374: Uma crónica sobre nada

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🇵🇹 OPINIÃO

Porquê escrever? Porque escrevemos? É curioso que dois autores tão distantes no tempo como o poeta Guillaume d”Aquitaine (1086 – 1127) e o romancista Gustave Flaubert (1821-1880) tenham vindo a exprimir o mesmo desejo: escrever sobre nada: “o que eu quereria fazer era um livro sobre nada” (Flaubert); “Je ferai um poème de pur néant” (Guillaume d’Aquitaine, traduzido da língua d’oc por Jacques Roubaud).

Escrever poderá ser um ato intransitivo, poderá ser criar “um livro que se sustenta pela força interna do seu estilo” e que prescinde de assunto e narrativa (Flaubert) ou “um poema de puro nada, que não será sobre mim nem sobre os outros, nem de amor nem de juventude, nem de nada” (Guillaume d”Aquitaine)?

Estamos aqui a tocar uma das grandes tentações da modernidade, a escrita pela pura escrita, a renúncia ao referente, ao tema, à narrativa, e apercebemo-nos que a tentação não é tão recente ou moderna como pensávamos, pois que já no século XII um poeta de língua provençal (“proençais soem mui bem trovar” dizia o nosso rei-poeta D.Dinis) aspirava a esse limite absoluto da escrita e da linguagem, o texto sem motivo nem referente, sustentado apenas pela força da própria escrita.

Abrir uma crónica com estas referências literárias significa apenas (desmascaremo-nos) o embaraço deste cronista (que, pela própria etimologia da palavra, deveria estar atento ao tempo) em escolher o tema do seu artigo.

Ah, como seria bom deixar aqui apenas um exercício de estilo, cumprimentar e ir-me embora! Mas a actualidade pesa sobre os nossos pensamentos como sobre os nossos escritos.

Há uma guerra em curso, que parece ter atingido um perigoso momento de equilíbrio em que, não havendo claros vencedores nem vencidos, os combates parecem estagnar em massacres sem consequência.

Começa a não ser pecado mortal ouvir vozes sensatas, como a de Danilo Türk, ou vozes que vêm dos Estados Unidos, constatando a necessidade de sair do impasse.

A derrota de Putin é já evidente para todo o mundo. Mas o esmagamento total da Rússia é um sonho geopolítico irrealizável, pelo menos desde que, no século XVIII, Moscovo derrotou o grão ducado da Lituânia, um sonho tão irrealizável e irrealista como foi o projecto criminoso de reconquista da Ucrânia pela Rússia.

O cronista pensa agora como seria bom escrever sobre nada, em lugar de exprimir aqui dúvidas que parecerão a alguns heresias dignas da fogueira.

Mas se o cronista se virar para a política interna, sente que o que tem a dizer já disse e que, enfim, tudo será melhor do que um remake das descomposturas ao povo dos saudosos da velha e boa troika, apimentadas agora pela criatividade do Dr. André Ventura.

Mesmo em poesia, onde estamos mais perto de tocar os limites da linguagem, nunca conseguimos afastar-nos inteiramente dos nossos referentes e da insistência do real. Hoje penso que ainda bem que é assim.

Pobre crónica sem assunto, vagueando entre factos e pensamentos sem se fixar, nem sequer “uma crónica de puro nada” conseguiste criar. És como a “animula vagula blandula” (“alminha vagabunda e meiga”) do imperador Adriano, quando foi confrontado com o vazio mortal do seu desejo.

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
05 Setembro 2023 — 00:33


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 semanas ago

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