais recursos.

Em pouco tempo desapareceu aquela severa economia da água, e também a reverência perante ela. A variedade de culturas de sequeiro – cereais, olivais, vinhas – está a dar lugar a culturas de regadio intensivo, que exigem grandes quantidades de fertilizantes químicos e pesticidas.

Aqui e acolá, onde antes se cultivava, há hoje muita construção ilegal e extensões de prados relvados que consomem muito mais água do que a colheita perdida de hortaliças e árvores de fruto. Os aquíferos vão-se esgotando, tal como o fio de água corrente das famosas fontes para onde peregrinávamos como a modestos santuários pagãos.

É claro que ninguém que antes tenha conhecido, por dentro ou de perto, a dureza da vida quer voltar a ela.

Mas há lições que precisam ser aprendidas, agora que a aceleração da mudança climática está a arruinar a miragem da abundância ilimitada em todos os lugares: a imemorial consciência da medida e dos limites, a gratidão para com os dons da natureza, os essenciais, aqueles que não se recuperam se se perderem – a água e o ar, que por tantos anos deixámos desperdiçar e envenenar pela ganância de alguns e pela negligência de quase todos.

Entre secas mais severas e inundações catastróficas, está aí a emergência climática e, diante dela, de toalha estendida, há todo um mar que separa os profetas dos carapaus de corrida.

Jornalista

DN
Afonso Camões
08 Agosto 2023 — 00:23


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 meses ago

Loading

306: Quem não gosta deste Papa

 

🇵🇹 OPINIÃO

Alguns dos meus amigos cristãos não gostam ou pelo menos desconfiam do Papa que amanhã aterra em Lisboa. E gostam menos, ainda, desde que o jesuíta argentino – que escolheu para si o nome de Francisco, o santo dos pobres e amante da natureza – nomeou há dias 21 novos cardeais, entre eles o nosso Américo.

Ao contrário do hábito secular do Vaticano de nomear sobretudo cardeais europeus, desta vez o Papa escolheu vários que vêm da periferia, como ele veio, e entre os novos poderá estar algum que lhe suceda.

A maior desconfiança vai para a nomeação do seu compatriota e amigo de toda a vida, Víctor Fernández, que com ele comunga de uma visão da Igreja na linha da renovação, mas mais fiel às suas origens – uma Igreja onde as mulheres gozavam do mesmo poder que os homens, onde o celibato era desconhecido, onde o eixo do cristianismo era o amor e só o amor e, sobretudo, o cuidado com os mais pobres e marginalizados.

Pois bem, Francisco acaba de o colocar à frente do departamento mais importante do Vaticano, o da Defesa da Fé, até agora sempre nas mãos de importantes intelectuais dogmáticos e teólogos conservadores da Igreja, como o falecido papa alemão Joseph Ratzinger, encarregado de condenar os modernos teólogos da libertação.

A inesperada nomeação do amigo para Prefeito da Congregação da Fé, triste lembrança da Santa Inquisição, não é certamente simples coincidência.

Daí, os sectores da Igreja ainda herdeira do velho e severo Concílio de Trento, e que gostaria de enterrar o progressista Concílio Vaticano II, não verem com bons olhos os novos horizontes teológicos abertos por este Papa ou pelo seu amigo e cardeal Fernández, que nadam nas mesmas águas em busca de uma Igreja dos excluídos, da essência da fé revolucionária da primitiva igreja dos mártires.

Antes de Francisco, alguém imaginaria que a Igreja poderia abençoar o sacramento do matrimónio para divorciados? Ou abençoar um casal de homossexuais? Ou a pensar abolir o celibato eclesiástico e introduzir as mulheres no sacerdócio?

Depois da firme condenação de todos os casos de pedofilia, alguns vêem em Francisco pouco menos que um herege, pela sua abertura aos novos tempos, e não perdoam ao amigo, que é hoje o guardião da doutrina, aquele livro sobre “a arte de beijar” (Cura-me com a tua boca, publicado há 20 anos), onde ele exalta a importância do encontro de corpos, do abraço e do beijo como expressões do amor, algo de sagrado que deve respeitar a liberdade do outro da qual não somos donos.

Antes de Francisco, alguém imaginaria que a Igreja poderia abençoar o sacramento do matrimónio para divorciados? Ou abençoar um casal de homossexuais? Ou a pensar abolir o celibato eclesiástico e introduzir as mulheres no sacerdócio?

Com este Papa e os novos cardeais da sua escolha, estamos diante de figuras da Igreja e do Vaticano que quebram dogmas do passado, que não se definem como progressistas ou conservadores, mas como discípulos devotos de uma religião universal, uma comunidade onde cabem fiéis e pecadores, e na qual se acolhem todas as expressões do amor, sem estigmas ou proibições, nem mesmo as sublimadas.

Uma igreja como a que busca Francisco, sem medo do corpo ou de discutir a sexualidade, mais do que perseguir hereges doutrinários, é uma comunidade mais carismática do que teológica, porventura mais humana que divina.

Não é uma igreja progressista e mundana, mas está certamente mais próxima das dores e alegrias dos seus fiéis, mulheres e homens capazes e gostosos de um bom abraço, como o nosso Américo.

Jornalista

DN
Afonso Camões
01 Agosto 2023 — 00:25


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 meses ago

Loading

280: O pecado da castidade

 

🇵🇹 OPINIÃO

Não sendo o Estado da Nação o mais sexy dos debates, dou por mim a olhar para o título de uma reportagem onde se diz que nós, os humanos, temos cada vez menos sexo, um sobressalto bem maior que uma comissão de inquérito ou que uma busca domiciliária para consumo das televisões.

Pelos vistos, menos sexo é o que acontece nos países mais desenvolvidos, esses onde ainda se fazem estudos fiáveis.

Entre nós, é mais conversa que estudo, tirando aquele mais recente, no âmbito de um mestrado da Universidade Lusófona, onde 48% dos nossos compatriotas refere ter actividade sexual todas as semanas, e um em cada cinco confessa ter “um problema”.

Se aquelas 1624 pessoas inquiridas, com idades compreendidas entre os 18 e os 83 anos, sendo que a idade média de quem participou é de 40 anos; se aquelas pessoas falaram verdade, vá lá, enfim, estamos dentro da média conhecida, mas em decadência.

Aliás, uma outra investigação realizada nos Estados Unidos revela que, nas últimas décadas, a média anual de relações sexuais caiu de 62 para 53, enquanto estudos semelhantes produzidos na Alemanha, Austrália e Finlândia corroboram a tendência em baixa, tal como os certificados de aforro ou uma bandeira sem vento.

Compartilhado, o sexo tem uma vantagem imbatível sobre o onanismo: conhecem-se pessoas, o que não é coisa pouca, neste mundo.

Cada um e cada uma saberão de si, mas pelos vistos não estamos melhor. E encontramos explicações para tudo: desde a sensação de inferioridade no desempenho próprio por comparação com a omnipresente e fantasiosa pornografia; à perplexidade masculina perante a crescente emancipação da mulher; da instabilidade no trabalho ou a falta de casa própria; ou ao aumento das depressões e ao abuso de alguns antidepressivos que baixam a libido.

Tudo isto quando ainda outra investigação, com dados recolhidos em 53 países do mundo, revela que a fertilidade masculina tem vindo a deteriorar-se e que qualidade do esperma humano baixou para metade nos últimos 50 anos.

Certeiro, James Baldwin, um falecido colega americano especialista em inventar frases para podermos citá-lo, dizia ter descoberto que o dinheiro é exactamente como o sexo: parece muito mais importante quando não se tem. Dirão muitos que o sexo move montanhas, mas parece que, na realidade, o desejo erótico anda tímido e volátil – como os salários.

E acontece, por vezes, que ao incomodá-lo ele declara greve – como na CP. A própria palavra sexo está a bater em retirada. Onde antes se falava na distinção de sexos, hoje diz-se diferença de “géneros”.

É certamente uma tendência cuja origem remota encontramos no puritanismo vitoriano dos britânicos, durante o século XIX, quando as classes dominantes evitavam dizer sexo porque essa palavra estava contaminada pelo juízo hipócrita que a sua prática merecia.

Para a substituir, escolheram o eufemismo gender, que um século depois chegaria ao português traduzido como “género”.

O velho Aldous Huxley, do Admirável Mundo Novo, bem profetizava que “a castidade é a mais anormal das perversões sexuais”, pelo que a todas essas ansiedades só faltava mesmo acrescentar as fantasias da moda, com a Inteligência Artificial (IA).

Aliás, leio na mesma reportagem que há por aí uma miríade de novas aplicações de IA através das quais se podem ter relacionamentos amorosos em forma virtual.

Entre umas e outras, enfim, o maior risco é o de deitarmos a perder, por desperdício, uma das mais completas, essenciais e democráticas alegrias do ser humano: a maravilhosa dádiva do encontro com um desejado corpo alheio – e se for amado, então, é o paraíso.

Além de que, se for compartilhado, o sexo tem uma vantagem imbatível sobre o onanismo: conhecem-se pessoas, o que não é coisa pouca, neste mundo.

Jornalista

DN
Afonso Camões
25 Julho 2023 — 00:23


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 meses ago

Loading

246: Uma espingarda na parede

 

É PRECISODESNAZIFICARA MOSCÓVIA!
PARA SEGURANÇA DA HUMANIDADE!

– Quando um país invasor, ataca um outro país soberano, seu vizinho, por psicopatia do dirigente máximo invasor e alienação dos fantoches primatas ao seu serviço; quando o invasor utiliza munições de fragmentação contra o invadido; quando o invasor comete crimes de guerra contra o invadido – bombardeamentos, destruição de infra-estruturas civis, lares, hospitais, creches, residências, etc. -; quando o invasor assassina civis de todas as idades desde bebés a idosos; quando o invasor comete torturas sobre os invadidos; quando o invasor comete actos de roubo de bens sobre o invadido e muitos outros vandalismos bárbaros, repugnantes e indignos de gente civilizada, ao arrepio da Carta das Nações Unidas, do Direito Internacional, da Convenção de Genebra, que validade moral têm todos os que falam contra as munições de desfragmentação e acções de defesa do invadido contra o invasor terrorista?

🇵🇹 OPINIÃO

Se no primeiro ato penduras uma espingarda na parede, pelo menos no último ato ela deve ser disparada. Se não, não a coloques lá.

O conselho de Anton Tchekhov aos jovens do teatro que se ensaiavam na arte da escrita dramática converteu-se numa lição incontornável para quem se dedique à ficção, mas também à guerra.

O mestre russo, que muitos reclamam como ucraniano, explicava assim que numa narrativa não devem introduzir-se elementos supérfluos que não vão ser usados depois. Muito menos quando se trata de objectos capazes de condicionar o curso dos acontecimentos, como uma arma.

E é de mais armas que se falará hoje em Vilnius, capital da Lituânia, paredes-meias com a Bielorrússia, em mais uma cimeira da OTAN, para onde viajou o nosso António Costa, e onde a estrela é Joe Biden, o encenador de turno na Aliança Atlântica.

Os debates desta cimeira irão centrar-se no reforço de apoios à Ucrânia — mesmo sem convite formal para a adesão à Aliança — no acréscimo do investimento em Defesa, e no diferendo Suécia-Turquia sobre quem pode ser sócio da organização.

Mas pronta para entrar em cena, depois da autorização de Biden, há uma nova arma destinada à frente de guerra — a bomba de fragmentação, cujo uso, fabrico, armazenamento e transferência foi proibido pela Convenção de Oslo, em 2008, uma decisão então assinada por 120 países, mas nunca assumida pelos Estados Unidos, Rússia e Ucrânia.

A iminente utilização deste tipo de bomba — que dispersa os explosivos, parte dos quais permanecem por detonar e depois funcionam como minas terrestres, especialmente perigosas para os civis, mas também para os exércitos que as utilizam — é politicamente inaceitável e moralmente repugnante, mas nem por isso capaz de dividir os aliados, mesmo tratando-se de crime de guerra.

Nesta, como noutras, todas as partes, mesmo as que reclamam razão moral, costumam cometer crimes de guerra, embora geralmente em grau diferente, dependendo de quem é o agressor ou a vítima. Mas não há guerras justas, senão em legítima defesa, quando se combate pela sobrevivência.

Assim o estabelece a Carta das Nações Unidas, da qual a Rússia é fundadora, signatária e fiadora como membro permanente do Conselho de Segurança.

E tão injustas como a maior parte das guerras são a forma e o método como são conduzidas. Tal é o caso do recurso às bombas de fragmentação, agora pedidas pela Ucrânia, cujo arsenal de munições tem vindo a esgotar-se.

No ponto em que estamos, é impossível predizer o curso e a narrativa da guerra que se trava em solo europeu. O que sabemos é que, mesmo mantendo as ogivas nucleares na prateleira, a quantidade de armas convencionais nas mãos de civis e grupos paramilitares marcará o futuro da região por muito tempo.

Basta o mau exemplo de países que toleram a posse de armas de alto calibre, como nos Estados Unidos onde, só em 2020, as armas de fogo vitimaram mais de 45 mil pessoas, das quais cerca de 2.000 nunca chegarão à idade adulta.

O velho mestre dramaturgo bem avisou que, numa peça de teatro, se houver uma espingarda pendurada na parede, em algum momento ela deve ser disparada. Na narrativa da guerra, as armas utilizadas marcarão o seu desfecho.

E restam duas ironias: a de Putin é que ele invadiu a Ucrânia para afastar a OTAN da Rússia, e o resultado é que ela está mais próxima, com a adesão da Finlândia e da Suécia; a ironia do Ocidente é que a decisão de Helsínquia e agora de Estocolmo de aderirem à Aliança Atlântica aumenta a sensação de insegurança em todo o Continente. Que outras mais armas haverá na parede?

Jornalista

DN
Afonso Camões
11 Julho 2023 — 00:45



Web-designer, Investigator, Astronomer
and Digital Content Creator


published in: 2 meses ago

Loading

231: Lembram-se da Cruella De Vil?

 

🇵🇹 OPINIÃO

Empancado entre dois andares, o elevador social onde seguia a classe média parou há muito, e quantos vão lá dentro esperam angustiados que o engenho retome a marcha, temendo embora que ele não suba, mas desça. Por ora, os salários estão a perder poder de compra enquanto os lucros de grandes empresas, sobretudo as financeiras e nas áreas da energia e distribuição, têm vindo a disparar.

Dir-se-ia que faz parte do modelo de crescimento, mas a tão rara quanto improvável sequência de uma pandemia, uma guerra e a erupção inflacionista dos bens de primeira necessidade estão a aumentar as desigualdades, e fazem do nosso tempo o mais selvagem da história moderna, como se este século XXI tivesse envelhecido antes mesmo de chegar aos 25 anos.

Isto, quando passa uma década desde a publicação de um livro de extraordinária projecção intelectual intitulado “Capital in the 21st Century”, do jovem economista francês Thomas Piketty.

Acompanhado de grande aparato matemático e histórico, vendeu centenas de milhares em todo o mundo e alguns dos seus pares chegaram a reclamar para ele o Prémio Nobel da Economia.

Entre as premissas da obra, avultam três: as desigualdades estão no ADN das sociedades contemporâneas; as desigualdades não são inevitáveis nem consequência das inexoráveis leis da economia, mas de decisões políticas e estratégicas; as desigualdades não são sustentáveis, logo, a prazo, nem sequer lucrativas.

Este livro, a que se seguiram vários outros do mesmo autor, incorpora teses que fizeram estremecer a ordem estabelecida : 1) enquanto os rendimentos do capital aumentarem mais do que o crescimento económico, mais aumenta a desigualdade; 2) a desigualdade é uma tendência de longo prazo que já atravessa dois séculos, com únicas interrupções nos anos da revolução keynesiana, das políticas contra a Grande Depressão e o nascimento do Estado Social; 3) a desigualdade é tão grande que para combatê-la com eficácia será necessário lançar impostos confiscatórios (de até 80% da riqueza) aos mais ricos e políticas distributivas através da despesa por via orçamental; e 4) concentrações extremas de riqueza ameaçam os valores da meritocracia, da justiça e da coesão social em que se baseia a democracia.

Logo, o que está em perigo é a democracia. E é aí que estamos, basta ver e ouvir à nossa volta.

Diabolizadas pelos meios de comunicação mais conservadores, as teses de Piketty permanecem malditas, enquanto as desigualdades continuam a crescer e, nalguns casos, a um ritmo mais rápido do que antes.

“Empancado entre dois andares, o elevador social onde seguia a classe média parou há muito, e quantos vão lá dentro esperam angustiados que o engenho retome a marcha, temendo embora que ele não suba, mas desça.”

Nem de propósito, e a pretexto de combater a inflação, da reunião anual que juntou em Sintra os dirigentes do Banco Central Europeu resultou o anúncio de que as taxas de juro vão continuar a subir (já lá vão oito vezes num só ano), e manter-se elevadas por mais tempo que o previsto.

É um agravamento que penaliza sobretudo os mais pobres e os dependentes do crédito hipotecário, um fenómeno que, só em Portugal, atinge mais de um milhão de famílias.

Para estes banqueiros, a culpa é do aumento dos salários reais, pelo que é preciso acabar com os apoios extraordinários que os governos criaram para mitigar a crise.

E se ninguém espera que o carrasco que opera a guilhotina lamente o sangue derramado, no final da reunião, a própria presidente do BCE, Christine Lagarde, ufanava-se dizendo que as suas decisões “já estão a afectar gradualmente toda a economia”.

Ao ouvi-la, armada em beau chic, como não lembrar a personagem vaidosa e egocêntrica da Cruella De Vil, vilã do cinema que fez furor entre as produções Disney, sequestrando dálmatas para lhes fazer do canastro casacos de pele?

Jornalista

D.N.
Afonso Camões
04 Julho 2023 — 00:19



Web-designer, Investigator, Astronomer
and Digital Content Creator


published in: 3 meses ago

Loading

213: Quem se deita com cães, levanta-se com pulgas

 

🇵🇹 OPINIÃO

Cão que arrebita o rabo, não é por ti, mas pelo bocado. Onde quer que haja Estados falidos, matérias-primas, minerais preciosos e jovens sem presente nem futuro, é muito provável que encontremos Wagner.

Mas cuidado, não confundir este com o compositor alemão, autor de outra “Cavalgada” e a quem Tchaikovsky, o russo seu contemporâneo nos salões de São Petersburgo, não venerava nem comia da mão.

O que agora mordeu a mão ao dono, esse de quem se fala, é duro de ouvido e só toca bombarda, não a antepassada do oboé, mas a música de bombas e metralha: este Wagner é um exército privado ao serviço de Vladimir Putin e cujo cão-de-fila, Yevgeny Prigozhin, acaba de ferrar as nádegas do patrão, ano e meio depois de andar a semear terror e morte na Ucrânia.

Wagner soa tanto a antigo como pura modernidade. Recruta mercenários como o faziam os senhores da guerra medieval, e manda-os matar e morrer por um soldo miserável em benefício do seu chefe, Prigozhin, ex-presidiário e fornecedor do Kremlin, outrora festeiro e agora carne para canhão.

Goza de uma notoriedade única no mundo do crime, e do seu cadastro internacional constam o uso das armas mais sofisticadas, incluindo as híbridas da desinformação; a venda de segurança a ditadores em todo o mundo, especialmente em África e no Médio Oriente, em troca de acesso em regime de rapina a depósitos de urânio, diamantes ou terras raras; e, de caminho, escapar ao escrutínio da justiça e das organizações internacionais que há anos lhe prometem o açaime.

Nascido em 1961, quando São Petersburgo se chamava Leningrado, Prigozhin iniciou-se nos negócios a vender cachorros, bifanas e coiratos, e enriqueceu à boleia da turbulenta desintegração da União Soviética, lançando-se no catering e na gastronomia de alto nível para a nova elite russa, onde encontrou Putin, já metido na política, depois de ter passado pelos serviços secretos russos.

Em troca de fidelidade canina nunca regateada, foi este que o adoptou e protegeu durante largos anos, e fez com ele como fazem os caçadores menos afoitos: meter os cães na moita e ficar de fora.

Por Putin, foi Prigozhin o criador da chamada “fábrica de troles” (perfis falsos nas redes sociais) acusada de interferir em diversas campanhas eleitorais, entre elas a de 2016, que deu a vitória ao magnata republicano Donald Trump.

E foi este mesmo Prigozhin quem, em 2014, com a invasão da Crimeia, criou e expandiu a milícia privada de mercenários Wagner, cuja empresa-mãe funcionou como unidade secreta do exército russo, com operações na Ucrânia, Síria, Líbia, Venezuela, Sudão, República Centro-Africana, Mali, Moçambique e novamente na Ucrânia.

Açaimado o cão que mordeu as nádegas ao dono, falta saber o que acontece à matilha. Ferido na autoridade que ganhou em 23 anos de poder na Rússia, Putin já não pode meter os cães na moita e ficar de fora.

Qual é o cão, tal é o dono. Foi já aqui, durante a guerra em grande escala, que este chamado “Grupo Wagner” (que nunca existiu oficialmente, e de que o próprio Prigozhin negava fazer parte, já que a Rússia proibia mercenários) deixou de actuar na completa obscuridade, convertendo-se de braço paramilitar oculto do Kremlin na sua face operacional mais visível.

E foi assim até sábado, quando decidiu tentar marchar sobre Moscovo e morder a mão que lhe deu de comer.

Sejam quais forem as consequências desta rebelião, Putin enfrenta o maior desafio dos seus 23 anos de poder na Rússia. É a sua autoridade e a estabilidade interna da Federação que estão em causa. E, por uma vez terá aprendido que “quem com cães de deita com pulgas se alevanta”.

D.N.
Afonso Camões
27 Junho 2023 — 08:23



Web-designer, Investigator, Astronomer
and Digital Content Creator


published in: 3 meses ago

Loading