🇵🇹 OPINIÃO
Antes de discutirmos se devemos ou não seguir a Dinamarca e o Canadá e obstaculizar a compra de casas por não-residentes, que tal pararmos de lhes despejar dinheiro em cima para as encarecerem?
Por estes dias recebi um email de um tal Sam a perguntar se estou a pensar reformar-me. Ora o Sam, que por qualquer motivo empreendeu que não sou europeia, quer-me informar sobre quais os melhores “visas” europeus para reformados. E, de acordo com o link que me disponibiliza, é mesmo o do país onde vivo. Portugal, fico a saber, alcança 7,83 pontos em 10. Motivos?
Além do sol, das praias e do vinho, mais o custo de vida “razoavelmente baixo” e o nível de paz (estamos no top mundial dos países mais seguros e pacíficos) – o costume, portanto – parece que, o que me surpreendeu, a percentagem de população com mais de 65 anos é outra vantagem.
Não explicam porquê, mas se calhar os reformados querem conviver com outros idosos (mesmo pobrezinhos), ou não gostam de ver muita gente nova aos pulos a fazer barulho.
O que certificam é que, mal-grado tanta gente de idade e portanto a precisar de mais cuidados de saúde, “uma das facetas mais relevantes” das vantagens portuguesas é (quem diria?) o nosso sistema de saúde, “entre os melhores do mundo”.
E diz o site em causa, “Where can I live“(“Onde posso viver”): “Para reformados, isto significa o acesso a serviços médicos, instalações e profissionais de primeira, a uma fracção do custo praticado nos EUA.”
A poupança nestes cuidados de saúde providenciados pelo país com base nos impostos dos residentes é tanto mais atractiva quando o prospectivo residente estrangeiro (neste caso americano, pelos vistos) reformado também tem ao seu dispor um belíssimo benefício fiscal: “O esquema de residente não habitual oferece vantagens significativas para os reformados.
Embora mudanças em 2020 as tenham diminuído em parte, as taxas de imposto aplicáveis são ainda assim muito mais baixas que em vários países europeus ocidentais.”
Indeed, ó Sam: a taxa passou de zero para 10%, o que ainda é muito bom. Como frisava em 2021 o articulista João Antunes, da Ordem dos Contabilistas Certificados, no Jornal de Negócios, enquanto que um residente português com uma pensão anual de 15 mil euros (com o valor bruto de 1071 euros/mês, líquido de 950) tem uma taxa de tributação efectiva de cerca de 11,3%, um residente não habitual que aufira uma pensão de 48 mil euros paga apenas, durante dez anos a partir da obtenção desse estatuto, 10% (isto se não o tiver obtido até 31 de Março de 2020; nesse caso, paga zero de imposto até fazer uma década – era esse o regime em vigor desde 2009).
E não vamos sequer comparar com o que paga de imposto um residente habitual que aufira uma pensão anual de por exemplo 30 mil euros, para não ficarmos mal dispostos.
Mesmo sem enchermos isto de contas, porém, reflictamos um pouco: uma vez que vários países da Europa têm regimes deste tipo – Portugal não está sozinho nesta coisa de fazer saldos fiscais a estrangeiros pensionistas – deve haver alguma vantagem.
E deve estar explícita em algum lado, por exemplo no preâmbulo do decreto-lei n.º 249/2009 de 23 de Setembro, que criou cá tal possibilidade.
Vejamos: “A crescente projecção de Portugal no cenário mundial obriga a uma reflexão profunda sobre as orientações negociais nas relações económicas internacionais, sendo, nesta perspectiva, imperioso que seja delineada uma estratégia fiscal global assente nos actuais paradigmas da competitividade.”
Tais paradigmas, continua o texto (muito chato, diga-se), implicam que “os instrumentos de política fiscal internacional devam funcionar como factor de atracção da localização dos factores de produção, da iniciativa empresarial e da capacidade produtiva no espaço português.” Muito bem. E que tem isso a ver com pensionistas? À primeira vista, nada.
Porém, como sublinha, a propósito deste decreto-lei, um estudo de 2022 sobre tributação, estava-se em plena crise económico-financeira mundial – a atracção de investimento estrangeiro, inclusive em imobiliário, surgia como primordial.
Parece impossível visto daqui, mas até 2013 o mercado imobiliário nacional afundou, com os preços a descerem a pique. Trazer pensionistas endinheirados para Portugal, acenando-lhes com zero impostos, era mais uma forma de o Estado subsidiar o sector e ressuscitar a economia.
A questão que se tem de colocar é a que ponto faz algum sentido, com a actual crise habitacional – que dura há pelo menos cinco anos – manter esta medida, que em 2022 custou, englobando os benefícios fiscais a todos os residentes não habituais, e não apenas aos pensionistas, 1.507,9 milhões de euros (subindo de 1.271,8 milhões em 2021 e de 972,2 em 2020).
Para se ter uma ideia da ordem de grandeza, o gasto anual da Segurança Social em 2021 com subsídio de desemprego e apoio ao emprego foi 1592,5 milhões, e com o sempre tão vilipendiado Rendimento Social de Inserção de 356 milhões.
Aliás um relatório de 2021 do Observatório Fiscal da União Europeia apontou este regime português de excepção para pensionistas não-residentes como “dos mais prejudiciais da UE”.
E explica porquê: “Estes regimes têm longas durações, grandes vantagens fiscais e visam apenas indivíduos de rendimentos muito elevados ou não se repercutem numa actividade económica real no Estado-membro.”
“Não se repercutem numa actividade económica real no Estado-membro”. Excepto, claro, se falarmos com empresas de mediação imobiliária: na perspectiva destas, os descontos de impostos a não-residentes repercutem-se e como.
De acordo com algumas dessas empresas, estes incentivos fiscais – que custam aquele balúrdio ali em cima – são fundamentais para que se continuem a vender as casas de “topo do mercado”, as que custam de um milhão para cima.
Sucede que, e estas empresas sabem-no melhor que eu, as casas de “um milhão para cima” de hoje são as que há 14 anos custavam 250 mil euros – ou menos.
E isso sucedeu devido a uma mistura de factores, entre eles o da chegada de estrangeiros com poder de compra (e mais ainda por não pagarem impostos) para comprar casas mais caro.
Enquanto, no desespero de combater uma crise habitacional mundial, há cada vez mais países a debater a interdição e já a interditar a venda a não-residentes, Portugal continua a assim subsidiar o sector imobiliário – é sobretudo disso que se trata, não é? – com mais de mil milhões anuais, de modo a que este aumente mais e mais os preços.
Por graça, esta segunda-feira saiu no Público uma notícia sobre um estudo no qual, partindo da asserção de que os não-residentes encarecem o preço da habitação, se propõe, ao invés de lhes dificultar a compra de casas, se usar esses “ganhos de capital com a compra de habitação” para subsidiar os residentes.
Olha se alguém se lembra de pegar nesta ideia: subsidiamos os estrangeiros para comprarem cá casa e encarecerem os preços, e depois, com o “ganho” desse encarecimento, damos uma esmola aos que cá vivem, pagam os impostos por inteiro e não conseguem arranjar um sítio para viver.
É um estudo divulgado pelo Banco de Portugal, não deve ser a gozar. E, na verdade, nem faz assim tanta diferença da situação em que estamos.
DN
Fernanda Câncio
12 Setembro 2023 — 01:20
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 1 semana ago