395: Kim e a imagem errada que dá dos coreanos

 

🇵🇹 OPINIÃO

Se o sucesso de um país se medisse pela visibilidade mediática do líder então a Coreia do Norte destacar-se-ia no grupo dos mais desenvolvidos e ricos.

Mas infelizmente para os 26 milhões de norte-coreanos a cimeira agora de Kim Jong-un com o russo Vladimir Putin valerá tão pouco em termos práticos como aquelas que aquele teve há uns anos com o americano Donald Trump.

A Coreia do Norte continua um país isolado do resto do mundo, e é incomparavelmente mais pobre do que a Coreia do Sul, cujos líderes são discretos, mas muito mais eficazes a governar.

Foram agora publicados em Portugal dois livros sobre os coreanos que nos ajudam a perceber a importância do Paralelo 38, a linha divisória instituída no final da Segunda Guerra Mundial para a rendição das tropas japonesas: a norte aos soviéticos, a sul aos americanos.

Mesmo depois da Guerra da Coreia de 1950-1953, o primeiro grande conflito da Guerra Fria, a fronteira segue aproximadamente a linha riscada num mapa da revista National Geographic por um oficial americano.

Um dos livros conta a história das duas Coreias (Coreia: Uma breve História do Norte e do Sul, de Victor Cha e Ramon Pacheco Pardo, editado pela Ideias de Ler) e o outro o da Coreia do Sul (Breve História da Coreia do Sul, de Ramon Pacheco Pardo, edição Vogais). Por coincidência, como salta à vista, um autor assina uma das obras em conjunto e a outra a solo.

Até 1945, houve uma só História da Coreia, apesar de em eras antigas ter chegado a haver vários reinos na Península Coreana. Durante seis séculos até 1910 governou a dinastia Joseon, que fechou o país ao mundo, e de 1910 a 1945 deu-se a colonização japonesa. Com a Guerra Fria nasceram duas Coreias inimigas, uma comunista, a outra capitalista, mas ambas ditaduras.

Depois da tentativa falhada de reunificação pela força por Kim Il-sung, avô do actual líder norte-coreano, tanto o Norte como o Sul estavam destruídos, mais até o Sul.

Mas as décadas seguintes a 1953 fizeram toda a diferença: enquanto o Norte se transformou num regime comunista dinástico, fortemente militarizado, o Sul evoluiu para uma democracia, construída pelas reivindicações populares e alicerçada num grande crescimento económico.

Os testes de mísseis norte-coreanos e os ensaios nucleares podem encher as páginas dos jornais, mas não enchem os pratos das famílias, com fomes ocasionais quando as colheitas são más.

Já as empresas sul-coreanas (simbolizadas pela Samsung, LG ou Hyundai) conquistam cada vez mais os mercados mundiais e garantem que os 51 milhões de sul-coreanos, cujo presidente eleito em 2022 se chama Yoon Suk Yeol, possuam um dos mais altos níveis de desenvolvimento humano.

Noutros séculos, a Coreia conseguiu manter a independência apesar de vizinhos poderosos, como a China e o Japão. Depois potências como os Estados Unidos e a União Soviética/Rússia passaram também a envolver-se nos destinos da Península.

Cimeiras ocasionais entre os líderes de Pyongyang e de Seul têm alimentado a possibilidade de verdadeira paz, de certa cooperação e até de uma reunificação a longo prazo, mas são mais os momentos de tensão do que os de acalmia ao longo do Paralelo 38 e este aproximar de Kim a Putin – depois de Joe Biden ter há semanas reforçado a cooperação militar entre os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul – mostra que Pyongyang e Seul seguem a linha tradicional de divisão ideológica no actual choque entre a Rússia e o Ocidente, afastando-se uma da outra.

Visitei três vezes a Coreia do Sul, enquanto da Coreia do Norte só conheço o que vi em Panmunjon, nome da antiga aldeia onde o armistício de 1953 foi assinado e onde agora estão os pavilhões azuis que servem para negociações.

Mas não tenho dúvidas de que a pujança da cultura coreana e a criatividade do povo coreano se reflecte muito mais no Sul, incomparavelmente mais, mesmo que seja surpreendente a capacidade norte-coreana para produzir tecnologia militar.

E recomendo a quem quiser conhecer um pouco mais este povo extraordinário que vá dia 23 ao Museu de Lisboa no Palácio Pimenta conhecer a Festa da Cultura Coreana, com gastronomia típica, Taekwondo, K-Pop e muito mais. Está aberta a todos, como a admirável Coreia do Sul.

Director adjunto do Diário de Notícias

DN
Leonídio Paulo Ferreira
14 Setembro 2023 — 00:06


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 1 semana ago

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394: Madrastas não são segundas mães e padrastos não são segundos pais

 

🇵🇹 OPINIÃO

As madrastas e padrastos são uma realidade incontornável na vida de muitas crianças, após um processo de separação ou divórcio parental prévio.

Muitos pais iniciam novas relações e as crianças passam a integrar as chamadas famílias recompostas, sobre as quais existem ainda numerosos mitos. Um deles é o Mito dos Segundos Pais.

Definimos família recomposta como uma família com dois adultos numa união, formal ou informal, em que pelo menos um deles tem crianças fruto de uma ou mais relações prévias, que podem ser menores ou maiores de idade.

Podem ainda existir filhos da relação actual. As crianças podem residir a tempo inteiro ou parcial, ou podem não manter qualquer contacto à data actual.

As famílias recompostas não são iguais às famílias nucleares, mas também não devem ser entendidas como piores ou inferiores. São apenas diferentes.

As famílias recompostas são necessariamente mais complexas e os papéis são mais ambíguos, ao mesmo tempo que carecem ainda de uma memória colectiva que apenas poderá ser alcançada com o passar do tempo. Nestas famílias, cada um dos elementos traz consigo uma bagagem que pode ser muito pesada e que não deve ser ignorada.

E é preciso tempo, paciência e muito investimento afectivo para que todas as bagagens sejam devidamente integradas, dando espaço para a partilha de afectos e para a construção de uma história familiar comum.

Quando iniciam uma relação com as crianças, as madrastas e padrastos devem focar-se no estabelecimento de uma relação afectiva e só depois, numa outra fase, começar a definir regras e limites.

É fundamental apostar na criação destes laços de afecto para que as crianças lhes reconheçam, depois, legitimidade para o exercício da autoridade e da disciplina.

Sobre estas famílias existem ainda muitos mitos, ou seja, crenças falsas e ideias erradas que tendem a conduzir a expectativas irrealistas que, na maior partes das vezes, são frustradas, potenciando emoções mais desagradáveis.

Um dos mitos relaciona-se com o facto de se acreditar que as madrastas podem ser segundas mães e os padrastos podem ser segundos pais.

Ora, os pais são insubstituíveis, ainda que tenham, porventura, falecido, ou que mantenham com a criança uma relação mais distante. É importante definir e clarificar os diferentes papéis, para que não se confundam.

Sabemos que os termos “madrasta” e “padrasto” estão carregados de conotações negativas, muito por culpa da Cinderela e afins.

Em muitos contos infantis, as madrastas e padrastos surgem como pessoas malvadas, invejosas e ciumentas, que maltratam os enteados – algo que não corresponde à realidade, na medida em que não se verificam mais situações de maus-tratos, negligência ou abuso sexual nas famílias recompostas do que nas famílias nucleares.

Os adultos podem, então, em conjunto com a criança, procurar termos alternativos que sejam sentidos como mais acolhedores e afectuosos. Desde que não sejam “mãe” ou “pai”.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

DN
Rute Agulhas
14 Setembro 2023 — 00:14


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
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393: Brasília e a sobrevivência animal

 

🇧🇷 OPINIÃO

Antes de dormirem, os esquilos da Sibéria tomam um aconchegante banho numa poça de urina de cobra para afastarem eventuais predadores noturnos. Para evitarem infeções, às vezes mortais, as girafas têm o hábito, tão humano, de tirar macacos (ou meleca, no Brasil) do nariz.

Porém, por razões práticas, não usam as patas. E sim a língua. Os sapos do Sri Lanka são mais longevos do que os vizinhos, segundo pesquisadores, por viverem, protegidos e aquecidos, nas fezes dos elefantes.

Os bebés ornitorrincos sobrevivem graças ao suor das mães transformado em leite. No deserto, até os abutres sofrem com as queimaduras solares, sobretudo, nas patas, a parte do corpo menos protegida pelas penas. Sem protetor solar à mão, defecam sobre elas.

O que tem uma coluna versada na política brasileira a ver com os exemplos mais repugnantes de sobrevivência animal? Acertou: tudo. Quem tende a sentir nojo, repulsa, náusea ou asco com facilidade tem bom remédio, não ande na selva, nem caminhe por Brasília.

Exemplo: na semana passada, o presidente Lula da Silva demitiu Ana Moser, uma ministra independente e competente do Desporto, para colocar André Fufuca no cargo. Fufuquinha, como lhe chamam, é protegido de Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados que, em troca das verbas agora à disposição deste prodígio de 34 anos, dará luz verde às votações consideradas prioritárias pelo Governo na casa.

Autor da frase “Se Jesus fosse presidente do Brasil aliava-se até com Judas”, Lula sabe que desde a redemocratização, em 1988, o recorde de deputados eleitos por um partido – o PFL, em 1998 – foi 106, num universo de 513, isto é, cerca de 20% do total.

Portanto, mesmo os maiores fenómenos de popularidade no Brasil, como ele, votado por mais de 60 milhões em 2022, têm de recorrer a (muitos) outros partidos para obter maioria na Câmara dos Deputados.

Quem tende a sentir nojo, repulsa, náusea ou asco com facilidade tem bom remédio, não ande na selva, nem caminhe por Brasília.

Por outro lado, como no país a tradição do pluripartidarismo é acompanhada pelo sistema de representação proporcional com listas abertas, muitas dessas formações tendem a ser uma soma de indivíduos sem direção partidária forte nem identificação programática clara.

Dito por outras palavras, um número generoso de parlamentares, segundo os cientistas políticos em torno de 150 ou 200, são interesseiros profissionais, como Fufuquinha, a quem o Governo, se quiser ter maioria na Câmara, aprovar projetos, enfim, governar, é obrigado a recorrer.

Collor de Mello caiu não apenas por profunda incompetência, mas por ter sido largado por esses oportunistas, a quem mais tarde se convencionou chamar de Centrão. Presidentes tampão, como Itamar Franco e, depois, Michel Temer, eram expoentes do Centrão.

Fernando Henrique Cardoso passa metade dos livros de memórias a lamentar ter de lidar com o Centrão. Lula, que na Oposição demonizava as negociatas com o Centrão, quando chegou ao poder institucionalizou uma mesada para o saciar. Dilma Rousseff, que não engolia o Centrão, foi derrubada por ele. E Jair Bolsonaro, que em campanha chamava o Centrão de “ladrão”, tornou-se o maior dos seus cúmplices por – cá está – instinto de sobrevivência.

O instinto que leva Lula, de volta ao Planalto, a abraçar, aos sorrisos, gente que em circunstâncias normais ele deveria desprezar.

Mas, voltando à natureza, há um animal que, para sobreviver a períodos de escassez, tem um estômago capaz de comportar e digerir quase 50% do seu peso: é a lula.

Jornalista, correspondente em São Paulo

DN
João Almeida Moreira
14 Setembro 2023 — 00:13


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