🇵🇹 OPINIÃO
Durante o longo período da formação de Portugal, caracterizado por lutas contínuas, externas e internas, quando era necessário defender o território contra sarracenos, leoneses, concelhos vizinhos, malfeitores ou pessoas poderosas, mas principalmente contra os primeiros, recorria-se ao apelido.
Nessas alturas aflitivas de defesa colectiva contra agressões, sobretudo, exteriores, fazia-se a convocação geral, clamando e repetindo o chamamento para mobilizar a população, sendo todos, sem excepção, obrigados a participar, caso contrário sujeitava-se às penalizações constantes nos forais.
Essa prática centenária foi inteligentemente utilizada por Álvaro Pais, ao manipular a população lisboeta, bradando que socorressem D. João, Mestre de Avis, através da gritaria do pajem e sua, enganando, deliberadamente, os lisboetas ao dizer que o matavam, nos paços da rainha, quando fora informado de que o próprio Mestre havia acabado de matar o conde Andeiro.
O apelido podia funcionar também como grito de guerra, como aconteceu, por exemplo, na batalha de Atoleiros onde, para além de ditos vibrantes e alaridos dos combatentes, os portugueses chamavam “Portugal e sam Jorge”, enquanto os castelhanos “Castilha, Samtiago”.
Na guerra ultramarina, a tropa dos comandos tinha como grito de guerra “Mama Sumae” que significa “Aqui estamos, prontos para o sacrifício”, que faz lembrar “Ave, Caesar! Morituri te salutant” (Salve, César, nós que vamos morrer te saudamos).
Recordo que na minha participação na guerra ultramarina, em Angola, não tínhamos propriamente um grito de guerra. Durante as acções de combate, superado o stressante período de tempo do silêncio tumular, que antecede o início da peleja, quando as espingardas e metralhadoras começavam a cantar e o tiroteio parecia infindável, quase em simultâneo, as acções e reacções dos combatentes eram acompanhadas de prolongada e ensurdecedora gritaria.
O silvar das balas, secundado de barulheira infernal, irmanada com injúrias e obscenidades, ditas de parte a parte, qual delas mais indecorosa, criavam uma mistura aterrorizadora de sons que ecoavam como ribombar de trovões em fúria, onde o insulto menos ultrajante era chamar filhos da puta.
Por não gostar de utilizar palavrões quando, debaixo de fogo, nos lançávamos em perseguição do inimigo, o meu grito de guerra, ou seja, o meu apelido era “Académica, Académica, Académica”, que os meus camaradas ainda hoje me fazem lembrar, repetindo-o nos nossos encontros anuais, com sorrisos nos lábios e evocação de memórias perturbadoras retidas das densas florestas angolanas (Valentino Viegas, A morte do herói português, 2010).
Nessa linha de actuações violentas, com nervos à flor da pele e sensações carregadas de emotividade extrema, na fase inicial do processo revolucionário, a cidade de Évora pode ser apresentada como exemplo para comprovar que em Portugal, a conduta dos mesteirais, dos assoldadados ou dos pobres vagabundos não foi muito distinta da do resto da Europa.
O ódio dos pobres contra os mais ricos manifestava-se na desconfiança que os primeiros patenteavam contra os segundos, porque, após a conquista do castelo de Évora, começaram a fazer novas reivindicações e apresentar queixas incoerentes, mesmo contra aqueles que já tinham aceitado como seus capitães, como foi o caso mais evidente de Diego Lopes Lobo e Fernão Gonçalves de Arca, principais capitães na conquista desse castelo.
Sob fortes ameaças, os populares disseram-lhes que, se realmente amavam o serviço do Mestre e eram seus partidários, então deviam ir a Lisboa para o servir e ajudar a defender o reino, não lhes dando outra alternativa senão aceitarem essa imposição categórica e seguirem para a capital.
A sanha popular era tão violenta que, conquistado o castelo de Évora, ao contrário do costume, o povo continuou a andar alvoroçado, comportando-se livremente, tendo por líderes Gonçalo Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate, e trazendo por apelido “Abite! Abite! Aqui dos dabite!”
Apesar de ter consultado milhares de documentos joaninos e fernandinos, jamais encontrei esse apelido, a não ser na crónica de Fernão Lopes que, nos meus textos sobre a primeira revolução portuguesa tenho tomado a liberdade de reproduzir, sem os citar passo a passo.
Consta nela que se algum dos participantes nesses levantamentos dissesse vamos a fulano, para matá-lo e roubá-lo, essa sugestão era logo posta em prática, de nada valendo a intervenção dos grandes da cidade intercedendo em defesa do visado.
A propósito de uma dessas decisões repentinas, uns dizem que Gonçalo Eanes, cabreiro, um dos capitães do levantamento de Évora, desafiou o povo a matar a aleivosa D. Joana Pires, abadessa de Castris, parente e criada da rainha, outros asseveram ter constatado que a abadessa lhes chamara de bêbados e acrescentado que pagariam pelas maldades que praticavam.
O certo é que, fazendo justiça pessoal, foram buscá-la à casa onde residia e, quando souberam que tinha ido à igreja catedral, irromperam pela Sé aos gritos de Abite! Abite!
A aterrorizada abadessa, embora tivesse abraçado o cálice, com hóstias sagradas, e fosse defendida por destacados membros da Igreja, foi retirada violentamente da Sé, levada pela rua da Selaria até à Praça onde, depois de ter sido morta com uma cutilada na cabeça, continuou a ser golpeada.
Não contentes em invadir a Igreja e cometer tamanha barbaridade, foram comer e procurar outros desenfadamentos. Regressando de noite, ataram um baraço aos pés da vítima e arrastaram-na até ao Rossio.
Naquela conjuntura política, onde os acontecimentos se sucediam com rapidez espantosa, a surpresa e o medo foram as armas mais eficazes utilizadas, pelos miúdos, contra os mais poderosos.
Justificavam o comportamento afirmando que procediam dessa maneira para defender a causa do Mestre e da independência nacional, contra a rainha D. Leonor e as infundadas pretensões do monarca castelhano.
Nessa clara divisão entre grandes e pequenos, ao ajuntamento dos pequenos chamavam arraia-miúda e os grandes escarneciam dos pequenos chamando-lhes povo do Messias de Lisboa, que ingenuamente acreditava ser o Mestre de Avis capaz de o salvar da sujeição do rei de Castela.
Em resposta, os pequenos, quando juntos e unidos, ganhavam audácia e chamavam aos grandes de traidores, cismáticos e partidários de Castela, e nenhum deles, por maior que fosse, tinha o atrevimento de lhes opor ou contra-argumentar porque sabia que, caso falasse, seria logo morto, de forma impiedosa, sem ninguém ter coragem para lhe acudir.
Em isso acontecendo, nos finais de Dezembro de 1383 e início do mês seguinte, o povo miúdo e os ventres ao sol deram largas à raiva acumulada, de gerações em gerações. O entusiasmo da revolução dava-lhes tanta coragem e intrepidez que tudo arrastavam na sua onda devastadora.
Até as mulheres, quase sempre resignadas na Idade Média, faziam justiça pessoal matando quem ofendesse o Mestre, como foi o caso de Nuno Rodrigues de Vasconcelos.
Os grandes, surpreendidos e profundamente divididos, eram incapazes de esboçar um gesto de defesa. Uns abandonavam o país, outros fugiam para as vilas que tinham voz por Castela e, como escreve Fernão Lopes, “os meudos corriam apos eles, e buscavom nos e premdiam nos tam de voomtade, que pareçia que lidavom polla Fe”.
Nessas circunstâncias específicas, o povo dava largas à sua imaginação e conquistava rapidamente os castelos, utilizando uma técnica eficiente com resultados imediatos, descrita brilhantemente pelo cronista:
– Era maravilha de veer, que tamto esforço dava Deos nelles, e tamta covardiçe nos outros, que os castelos que os amtiigos rreis per lomgos tempos jazemdo sobrelles, com força darmas, nom podiam tomar; os poboos meudos, mall armados e sem capitam, com os vemtres ao soll, amte de meo dia os filhavom por força (Crónica delRei dom João I da boa memória, Parte Primeira, capítulo 44).
Para obrigar os defensores a renderem-se mais depressa, os populares não sitiavam os castelos, como era prática habitual, mas traziam as mulheres e os filhos dos defensores e punham-nos, amarrados, em cima dos carros.
Depois transportavam os aprisionados à porta do castelo e gritavam bem alto aos defensores: ou saem e abandonam o castelo, ou queimamos as mulheres e filhos em vossa presença.
Isso aconteceu na conquista do castelo de Évora e em outros castelos, tornando-se essa prática inovadora em autêntico jogo de povos-miúdos.
Sem ser necessário recorrer ao apelido, o Porto foi exemplo inquestionável de aplicação da justiça popular.
Em resposta às cartas do Mestre, pedindo que tomassem voz por Portugal e ignorassem as cartas da rainha D. Leonor ou do rei de Castela, juntaram-se todos, especialmente o povo miúdo, e aqueles a quem chamavam arraia-miúda disseram a Álvaro da Veiga que levasse a bandeira pela cidade em voz e nome do Mestre de Avis. Tendo recusado fazê-lo, foi logo chamado de traidor, partidário da rainha e morto à cutilada.
Para o dia seguinte, escolheram o homem-bom Afonso Anes Pateiro para executar a mesma incumbência. Informado pelos seus amigos do risco que corria, logo de manhã, muito cedo, foi à praça da cidade e antes que fosse desafiado, pegou na bandeira e gritou: Portugal, Portugal, pelo Mestre de Avis.
De seguida, com pompa e circunstância, o arraial é repetido por toda a cidade. Na Sé, desafiando o interdito, tangem-se os sinos, dizem-se missas, desenterram-se os mortos e enterram-nos nas igrejas sem que ninguém se atrevesse a opor. Essa manifestação citadina de júbilo é culminada com uma oportuna prédica de um frade pedindo unidade à volta do Mestre de Avis.
Tal como sucedeu com a Igreja no resto da Europa, também em Portugal alguns dos seus membros perderam a vida. A morte do bispo de Lisboa e o linchamento da abadessa são eventos conjunturais que não significam haver um movimento contra a Igreja.
Contrariamente ao resto da Europa, o clero português podia juntar-se à revolução, como juntou, sem receios da hierarquia, porque muitos membros influentes da Igreja apoiavam a luta pela defesa da independência nacional.
Nesse ínterim, como actuariam as forças de impugnação?
Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
DN
Valentino Viegas
11 Setembro 2023 — 00:27
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 2 semanas ago