Datada de 14 de Dezembro de 1942, missiva foi escrita pelo padre Lother Koenig, um jesuíta que fazia parte da resistência antinazi na Alemanha e que assim deu conta do planos de Hitler ao secretário pessoal do Papa no Vaticano, o padre Robert Leiber, também alemão.
Papa Pio XII
O Papa Pio XII conhecia os planos nazis de extermínio de judeus – Holocausto – provavelmente já em 1942. De acordo com uma carta encontrada nos arquivos do Vaticano e reproduzida no jornal italiano Corriere della Sera, o líder da Igreja Católica, entre 1939 e 1958, não só foi informado como saberia da matança de Belzec, o que entra em conflito com a posição oficial da Santa Sé, que nunca condenou explicitamente o regime nazi e a perseguição ao povo judeu.
A carta datada de 14 de Dezembro de 1942 foi escrita pelo padre Lother Koenig, um jesuíta que fazia parte da resistência antinazi na Alemanha da época e que assim deu conta do planos nazis ao secretário pessoal do Papa no Vaticano, o padre Robert Leiber, também alemão.
No documento, Koenig confirma que tinha informações sobre a morte de cerca de seis mil polacos e judeus nas “fornalhas SS” no campo de Belzec, perto de Rava-Ruska, território polaco ocupado pelos alemães.
A carta foi descoberta por um arquivista interno do Vaticano e tornada pública, com o anuência dos funcionários da Santa Sé, dada a “enorme” importância do documento que mostra que o Vaticano tinha informações de que os campos de trabalho eram, na verdade, fábricas de morte.
“A novidade e a importância deste documento derivam de um facto: agora temos a certeza de que a Igreja Católica na Alemanha enviou a Pio XII notícias exactas e detalhadas sobre os crimes que estavam a ser perpetrados contra os judeus”, disse o arquivista Giovanni Coco ao jornal Corriere, que publicou um artigo com o título – “Pio XII Sabia“.
Questionado sobre se a carta mostra que o Papa sabia ou se apenas se supunha que sabia, uma vez que a correspondência foi trocada com o seu secretário pessoal, o arquivista do Vaticano respondeu: “Sim, e não só a partir de então”.
Isto, porque a missiva, que faz referência a dois outros campos de Concentração – Auschwitz e Dachau -, remete para outras cartas trocadas entre Koenig e Leiber, que desapareceram ou ainda não foram encontradas.
O documento fazia parte do manancial que estava na Secretaria de Estado do Vaticano e apenas recentemente entregue aos arquivos centrais, depois de, em 2019, o Papa Francisco dizer que “a Igreja não tem medo da história” e ordenar a abertura dos arquivos do tempo da II Guerra Mundial. O que aconteceu em Março de 2020.
Tema de conferência da Universidade Pontifícia Gregoriana
A carta vem acrescentar mais polémica ao controverso processo de beatificação de Pio XII, iniciado em 1967. O silêncio do líder da Igreja Católica entre 1939 e 1958 perante os crimes nazis tem sido objecto de acaloradas discussões entre historiadores, com alguns a acusarem-no de não ter denunciado os campos de concentração nazis, enquanto outros consideram que terá trabalhado, nos bastidores, para salvar as vidas de muitos judeus.
Isso mesmo vai estar em debate numa conferência internacional, organizada pela Universidade Pontifícia Gregoriana, sob o tema – “Os novos documentos do Pontificado do Papa Pio XII e o seu significado para as relações judaico-cristãs: Um diálogo entre historiadores e teólogos”.
O encontro vai ocorrer entre 9 e 11 de Outubro e abordar “implicações histórico-diplomáticas” mas também “sociais, religiosas e culturais que levaram a uma reformulação irrevogável do relacionamento entre a Igreja Católica e o povo judeu nas décadas seguintes”, segundo um comunicado da instituição enviado à Agência ECCLESIA.
Este é o primeiro capítulo do mais recente livro de Francisco Camacho, intitulado O Monte do Silêncio (D. Quixote). Anteriormente, o autor, antigo jornalista que agora é editor do Grupo Leya na área de não-ficção, publicou dois outros romances, Niassa, que foi distinguido com o Prémio P.E.N. Clube na categoria Primeira Obra, e A Última Canção da Noite.
Foto DR
2010
Calculo que a tragédia tenha começado mais ou menos assim. A Norma acordou cedo, por volta das seis da manhã, ao som do gongo tibetano programado no alarme do telefone.
Vestiu uma camisola sem mangas e uns calções justos, enfiou as sapatilhas à pressa e abandonou a casa silenciosamente para não acordar ninguém. O Sol ainda estava baixo, despertando as primeiras cores da paisagem, mas o ar morno da madrugada já fazia adivinhar mais um dia de calor
Fechando a porta com cuidado, atravessou o jardim até à garagem e sentou-se ao volante do velho Datsun 1200. A chave do carro estava na ignição, como sempre, mas sou capaz de apostar que o motor asmático não pegou à primeira.
Só terá despertado ao fim de duas ou três tentativas, e então ela lá partiu, aos solavancos pelo caminho de terra em direcção à saída da herdade, no mesmo automóvel cor de mostarda do meu tio Óscar em que aprendi a guiar aos doze anos.
Pelo que viemos a saber, já na estrada principal, cruzou-se com o dono da serração, o Orlando, na sua camioneta carregada de tábuas, e com três rapazes da Pedrosa que voltavam de uma festa distante, em Silves ou Sagres.
Estavam todos demasiado aturdidos para lhe dizerem adeus àquela hora da manhã, mas confirmariam mais tarde que o Datsun passara no sentido oposto, ela de óculos escuros, envolta numa luz cristalina, com os cabelos agitados entre as janelas abertas do carro.
A Norma seguiu para oeste, percorreu a estrada deserta ladeada de campos rasos onde pastavam os dois ou três cavalos do costume, virou à esquerda na oficina de tractores e entrou depressa no troço de terra batida que serve as estufas de framboesas – as marcas dos pneus estreitos desenhavam uma curva demasiado apertada e a inevitável derrapagem.
Perguntaram-me mais tarde se eu achava que ela vinha a fugir de alguém e eu respondi que não, que era hábito nosso: tínhamos treinado vezes sem conta aquela manobra a caminho da praia.
Depois da curva, atravessou com cautela o túnel de árvores, temendo o ricochete dos galhos espinhosos na chapa, e prosseguiu até à última clareira, logo antes de começarem as dunas. Foi aí que estacionou, com as rodas da frente meio enterradas na areia, entre dois tapetes de plantas com flores cor de sangue.
As pegadas fundas descobertas no caminho viriam a revelar que se encaminhou em passo acelerado para o trilho onde fazia as suas corridas matinais quando estávamos de férias no Monte do Silêncio e não lhe dava para ficar até altas horas a beber com pescadores mal-encarados, hippies e sabe-se lá quem mais – a Norma não prestava contas a ninguém das suas companhias.
Mesmo depois das noites em que saía, estava na mesa do pequeno-almoço a horas, de duche tomado e impecavelmente vestida, pronta para o dia como nenhum de nós. A única diferença eram os sinais de cansaço.
De resto, sorria, sorria sempre, ou quase sempre: naquele último serão, reparei nas olheiras da véspera, mais pronunciadas do que o habitual. Estava triste, e pior ficou depois daquela humilhação escusada. Fechou-se cedo no quarto e eu devia ter feito qualquer coisa.
A Norma costumava correr ao longo de um carreiro estreito que serpenteia pela beira das escarpas e se debruça sobre uma fiada de praias desertas. Em certas alturas, o caminho roça perigosamente o abismo, como junto ao riacho que cai a pique do alto da falésia e, quando a maré recua, corta ao meio o areal da Praia do Eco.
Vejo-a a correr naquela manhã, fintando com segurança cada arbusto, buraco ou pedra, desafiando o vento e a vertigem, admirando o oceano agitado sempre que o caminho traiçoeiro o permitia e ouvindo pelos auscultadores a lista de músicas que eu lhe preparara umas semanas antes.
Não se pode dizer que a Norma fosse especialmente bonita, mas tinha um poder difícil de classificar, que talvez viesse dos olhos fundos e rasgados e da marca de nascença em forma de coração junto aos lábios.
Ou, então, da confiança com que se movia, como se fosse dona do mundo e não a mais enjeitada de todos nós. Uma vez descoberto o seu encanto – que, por ser discreto, apenas se revelava a olhares atentos como o meu -, era difícil esquecê-lo.
A dada altura, cheguei a convencer-me de que estava apaixonado por ela, mas não – éramos apenas bons amigos. Ou melhor, eu achava que éramos amigos. Os segredos que levou para o túmulo obrigam-me a reconhecer que talvez não fôssemos tão próximos quanto eu julgava. Também já não tenho maneira de saber.
Só depois de a Norma partir me dei conta do pouco ou nada que conhecia a seu respeito e da quantidade de vezes em que as minhas perguntas tinham ficado sem resposta graças ao efeito de hipnose que exercia em mim, fazendo com que a minha atenção se desviasse para onde ela muito bem quisesse. Nesses momentos, os seus olhos brilhavam ainda mais e o sorriso tornava-se difuso, entre o sarcástico e o sedutor.
Eu ficava preso à sua boca e perdia a noção do tempo, o mundo reduzido a uns lábios entreabertos, ornamentados pela marca de um coração perfeito, dos quais eu desejava que brotassem palavras proibidas. Até que ela estilhaçava o meu transe com uma gargalhada, mudando de assunto ou virando-me as costas.
A Norma divertia-se com o meu fascínio por ela. Não era por mal – há mulheres que seduzem e respiram com a mesma naturalidade. Não guardo mágoa, nem nada do que costuma sobrar de um amor não correspondido – tenho saudades da sua companhia e da cor que dava aos meus dias, isso, sim. Saudades que não doem, mas saudades.
Gostaria de acreditar que a última canção que ouviu da minha lista foi alegre e despreocupada, e o desenrolar da catástrofe, rápido e indolor. Mas eu nunca gostei de música alegre e sei – alguma coisa soube logo – que o sofrimento dela durou até ao fim.
Depois de mergulhar no vazio, embateu quatro vezes nas saliências laminadas da falésia, caiu na areia com o ruído surdo de um pedregulho e foi levada pela maré, que a devolveria à terra, umas horas depois, numa vaga arrependida. Mas era tarde.
A autópsia detectou água salgada nos pulmões e confirmou que foi já no mar, enquanto se debatia com as correntes espumosas da Praia do Eco, que a Norma morreu.
Até aí conseguira sobreviver à violência dos embates na escarpa, ao impacto final da queda e às primeiras investidas das ondas. O milagre terminou quando o oceano mediu forças com o fio de energia que ainda lhe restava, e a vergou de uma vez por todas.
Encontrávamo-nos no Monte do Silêncio naquele triste dia de sol – tinham passado anos desde a última vez em que estivéramos todos juntos numas férias de verão.
A notícia da tragédia manifestou-se de várias formas na família, qual delas a mais repugnante depois de tudo o que fora dito e feito na véspera: o tio Óscar fechado no escritório em telefonemas; o bichanar da minha mãe e das minhas tias; as lágrimas aparentemente forçadas da Mercedes; o ar assustado do Hugo; a Generosa a rezar a um canto. Com mais ou menos teatro, mais ou menos hipocrisia, na verdade todos me pareceram conformados.
Se havia dúvidas sobre o estatuto da Norma naquela família, desvaneceram-se nesse dia – a defunta, bem vistas as coisas, não passava de alguém que sempre estivera a mais, a sobrinha da empregada que, num gesto de compaixão, o tio Óscar resolvera apadrinhar, levando-a lá para casa.
Já vos aconteceu contemplar uma bela paisagem num dia luminoso e serem invadidos por uma vaga de melancolia que rebenta sem aviso? A mim acontece-me desde bem pequeno, quando, por exemplo, estava na praia ao fim de uma tarde de Junho e o Sol realçava a cor de fogo das falésias do Algarve.
Escutava o riso de outras crianças a brincarem ao longe, a cadência vagarosa do mar, a brisa a trespassar os pinheiros junto à areia, e, subitamente, dava por mim ansioso, com um medo irracional do desconhecido, como se a paz absoluta e a beleza extraordinária que me rodeavam constituíssem uma ameaça, uma catástrofe iminente. Não sabia de onde vinha tudo aquilo, mas era real, palpável, denso como um tumor.
À medida que o tempo foi passando, conformei-me com a ideia simplória de que o mundo me baralha constantemente e de que nem tudo na vida precisa de explicação.
Por mais consultórios que tenha frequentado, e foram muitos, nenhum psiquiatra ou psicólogo me soube explicar, por palavras que fizessem sentido para mim – e já agora para o tipo opaco, cínico e nada cooperante que calçava os meus sapatos na maioria das consultas -, a relação de causa-efeito entre a luz do sol em determinados dias e a escuridão que, repentinamente, inunda o meu espírito nessas alturas, como água do mar num navio a afundar-se.
Tem acontecido cada vez menos. Desenvolvi uma carapaça, mas há dias em que me sinto exactamente como na minha infância ou adolescência – perdido, sem a menor ideia do que ando a fazer por cá. Sim, já não ligo muito ao tempo que faz lá fora, nem me deixo impressionar facilmente por paisagens e cenários que antes me perturbavam tanto.
Também já não corro as cortinas de manhã a desejar ardentemente encontrar um céu cinzento, de preferência bem carregado, depois de mais um pesadelo com o Xavier e com o Bruno, às vezes separadamente, outras em que o Xavier tem a expressão desafiadora do Bruno ou o Bruno surge na figura franzina do Xavier.
Aprendi a defender-me, a controlar os pensamentos. Tornei-me menos emotivo. Já não sou a criatura frágil à mercê de um cérebro traiçoeiro, divorciado do resto do corpo, com vida própria.
Curei-me da atracção por pensamentos mórbidos e destrutivos. Algures no caminho, dei-me conta de que tenho uma espécie de abismo cá dentro e de que o mais importante é não pensar nisso.
Fui largando partes de mim pelo caminho e concentrei todos os esforços na crucial tarefa de me manter à tona, longe de mim e da minha essência, pois, se me ponho a olhar demasiado para as minhas entranhas existenciais, o mais certo é cair, e a queda nada tem a ver com a da Norma – é ininterrupta, sem chão, e pode não matar, mas enlouquece.
Antes matasse, acreditem, porque, se assim fosse, já tinha largado as mãos do volante, poupando-me ao esforço insano que tenho de despender de tempos a tempos para sobreviver. Isto pode até parecer um drama, mas não. Basta lembrar-me do meu tio Baltazar para perceber que há vidas bem piores.
Ajudou-me muito que a minha memória se tivesse degradado precocemente. Comecei a reparar nessa transformação quando era bem pequeno. Não me preocupei, até me pareceu uma bênção.
Nessa fase, estava a dar em doido: os médicos a que o tio Óscar me levava mandavam-me tomar um carregamento de comprimidos e, para ajudar à festa, aos treze ou catorze anos, comecei a beber cerveja às escondidas até cair – uma vez, no casamento de uns amigos do meu tio, rebolei por uma escadaria abaixo ainda não eram quatro da tarde, parti a cabeça e tive de andar de braço ao peito.
Uns anos mais tarde, levei uma coça de dois seguranças à porta de uma discoteca porque tive a infeliz ideia de lhes mijar para cima dos sapatos, provocando aplausos na assistência e mais uma cicatriz, dessa vez no sobrolho, que me faz lembrar a história sempre que me vejo ao espelho.
Não me orgulho disso, como não me orgulho de nada assim de repente, mas posso afirmar, sem risco de ser apanhado a mentir, que hoje aguento toda a espécie de drogas e álcool quase sem tropeçar. Controlo-me. Só o balão da polícia é que ainda não consigo iludir.
A minha memória nunca foi grande coisa – tanto quanto me lembro, lá está -, mas, a partir de certa altura, desatou a esboroar-se como um bolo de arroz, sendo que a cobertura de açúcar permanece como nova e corresponde ao pleno das minhas faculdades físicas e mentais.
Sou funcional, retenho o nome de toda a gente, fixo bem uma cara e não me perco no caminho para casa mesmo que esteja a cair de bêbado ou sob o efeito de uma salada de drogas – o que já não acontece assim tantas vezes, mas acontece.
Ao contrário dos velhinhos desmemoriados, lembro-me sempre do que almocei ontem, do meu número de contribuinte ou da matrícula de um carro que me chamou a atenção na rua.
Só não me recordo de muitas coisas que ficaram lá atrás. O meu último psiquiatra – o Tony Electrolux, como eu lhe chamava – dizia que eu estava enganado quanto à minha memória. Garantia que estava intacta e que era precisamente isso o que me afligia, pois passava a vida a fugir dela.
Era-me indiferente o que ele achasse. Tanto me fazia. Desde que o homem continuasse a passar-me receitas, ouvia-o as vezes que fossem precisas e tentava não olhar para o telemóvel nem distrair-me demasiado com a pintura licenciosa atrás da cadeira alta onde se sentava para encarar os pacientes. Por mim, estava tudo bem – até que a Norma morreu.
Depois desse dia, a minha mente começou a pregar-me ainda mais partidas do que o habitual. Dei por mim a vasculhar recordações adormecidas. Do nada, uma imagem. Do nada, uma conversa. Do nada, um desfecho.
Até determinada altura, quando resvalava para estas deambulações assustadoras pelo passado, soltava-se um gatilho cá dentro, a minha desconfiança disparava e eu dizia para mim próprio:
– Estás outra vez a fazer filmes, só isso.
E, depois, assunto encerrado. Mas esse abençoado mecanismo mental começou a falhar com a morte da Norma. A dúvida entre factos e imaginação, em vez de imediatamente obliterada, persistiu no tempo e assaltou-me a consciência em fogachos, por vezes durante dias. Continuei a fazer o que sempre fazia quando a cabeça me atraiçoava: bebia e drogava-me.
Não era certo que resultasse, que me esvaziasse a cabeça de incertezas e trouxesse a calma – o entorpecimento – de que tanto precisava. Havia dias em que o álcool até agravava a confusão. Tinha sempre vários comprimidos à mão para atenuar esses efeitos indesejados. Mas já nem esse recurso era infalível.
No dia soalheiro em que a Norma morreu, no cenário majestoso da Praia do Eco, ganhei pelo menos uma justificação para o facto de ser tantas vezes assaltado pela angústia nos momentos e nos lugares em que pessoas normais costumam encontrar conforto, felicidade, até êxtase – uma justificação que, se tivesse um efeito retroactivo, me atribuiria virtudes de adivinho e convocaria para esta história uma dimensão premonitória em que, honestamente, não acredito.
A morte da Norma teve um efeito estranho em mim. Pode dizer-se que, de certa forma, apurou a minha memória, o que, tenho de confessar, me deixou apreensivo na altura. Iluminou recantos obscuros do meu passado e levou-me a reviver duas outras tragédias, uma delas ocorrida na minha infância, outra na adolescência.
O Xavier, primeiro, e o Bruno, anos mais tarde. Fez-me lembrar que os piores momentos da minha vida haviam acontecido em esplendorosos dias de verão e que o contraste entre o desespero que então sentira e a beleza em meu redor me violentou de uma maneira que ninguém poderia compreender.
Não sei como é que, subitamente, se fez luz, como é que esses instantes de revelação se processaram e deitaram por terra algumas verdades assentes em camadas de anos e enganos.
Quando descobriram o corpo da Norma, perto da gruta que dá nome à Praia do Eco, de braços tão abertos que pareciam querer envolver o céu azul, o sol ainda brilhava com intensidade.
Estava uma dessas tardes que enaltecem a beleza da Terra e me põem triste desde miúdo. Mas no dia seguinte choveu como não se via há muito. A tempestade durou semanas. De certa forma, nunca mais parou.
– “… Com um valor de inflação previsto de 6,9% (índice para 2024), as rendas subiriam 2,3%+ 2% = 4,3%, e não 6,9%. E mesmo assim isto seria pesadíssimo para um inquilino médio, para quem a renda representa quase sempre acima de 40%, ou até mais, do rendimento disponível.”
Para todos aqueles que se encontram na sua zona de conforto socioeconómico, sem terem de andar a contar os cêntimos até ao dia do pagamento do ordenado ou da pensão de reforma – e isto para quem os recebe -, a quem sobram dias do mês ao valor recebido, seria excelente que pensassem um pouco na desumanidade de certo tipo de afirmações proferidas para todos aqueles que lutam diariamente pela sua sobrevivência e dos seus familiares. No meu caso, a renda representa 81% do meu rendimento de pensionista e não resido em nenhum condomínio privado ou prédio de luxo. Gostaria de vê-los no mesmo patamar do meu e ouvir depois o seu ganir…
🇵🇹 OPINIÃO
Não há comparação entre o bem de primeira necessidade, uma habitação, e o de segunda necessidade – deslocarmo-nos de carro. E no entanto… esta conclusão é bastante simplista porque os custos de transporte contaminam todas as actividades do país – da alimentação às exportações, passando pelos milhões de pessoas esmagadas pelas SCUT Sócrates e outras vias onde a única estrada viável passou a ser paga. Entretanto, ambas sofrem com a inflação, mas a resposta é muito diferente. Faz sentido?
Começando pelas rendas: por mais que doa aos proprietários, parece evidente que se as rendas tivessem subido 10% no início deste ano e que se em 2024 subissem 6,9% – como o indicador prevê – muita gente ficaria sem casa.
Este risco começa, aliás, a aparecer no horizonte para muitas pequenas e médias empresas, vítimas de custos de escritórios, lojas e armazéns, também eles inflacionados à boleia de factores que quase nada determinam no imobiliário: energia e alimentação.
Como as rendas de comércios e serviços não são congeladas, contribuem decisivamente para uma inflação transversal de preços em todos os produtos.
Agora repare-se: anda o Banco Central Europeu a subir taxas para baixar a inflação; esta massa monetária gera lucros recordes na banca, parqueia-a em circuitos improdutivos, suprimindo-a ao investimento e desencadeando desemprego e crise; no entanto, em simultâneo, os Estados legitimam índices automáticos anuais de reposição de preços que voltam a puxar a inflação para cima em actividades rentistas.
E estas exigem o direito inexpugnável a serem compensadas por uma inflação que, em grande parte, não sofrem – como se fosse o mercado a funcionar.
Vamos admitir que um proprietário (ou um fundo de investimento) gasta 1/3 do seu rendimento total em despesas alvo de inflação. Seria normal que a subida da renda compensasse isso + os 2% da subida da Euribor.
Com um valor de inflação previsto de 6,9% (índice para 2024), as rendas subiriam 2,3%+ 2% = 4,3%, e não 6,9%. E mesmo assim isto seria pesadíssimo para um inquilino médio, para quem a renda representa quase sempre acima de 40%, ou até mais, do rendimento disponível.
Entretanto, se isto é verdade no mercado imobiliário, é-o ainda de forma mais evidente em muitas actividades de custos “tabelados”, como é o caso das portagens.
Os lucros-extra trazidos pela inflação são na casa das centenas de milhões de euros, porque a actividade é a mesma, mas as concessionárias só são afectadas por aumentos nos salários dos funcionários e algumas matérias-primas (que representam quase sempre menos de 1/3 da estrutura de custos destas empresas) e pela subida dos juros.
Uma vez mais, nenhuma razão existe para dar à Brisa, Globalvia, Portvias, etc., um aumento equiparado ao da inflação. Já no ano passado, o Governo limitou as portagens a um aumento de 4,9%, mas o Governo pagou por todos nós 140 milhões extra. As concessionárias, magnânimas, “perdoaram” 2% de inflação.
A pergunta, este ano, volta a ser a mesma: por que se obriga os senhorios a ter quase 0% de aumentos e se garante aos concessionários das estradas o direito a receberem 100% de reposição? Porque têm contratos? Mas os senhorios também têm contratos…
Os sábios da Economia ainda só descobriram a penicilina dos juros para esta doença. É o que se conhece como técnica para um ataque inicial. Mas como insistem neste único antídoto durante largo tempo, acabam por matar o doente.
Ou, pelo menos, a amputar-lhes membros essenciais para recuperarem a seguir. Já vimos este filme e não acabou bem.