387: Sonata de outono

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🇵🇹 OPINIÃO

Sentia una extraña tristeza
como si el crepúsculo
cayese sobre mi vida

Ramón del Valle Inclán,
Sonata de Otoño

Com as mudanças climáticas em curso, estamos a perder a suave melancolia do outono, das chuvas breves e das folhas mortas, dos longos soluços e dos violinos sem tempo. Vivemos entre ondas de calor sufocantes e chuvadas torrenciais, e resmungamos entre dentes “já não há estações”.

E mesmo que tenhamos compreendido as terríveis verdades que a Ciência nos comunica dia a dia, em nada ou quase nada vemos modificar-se o estado de coisas e, apesar das lutas que em todo o mundo se levantam contra o sistema que nos leva à destruição, os poderes políticos reconhecem, mas contornam o problema, ou assumem meras medidas de mitigação.

Não sei bem, é claro, que medidas deveriam ser tomadas. Apenas me assusta que a Ciência mais confiável e credível nos faça um apelo a que respondemos com tão pouca força e convicção.

Há uma coisa só que a História nos ensinou: o processo de evolução e transformação das sociedades humanas é deveras lento e totalmente imprevisível.

O caminho do progresso não leva necessariamente a um mundo melhor, mas oferece-nos utensílios e modelos que nos dão uma visão mais apurada e rigorosa do mundo que nos rodeia e aumentam a nossa capacidade de intervir sobre ele.

O atraso moral dos nossos cérebros, porém, não acompanha esta evolução ou utiliza-a para os seus jogos primários de poder.

Com as mudanças climáticas em curso, podemos estar a perder o sabor e a melancolia do outono. E, no entanto, ele vive e viverá para além de nós.

A nossa esperança, ao contrário do ideal das passadas gerações, está na imprevisibilidade dos acontecimentos e não em quaisquer leis alegadamente científicas que leiam por nós na bola de cristal do futuro.

Esperar não é, contudo, ficarmos sentados a ver o tempo passar, é lutar “por quanto nos pareça a liberdade e a justiça ou. mais que qualquer delas. uma fiel dedicação à honra de estar vivo” (Jorge de Sena) e não nos reduzirmos à passividade para que tudo nesta sociedade nos convida e chama.

Todas as lutas contra a redução e instrumentalização da nossa humanidade num campo de forças digital e matemático, seja a submissão da nossa economia e dos nossos trabalhadores aos algoritmos sem surpresa dos poderes e interesses financeiros, seja o desaparecimento dos livros e da leitura das nossas escolas, seja a extinção progressiva do ensino das Artes e das Humanidades, todas as lutas que tenham por fim contrariar e sabotar este mecanismo perverso de desumanização, todas essas lutas nos são essenciais para podermos sobreviver como Humanidade.

As guerras actuais mostram, porém, que as nossas decisões e as nossas emoções estão desfasadas dos problemas que nos ameaçam e que continuamos a travar guerras de conquista e de anexação, idênticas às dos séculos passados.

Interrogamo-nos até, os mais imaginativos, se a Inteligência Artificial que criámos não terá vindo ao mundo para substituir e dominar os nossos cérebros ainda reptilianos.

Mas se perdêssemos aquilo que nos destrói, a pulsão de morte, a vontade de guerra, este desejo febril de vencer, não perderíamos ao mesmo tempo o sentimento da beleza, os sabores do outono, a música de Mozart? E entenderíamos o poeta John Keats quando nos diz que “a thing of Beauty is a joy for ever“?

Com as mudanças climáticas em curso, podemos estar a perder o sabor e a melancolia do outono. E, no entanto, ele vive e viverá para além de nós. E nenhuma Inteligência Artificial será capaz de o entender e o saborear, no meio de tantas chuvadas e ondas de calor…

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
12 Setembro 2023 — 01:21


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 1 semana ago

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