397: O grotesco e o íntimo, parelha de sucesso

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🇵🇹 OPINIÃO

Quando, por volta do ano 2000, surgiu na televisão o Big Brother, com grande comoção nacional, ainda não sabíamos que toda uma era de grotesco posto em público se inaugurava. Na altura estava a trabalhar como guionista para um programa da RTP2, o que me alertava especialmente para o que se passava na televisão.

E pôr nos écrans do país aquilo que até então era do foro da intimidade, numa experiência social televisionada, foi efectivamente uma rotura com uma sociedade de bons costumes, aparente, a mesma que, poucos anos antes, havia cancelado um programa de Herman José por supostamente apoucar a história nacional, com imenso humor, inteligente, mas que, pouco tempo depois, via embevecida cenas de sexo entre desconhecidos em prime time.

Desde então, em Portugal e por todo o mundo, a atração pelo íntimo e pelo grotesco tornaram-se quase a regra em televisão. Até porque esta, pressionada pelas plataformas de streaming e pelo demais mundo com base na Internet, se tornou uma espécie de serviço universal mínimo de companhia, competindo, pelo grotesco e pelo íntimo, com toda a partilha privada que somos convidados a colocar em público. Com uma dose de elitização elevada, claro: quem pode pagar mais, por conteúdos melhores, fá-lo.

Sem grande exaustividade, encontramos hoje na oferta televisiva, contando com os canais por cabo, conteúdos, para além de Big Brothers diversos e suas declinações, que oferecem voyeurismo ao longo das 24 horas sobre pelo menos cirurgias estéticas mamárias, problemas e deformações podológicas, condições médicas dermatológicas, assédio nas redes sociais e usurpação de identidades, acidentes dramáticos de aviação, supostos namoros e casamentos brancos – essencialmente para a obtenção da nacionalidade norte-americana ou da possibilidade de aí viver -, a vida de obesos mórbidos, exploração de crianças de 6 e 7 anos em concursos de beleza, namoros de desespero pressionados para um casamento, avaliações de corpos nus, deformações físicas diversas e as suas épicas correcções médicas, competições basais de ciúme e soft porn entre grupos de jovens sempre seminus e usualmente idiotas, etc.

Há que acrescentar à leveza e ao cansaço de Lipovetsky e de Byung-Chul Han, seguramente a atracção e a rentabilização do grotesco e do íntimo como traços do nosso colectivo de hoje.

Sim, apreciamos a ludificação e o consumo, a ligeireza e a aparente rapidez de tudo, a simplicidade em alternativa ao mais demorado e exigente.

E vivemos, não obstante, exaustos, alimentados a antidepressivos, ansiolíticos e álcool e a feedbacks nas redes. Mas também estamos viciados no consumo do supostamente privado, não apenas de famosos, o que era um clássico histórico, mas também de pessoas banais.

No fundo, a nossa própria intimidade, que é glosada em público por duplos de nós mesmos, já que nem todos estamos em condições de criar canais no OnlyFans, onde possamos mostrar o corpo e dizer obscenidades a troco de dinheiro.

Este fim da intimidade, que manifestamente vivemos, pode ser apenas uma consequência natural e necessária das últimas duas décadas, quando a Internet começou a mudar tudo. Talvez assim venha a ser apelidada, dentro de um século, quando a história se fizer para este tempo.

Terá coisas positivas, naturalmente, como a liberdade de discussão sobre temas que estavam aprisionados, com custos diversos, privados e públicos. Mas o fim da intimidade, e a devoção pelo grotesco, trazem também um grau elevado de eliminação do pudor – e isso tem consequências políticas, para a comunidade.

O discurso político que faz apelo ao grotesco, ao até aqui indizível, aquilo que ficava preso à mesa após o copo excessivo, está na rua. Não estamos aqui já a falar apenas de quistos cuja extirpação é televisionada: estamos a falar do despudor em aviltar grupos de pessoas, da legitimação para invadir instituições públicas, da possibilidade de usar linguagem, ou seja, manifestações de poder, que representam mentiras ou mero aproveitamento abusivo em direcção ao poder.

E isso é o drama, o drama que se segue após o anterior. Depois da estética e do gosto, supostamente privados, pode sempre sucumbir o público.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

DN
Miguel Romão
15 Setembro 2023 — 00:39


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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