414: Ainda a habitação

 

🇵🇹 OPINIÃO

Sabemos que, em poucos anos, o custo do arrendamento da habitação, especialmente nos grandes centros urbanos, duplicou ou mesmo triplicou, à semelhança do custo da compra de casas.

Isso trouxe consequências que conhecemos: incapacidade dos mais jovens acederem a habitação e iniciarem a sua autonomia mais plena; imobilidade profissional de muitos, desde logo daqueles que, não habitando em Lisboa, se vêem impedidos de aqui aceitar propostas profissionais devido ao custo da habitação; custos proibitivos para quem queira estudar na capital ou no Porto; dramas diversos para famílias que se separam – ou que não o fazem, por ser incomportável financeiramente; restrições intoleráveis de quotidiano e de despesas para quem tem de pagar casa na capital e na sua periferia…

O significativo agravamento dos juros nos últimos tempos adicionou a este contexto o outro, de um aumento brutal, em diversos casos, do custo do crédito à habitação, como já sucedera por volta de 2011, resultado da crise financeira e bancária.

É-se vítima, dir-se-á, do sucesso que se procurou. Vender Lisboa e o País como destino idílico para investidores imobiliários, pensionistas ricos, nómadas com salários escandinavos e muitos turistas ocasionais europeus e norte-americanos resulta também nisto. Não é novidade.

Um amigo contava-me que se recordava bem da Nazaré dos anos 60, quando os pescadores arrendavam nas semanas de verão as suas barracas litorais, e iam viver em palhotas no campo, durante dois meses, para aproveitar em pleno aqueles escudos redentores. A diferença é que podiam regressar a casa, vindo o outono.

Os incentivos ao investimento no imobiliário e ao alojamento local tiveram virtudes inegáveis, desde logo a recuperação urbana de grande parte do centro histórico em ruínas e o suporte a inúmeros negócios locais associados ao turismo.

E, dir-se-á com a sua dose de cinismo, que em poucas capitais europeias é possível viver no seu centro sem ter de pagar muito bem por esse privilégio. Mas as cidades precisam dos seus habitantes, é um facto.

E, em tempos de crise acelerada, são necessárias simultaneamente soluções de médio e longo prazo, mas também soluções incisivas que mitiguem estes efeitos do livre mercado a funcionar.

Não por acaso, Nova Iorque acabou de proibir integralmente o alojamento local, o actual e o futuro. Londres subsidia fortemente a compra de primeiras habitações para jovens trabalhadores.

Bruxelas tem parte do seu centro da propriedade da autarquia e arrenda directamente a habitação a preços muito abaixo do mercado livre. Lisboa, nas últimas duas décadas, extinguiu a sua empresa de construção de habitação para as classes médias, a EPUL, e deixou de construir habitação social.

Deixo também uma pergunta, que ainda não vi respondida ou sequer feita. Há muitos outros estrangeiros que rumaram a Lisboa, ao Porto e a outras cidades de forma maciça nos últimos anos, para responder à falta de mão-de-obra na hotelaria, na construção, nos diversos serviços.

Onde estão a viver essas pessoas? Em que condições? Essas pessoas que ganham salários mínimos ou pouco acima, com deveres de remessa de rendimento para os seus países de origem. Onde vivem? Como vivem? Não é seguramente nas casas promovidas para arrendamento nos sites imobiliários, com rendas proibitivas.

Estamos a falar de centenas de milhares de pessoas, que permitem que funcionem os restaurantes, os hotéis, as mercearias, as empresas de construção e de manutenção…

Ou precisarão menos de casa para viver do que os médicos, os professores e os funcionários públicos? Ou, porque não são sindicalizados, são estrangeiros, provavelmente não votam e são efectivamente pobres, podem não ter voz? Ah, o velho problema da voz, ainda mais antigo que o da habitação!

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

DN
Miguel Romão
22 Setembro 2023 — 00:38


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413: Portugal, Brasil e falta de educação

 

– “Nota: Se este texto for considerado mal-educado a culpa não é do seu autor que, coitadinho, ainda só tem 50 anos de vida. Responsabilizem o avô dele.

Pessoalmente, não me sinto ofendido pelo que o cronista escreveu. Em democracia, a Liberdade de Expressão é um factor crucial mas também existe o direito ao contraditório. E o meu, que nem aprecio futebol, o qual não passa de um mercado de escravos, apenas sinto amargura em constatar que o meu Português, o de Camões, esteja a ser vilipendiado por um pseudo Acordo Ortográfico, que injecta o brasuquês no seu dia a dia e, pior ainda, por intelectualóides que deviam ter vergonha em o utilizar.

🇧🇷 OPINIÃO

Vítor Pereira, para quem não está familiarizado com o futebol, é um treinador português com passagens pelo FC Porto e por meio mundo, incluindo o Brasil. Ao sair do país sul-americano conseguiu a proeza de desiludir os cerca de 70 milhões de adeptos dos dois clubes locais mais amados, Flamengo e Corinthians.

Já em Portugal, disse que no Brasil não dão tempo para os treinadores trabalharem e que há uma falta de educação generalizada no país. Não são mentiras, todos concordam, incluindo os brasileiros – o problema é que ele é o último a poder falar no assunto.

Primeiro, porque não é educado – lá está – cuspir no prato onde comeu uns bons milhões de reais. E, depois, porque o Corinthians até lhe deu tempo para trabalhar – convidou-o a renovar contrato. Contrato esse que ele não renovou, alegando ter de voltar a Portugal por problemas familiares – semanas depois estava a assinar pelo Flamengo. E no gigante carioca perdeu quatro competições em quatro meses – ora, com essa performance, em qualquer lugar do mundo, não só no Brasil, o treinador arrisca-se a perder o emprego.

Posto isto, as declarações de Pereira foram, logicamente, respondidas à letra no pântano das redes sociais, mas também nos meios de comunicação social sérios do Brasil, como a SporTV, do grupo Globo. Lá, até o jornalista André Rizek, normalmente pouco dado a patriotadas, preferiu usar o fígado para responder a Vítor Pereira: “Se somos mal-educados devemo-lo aos nossos colonizadores.”

O programa em causa, Seleção SporTV, foi para o ar dia 11, dia em que o Brasil somava 201 anos, mais quatro dias, de vida independente. No entanto, o bebezão de 201 anos ainda prefere transferir as responsabilidades dos seus defeitos para o avô.

É um expediente muito útil a que, na verdade, os portugueses bem podiam recorrer. Falta-nos educação? Culpa dos romanos; os hospitais não funcionam? Responsabilidade dos mouros; não há emprego? Problema dos celtas. E ainda sobram suevos, visigodos, fenícios, cartagineses e demais colonizadores para expiarem as outras, muitas, mazelas nacionais.

Outro expediente útil usado no Brasil é, além de imputar tudo o que de mau lhe acontece aos colonizadores, atribuir as muitas qualidades dos brasileiros, como a alegria, a hospitalidade ou a criatividade insuperáveis, a… eles próprios. Em resumo: os defeitos são culpa de Portugal; as qualidades são obra e graça do divino Espírito Santo.

Se o Brasil é hoje uma potência ambiental – e geográfica, demográfica e até económica – deve-o à área e à unidade que tem. Caro paulista, tivesse a coroa portuguesa esquartejado a sua metade da América, como a espanhola esquartejou, e hoje a riquíssima Amazónia não pertenceria ao seu país. Caro amazonense, tivesse a coroa portuguesa esquartejado a sua metade da América, como a espanhola esquartejou, e hoje o abastado estado de São Paulo não pertenceria ao seu país.

Ninguém põe em causa, claro, que a colonização portuguesa (assim como todas as demais) ofereceu um vasto cardápio de crueldades. E ninguém deixa de aplaudir que se conte, cada vez mais, a História do Brasil da perspetiva de quem já lá estava na América e de quem para lá foi, escravizado, de África.

Mas o Brasil comportar-se como um bebezão, aos 201 anos, é demais.

Nota: Se este texto for considerado mal-educado a culpa não é do seu autor que, coitadinho, ainda só tem 50 anos de vida. Responsabilizem o avô dele.

Jornalista, correspondente em São Paulo

DN
João Almeida Moreira
21 Setembro 2023 — 01:54

– Ao contrário de TODOS os textos inseridos neste Blogue, que são corrigidos de brasuquês para português original, o texto deste cronista não é ortograficamente corrigido dado que respeito a sua origem e a sua ortografia nativa.


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412: Pais que estudam pelos filhos

 

🇵🇹 OPINIÃO

Dizia-me uma mãe: “Não me posso demorar, tenho de ir gravar um resumo das aulas para o meu filho ouvir.” Esta mãe lê a matéria que o filho aprende na escola, resume-a, grava um áudio e o filho apenas tem de o ouvir.

Estará esta mãe a ajudar o seu filho?

Os pais que fazem as coisas pelos filhos (e não com os filhos) acabam por evitar que estes se confrontem com as dificuldades e os desafios próprios da vida – e falamos aqui da vida como um todo, e não apenas da vida escolar.

Será esta forma de exercer a parentalidade promotora de um crescimento saudável?

A resposta é não.

Muitos pais substituem-se aos filhos quando estudam e fazem os trabalhos de casa por eles.

Diria que estamos perante um problema em confiar e uma enorme necessidade em assumir o controlo, acabando por proteger de uma forma excessiva e que não facilita o desenvolvimento das necessárias competências de trabalho e hábitos de estudo.

Estamos perante um problema em confiar e uma enorme necessidade em assumir o controlo, acabando por proteger de uma forma excessiva e que não facilita o desenvolvimento das necessárias competências de trabalho e hábitos de estudo.

Assistimos também, muitas vezes, a pais que vivem o percurso escolar dos filhos com elevada ansiedade, demasiado centrados no rendimento académico e na competição. Há pais que já se questionam sobre a universidade onde os filhos irão estudar, quando estes frequentam ainda o 1.º ciclo.

Pais demasiado exigentes acabam ainda por potenciar estados de ansiedade nas crianças, que se manifestam quando têm de ir ao quadro, falar perante a turma ou realizar uma avaliação.

Temos crianças que choram quando recebem um “Bom”, porque os pais querem (ou exigem) um “Muito Bom”. Crianças que crescem a acreditar que não são suficientemente boas, com o natural impacto negativo que isto tem em termos de auto-estima e aceitação de si mesmas.

É fundamental que os pais ajudem os filhos a vivenciar a escola de uma forma construtiva e securizante, palco também de relações interpessoais e de aprendizagens informais. Não são apenas as notas dos testes e aquilo que é afixado na pauta que interessa.

Os pais devem ainda estimular a autonomia e a independência, orientar e guiar, mas permitindo o erro, a frustração e a desilusão que, afinal de contas, fazem parte da vida de todos nós.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

DN
Rute Agulhas
21 Setembro 2023 — 00:31


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411: Liberdade de expressão cultural e patrulha inquisitorial

 

🇵🇹 OPINIÃO

“A censura está para a arte como o linchamento para a justiça”

Henry Louis Gates Jr.

Assistimos a um número crescente de ataques a obras literárias e artísticas em nome do movimento “woke“, cuja filosofia assenta em grande medida na chegada a uma espécie de amnésia colectiva, requerendo, pois, o empenho contínuo desse movimento na deslegitimação da História (subsumida que é a uma sequência de eventos de crueldade chocante) e na supressão de obras literárias e artísticas (vistas como instrumentos de opressão de grupos marginalizados).

Nessa sequência, o movimento tem exigido, entre outras coisas, (i) o banimento ou a correcção e conversão em textos politicamente correctos de obras que considera snobs, misóginas e/ou racistas (como as obras de Enid Blyton conforme já aqui referi), (ii) a destruição ou vandalização de monumentos (como o Padrão dos Descobrimentos) que encara não como recordações ou lembranças de factos ou entidades doutras épocas, mas como símbolo de um passado colonial e (iii) mais recentemente a tentativa de remoção de uma obra artística do notável Francisco Simões na qual o autor de Amor de Perdição abraça uma mulher nua (Ana Camilo), alegando que a escultura objectifica a mulher e ofende a sua dignidade.

Estes incidentes obrigam-nos a reflectir sobre as fronteiras e limites entre a expressão cultural, que emana da liberdade de expressão, e outros valores, incluindo os que se encontram associados a tendências “woke“.

O movimento “woke” não reconhece a existência de uma natureza ou condição humana fixa e inata, vendo o ser humano como uma folha em branco, fruto de um processo de construção social que deve alicerçar-se numa visão orientada para o futuro e no âmbito da qual a narrativa dos factos passados (e os bens culturais a ela associados) podem e devem ser dispensados.

A questão que aqui se coloca é onde traçar os limites entre a liberdade de expressão cultural e os valores, crenças, convicções e práticas de terceiros, guardiões da estética e do bom gosto, que actuam em nome de padrões ideológicos, sociais e culturais que nem sempre reflectem a visão da maioria,

Comecemos por ressaltar que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos) consagra o direito à liberdade de expressão, que abrange não apenas formas de expressão de natureza política, mas também a expressão artística. A criação intelectual deve, pois, ser livre.

Neste quadro normativo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao examinar processos relativos a potenciais violações da liberdade de expressão no contexto de obras artísticas e literárias, em conexão, por exemplo, com livros (The Little Red Schoolbook, History in Mourning, 33 bullets, We made each dawn a Newroz, Le Grand Secret), pinturas (Three Nights, Three Pictures), filmes (Council in Heaven) e até poemas (O canto de uma rebelião – Dersim), tem acentuado o imperativo da liberdade de expressão como um dos pilares de qualquer sociedade democrática.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já reconheceu que os criadores de expressão cultural devem evitar que essa expressão seja gratuitamente ofensiva em relação às opiniões religiosas e crenças de terceiros, não sancionando, todavia, a eliminação da História nem a remoção, sem mais, de bens culturais.

Com efeito, segundo esse Tribunal, a liberdade de expressão permite, de forma salutar, a divulgação de informação e de ideias, quer estas sejam recebidas de forma favorável, quer sejam consideradas inofensivas, quer sejam vistas com indiferença, quer ofendam, choquem ou perturbam um ou mais elementos da população.

Sabe bem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que só a liberdade de expressão garante a livre criação literária e artística, que as artes e as letras desafiam convenções, incitam à reflexão e inspiram mudança e que quando a expressão criativa é tolhida pela censura é sufocada a essência da inovação e do progresso.

Conclui de forma magistral e sumária o referido Tribunal que “aqueles que criam, executam, distribuem ou exibem obras de natureza cultural contribuem para a troca de ideias e opiniões, algo essencial numa sociedade democrática”.

E neste contexto legal e judicial não podemos senão concluir por um princípio de intocabilidade da expressão literária e artística (a não ser por motivos de força maior), quer estejam em causa bens culturais de hoje, quer se trate da Arte de ontem.

A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge

DN
Patricia Akester
20 Setembro 2023 — 00:28


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410: Empatia artificial

 

🇵🇹 OPINIÃO

A inteligência artificial não existe. Não se apalpa. Pode-se ver, pode-se sentir e pode-se até, só e apenas, ouvir.

Muitas vezes sentimo-la e nem sequer sabemos que o que está lá não existe.

O mundo passou de natural a artificial e de artificial a intangível. Vemos, sentimos, ouvimos, mas na verdade nada existe. Existe sem existir. E nós conseguimos viver com isso.

Nós, o mundo no geral, mas no particular, já eu, não lido muito bem com esta ideia de que temos as mesmas coisas que tínhamos, mas na verdade elas não existem. Lido pior ainda com as coisas novas que temos não sejam criadas por nós.

São criações novas sim, mas não são uma inovação. São uma cópia ou uma adaptação. São uma mutação ou uma transformação.

Paul McCartney anunciou que a voz de John Lennon ia ser gerada por inteligência artificial para que se terminasse uma canção inacabada dos Beatles.

James Earl Jones já tinha vendido os direitos da sua voz, imortalizando-a no papel de Darth Vader, e agora chegou a vez de ressuscitarmos o John Lennon.

Eu gosto dos Beatles. E gosto da voz e da sonoridade do Lennon, mas caramba, estamos a abrir a porta para que o artista do futuro seja um bot. Para que se resuma a uma linha de código. Para que exista sem existir.

E como ficamos nas artes e na cultura? Ficamos com vozes digitais e algorítmicas. Vozes poderosas e afinadas criadas, não por um músico, mas por um engenheiro.

© Carlos Rosa

Não é que haja um problema de base se a voz for a de um engenheiro, mas na verdade não é. A voz, é uma voz qualquer. É a voz de quem o engenheiro quiser. Jovem ou velha, nova ou usada, conhecida ou desconhecida.

Neste caso é bem conhecida e é caso para dizer que Lennon voltou.

A inteligência artificial é como um personagem de banda desenhada que vai ganhando vida ao longo das vinhetas coloridas que preenchem esta e aquela história. E nós vamos ganhando afinidade com ela, vamos ganhando empatia. Acaba por saltar para o filme da vida real, e quando ganha som e movimento, entranha-se nas nossas vidas.

A inteligência artificial é a personagem de banda desenhada do momento. Já ganhou cor e forma, já ganhou som, já ganhou movimento, já ganhou vida.

E essa vida vai misturar-se com a nossa, e nós, com toda a nossa empatia, vamos acabar por fundir estas duas vidas, e artificialmente, ter uma só.

Designer e director do IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia

DN
Carlos Rosa
20 Setembro 2023 — 00:27


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409: As Nações Unidas são essenciais para a cooperação internacional

 

🇵🇹 OPINIÃO

Está a decorrer na sede das Nações Unidas o chamado Alto Segmento, que marca o início de uma nova sessão anual da Assembleia Geral. Chama-se Alto Segmento por trazer a Nova Iorque, por uma semana, para a abertura do novo ano de debates, chefes de Estado e de governo. Desta vez, a afluência é, no entanto, menor, sendo muitos deles representados pelos seus ministros dos Negócios Estrangeiros.

Vejo aqui duas explicações, uma mais lógica, outra preocupante. Primeiro, a mais aparente: nas últimas semanas ocorreu uma série de cimeiras, o G7, a NATO, os BRICS, o G20, o G77/China; houve muitas oportunidades para encontros de alto nível.

Segundo, uma razão mais política e inquietante: a Assembleia Geral poderá estar a perder importância, perante a proliferação de cimeiras com um foco mais preciso, capaz de atrair países que partilham preocupações relativamente idênticas e mais concretas.

Se for esse o caso, podemos estar a assistir ao aceleramento de uma perturbante fragmentação política da comunidade internacional e à marginalização política da ONU.

A ONU é um sistema complexo e muito variado. Tem uma vintena de agências especializadas, completamente autónomas em relação ao secretariado-geral, incluindo do ponto de vista financeiro e da escolha dos seus dirigentes, mais uma série de programas e fundos com uma autonomia relativa.

Toda esta parte do sistema desempenha papéis fundamentais na coordenação técnica das matérias que cabem nas suas respectivas áreas de competência (alimentação, saúde, aviação civil, trabalho, educação, navegação marítima, meteorologia, propriedade intelectual, etc), na cooperação para o desenvolvimento ou na ajuda humanitária.

Estas instituições são fundamentais para o funcionamento da vida internacional e devem ser vistas pela positiva. Sem elas, as relações entre os Estados seriam um caos.

Convém, todavia, sublinhar que estas agências e programas têm passado por reformas sucessivas, de modo a poderem responder aos novos desafios científicos e tecnológicos.

Assim, quando se fala da reforma da ONU está-se fundamentalmente a pensar na dimensão política, a começar pela autoridade da Assembleia Geral e, sobretudo, na transformação do Conselho de Segurança, de modo que a sua composição e regras de funcionamento correspondam ao mundo de agora e não à realidade que existia em 1945, quando apenas 51 membros se reuniram pela primeira vez. Hoje, o total de países membros é 193.

O Conselho de Segurança continua, porém, com a mesma composição, tendo havido uma pequena alteração em 1960, quando quatro membros rotativos foram acrescentados ao número inicial.

É evidente que isso é incompreensível. Como também é evidente que todos os esforços feitos, sobretudo depois do fim da Guerra Fria, para dar ao Conselho a coerência necessária, têm falhado.

Nos anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria, vários países acreditaram ser esse o momento para uma mudança a sério. Nessa altura, por motivos das minhas funções na ONU, estive empenhado na questão.

Pude verificar que o assento permanente e o direito de veto eram considerados vitais para os interesses geoestratégicos dos cinco Estados com essas prerrogativas.

Foi impossível chegar a um mínimo de acordo sobre o alargamento das representações permanentes, e impensável pôr em cima da mesa qualquer proposta que beliscasse a capacidade de vetar resoluções. Se se mencionava a candidatura do Japão, por exemplo, de imediato surgia a China a dizer que não e a levantar a hipótese da Indonésia, entre outras, no que respeita à Ásia.

Da Índia, quase que não era possível falar, não só por causa da China, mas do Paquistão também. África era outro enredo, com diversos candidatos apadrinhados por diferentes países influentes.

Na Europa, era preciso ter em conta os interesses dos alemães, dos italianos, dos defensores da presença da União Europeia, e as objecções em surdina da França e do Reino Unido. Na América Latina, o México e o Brasil tinham os seus apoios, uns declarados, outros dissimulados. E no Médio Oriente, reinava a confusão.

A discussão ficou assim congelada durante mais de duas décadas. Está agora a emergir, no seguimento dos desafios que têm sido a pandemia da COVID, a agressão contra a Ucrânia e a não resolução de outros conflitos dramáticos, como o da Síria ou de Myanmar, países que fazem parte da lista de interesses estratégicos de algum dos cinco membros permanentes.

A fragmentação e o reforço das alianças regionais ou viradas contra o Ocidente também fazem pensar na necessidade de rever a questão.

Na realidade, as fracturas hoje existentes no Conselho de Segurança ameaçam a autoridade e o futuro da ONU. Abrem as portas a rivalidades regionais, à instabilidade internacional e à eclosão de conflitos, em vez de negociações.

Estamos num contexto perigoso. É por isso que há quem esteja preocupado com a necessidade de revitalizar a dimensão paz e segurança da ONU.

O Presidente Biden tem em cima da mesa, para discussões muito cautelosas durante os próximos meses e antes da Assembleia Geral de 2024, uma proposta de reforma do Conselho.

No essencial, propõe que se acrescente meia dúzia de membros permanentes, mas sem direito de veto, aos cinco actualmente existentes. Este plano tem encontrado oposição: vários países, incluindo a Itália, opõem-se ao aumento do número de lugares permanentes.

Uma outra proposta vem do Japão. Propõe um incremento de dez assentos não-permanentes, mas com mandatos mais longos que os actuais membros rotativos. Seis teriam um mandato de dez anos e quatro, de cinco anos.

E as organizações regionais seriam representadas, caso fossem eleitas, por um só Estado-membro, mas podendo essa representação rodar dentro da organização. O Japão sugere igualmente que o direito de veto seja gradualmente limitado até 2045, aquando do centenário da ONU.

Estas são duas ilustrações de uma realidade que aprendi ao longo de décadas: nas condições actuais, não há hipótese de mexer no Conselho de Segurança.

Tratemos, isso sim, das questões da guerra e da paz, das missões de paz, da cooperação internacional, da pobreza, da boa governação, das migrações, do clima, da revolução digital e já teremos ido muito longe. Será que os líderes irão abordar estas matérias com a coragem e o sentido histórico que elas exigem?

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

DN
Victor Ângelo
20 Setembro 2023 — 00:28


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408: Da incontinência oratória à palavra de prata

 

🇵🇹 OPINIÃO

“Nos últimos dias, (…) o Presidente da República entrou num frenético processo de incontinência oratória. Possuído por um entusiasmo esfuziante, o homem não se cala, desnudando-se, e ao seu pensamento mais profundo, cujas raízes se situam no antes do 25 de Abril”.

Quando mostrei este trecho a um amigo, ele olhou para mim com ar sério e disse: “tu vais dizer isso de SExa Lacrau?…”. Tranquilizei-o. “O texto que cito é do dirigente do PCP José Casanova a respeito de Cavaco Silva. Encontrei-o num artigo-obituário do Observador“.

Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) é um dos políticos fulcrais desta geração. É um homem que não parece mover-se por emoções ou por dinheiro. Apesar da sua carreira como professor de Direito, o sal da sua vida é a busca pelo poder [e holofotes]. Iniciou-a como jornalista e dirigente do Expresso.

Daí passou para a política activa, tendo sido ministro e ascendendo depois à liderança do PSD. Não teve sucesso no cargo nem na candidatura ao município de Lisboa. Teve a clarividência de perceber que o acesso ao poder teria de ser feito por outra via.

Tentou despir a pele de criador de factos políticos e de jantares com vichyssoise e vestiu a de avozinho amoroso, tendo-se tornado comentador político televisivo, com enorme sucesso. Foi, porventura, então que se apercebeu que a essência do poder não é o exercício de cargos políticos ou institucionais.

É a capacidade de influenciar, em última análise condicionar, decisões relevantes. E, numa democracia, a opinião do comentador político preeminente, que comunica directamente e é ouvido atentamente por milhões de telespectadores, conta e muito.

Além disso, pode facilitar o acesso ao cargo de mais alto magistrado da nação, como sucedeu. E se, como “presidente dos afectos”, conseguir manter altos índices de popularidade até ao final do seu segundo mandato, não terá necessariamente de retirar-se do palco político.

Em especial se o palco da luta política estiver profundamente fragmentado e necessitar de um árbitro institucional respeitado pela generalidade dos cidadãos (é esta diferença que a soberba e vitupério de Cavaco Silva não lhe permite ver; ele será sempre um chefe de facção inculto, desprezado pela metade do país que não é de direita).

Isto coloca a liderança socialista numa situação complexa – por um lado, o governo necessita ter uma relação estável com o PR; por outro, é essencial diminuir até 2026 a quota de popularidade de MRS sob pena de a margem de manobra do PS sair enfraquecida no pós-2026. Parte do despique vocal entre MRS e líderes do PS advém deste dilema.

Apesar de tudo, neste despique MRS não tem causticado muito o governo, incluindo o PM, quanto a promessas como as “casas (26 mil fogos) para todos em 2024”, as 12 mil camas em residências universitárias entre 2019 e 2022 e outras similares.

Em parte, porque quer continuar bem visto pelo eleitorado tradicional do PS. Mas também porque não há-de querer ser apodado de força de bloqueio e que lhe tentem imputar o que o Executivo não foi capaz de fazer.

Não há dúvidas que, no primeiro mandato, a generalidade dos cidadãos gostou de ter um presidente simpático, desempoeirado, solidário, aberto ao contacto, extrovertido. E continua a gostar de MRS, como todas as sondagens de popularidade mostram.

É inquestionável que a verbosidade descomedida é uma componente importante da persona do “presidente dos afectos” – selfies, beijinhos e abraços, verborreia, de permeio com uma [encenação de] grande empatia para aqueles que contacta, escuta, conforta. Mas MRS tem tido derrapagens inusitadas.

Para quem tem fama de pensar e medir a palavras que diz, ultimamente vem falhando no controle da sua torrente palavrosa, como reflectido em comentários despropositados relatados nos media e nas redes sociais.

Num deles, fez uma “piada” intolerável com o peso de uma mulher que se sentava numa cadeira. Noutro, “gracejou” sobre o decote de uma jovem. A cereja no topo do bolo foi a frase-síntese num evento aquando da recente visita de Estado ao Canadá: “somos fado, somos bacalhau, (…) somos Cristiano Ronaldo!”.

As reacções nas redes sociais, e não só, não se fizeram esperar. Uns porque não imaginavam ter votado num animador de eventos populares. Mas, acima de tudo, porque esperamos mais de quem nos representa, sobretudo quando se trata de alguém preparado, culto e inteligente.

Talvez se o permanente caudal palavroso diminuísse, MRS pudesse dedicar mais tempo a fazer discursos com o nível que se espera de um Presidente da República, e dele em especial. Tendo sempre presente a sabedoria do nosso povo que ensina que “a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”.

Consultor financeiro e business developer
www.linkedin.com/in/jorgecostaoliveira

DN
Jorge Costa Oliveira
20 Setembro 2023 — 00:28


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407: A Era das Vacinas (III)

 

🇵🇹 OPINIÃO

Em semanas anteriores foram descritas nestas páginas as 3 etapas iniciais sobre a preparação de vacinas, desde a antivariólica, à atenuação ou inactivação dos micróbios patogénicos (ex. antidiftérica), até ao método de fabrico por técnicas de engenharia genética, como acontece com a vacina contra a infecção pela hepatite B que deve ser administrada à criança recém-nascida, logo a seguir ao nascimento, antes de sair da maternidade.

Foi, note-se, a primeira vacina utilizada contra uma doença oncológica, visto que previne o cancro do fígado.

Ver-se-á, hoje, que os avanços tecnológicos e científicos foram imensos, tendo permitido lançar novas vacinas, incluindo para a Pandemia de Covid-19.

4 – Resume-se, a seguir, a espantosa descoberta obtida com surpreendente sucesso por Ugur Sahin e sua mulher Ozlem Tureci. Estes dois cientistas que trabalham na Alemanha são um casal de médicos de origem turca. Conseguiram produzir vacinas inteligentes que induzem a produção de anticorpos protectores, mas indirectamente.

Isto é, em lugar da vacina ser feita a partir do agente viral causador da Covid-19, prepararam a injecção de um mensageiro (ARN) que depois de ser inoculado no organismo humano “dá ordens” para ser fabricada uma proteína igual à presente na espícula do vírus.

Ora, o sistema imunológico ao identificar esta nova substância como estranha reage com a produção de anticorpos dirigidos especificamente para essa proteína presente no organismo, mas que é idêntica à viral.

Depois, se o verdadeiro vírus for transmitido a uma pessoa, encontrará os anticorpos anteriormente produzidos pelo sistema imunitário que, assim, funcionam como protectores.

Essa mesma vacina contra o Covid-19, adaptada às novas variantes do vírus original que foram surgindo, continua a estar indicada, em 2023-2024, porque o vírus se mantém em circulação.

5 – Por outro lado, é preciso recordar que “não há Inverno sem gripe”. Os diferentes tipos do vírus da gripe circulam nas semanas frias do ano, mas alternadamente nos dois hemisférios: quando faz frio no Brasil ou em Moçambique, faz calor em Portugal e vice-versa, quando é inverno em Portugal é a estação quente no Brasil ou Moçambique.

Acontece que durante esta volta ao mundo os vírus vão sofrendo alterações (mutações), motivo pelo qual a vacina que foi aplicada na estação de inverno de 2022, já não é eficaz no ano seguinte.

Por isso, tem que ser fabricada de novo com as previsões das mutações baseadas nas análises laboratoriais dos tipos de vírus quando circulam no outro hemisfério.

É oportuna a decisão tomada pelo Ministério da Saúde, no seguimento da proposta da DGS, em juntar a administração das duas vacinas para a gripe e Covid-19.

Ainda bem que assim sucede. Deliberação acertada porque a vacinação simultânea é segura e muito compensadora em termos de custos. Aliás, todos os especialistas admitem que os resultados da vacinação são altamente custo-efectivo.

Por outras palavras, em termos de custo-efectividade, os dinheiros públicos são bem utilizados porque a redução da probabilidade de ocorrerem internamentos hospitalares por doenças graves, evitadas pela vacinação, é lucrativa.

Moral: As vacinações contra a gripe sazonal e Covid-19 são gratuitas. Quem for vacinado compra, por zero euros, menos doenças para o inverno. O Estado paga e ganha!

(continua na quarta-feira)

Ex-diretor-geral da Saúde
franciscogeorge@icloud.com

DN
Francisco George
20 Setembro 2023 — 00:29


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 2 dias ago

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406: Os melhores anos das nossas vidas

 

🇵🇹 OPINIÃO

J’avais vingt ans. Je ne laisserai personne dire
que c”est le plus bel âge de la vie. Tout
menace de ruine un jeune homme: l’amour,
les idées, la perte de sa famille, l’entrée
parmi les grandes personnes.

Paul Nizan, Aden-Arabie

– Embora com o meu francês mais que enferrujado dado que não o falo há décadas, vou ajudar na tradução: “Eu tinha vinte anos. Eu não vou deixar ninguém dizer que é a idade mais bonita da vida. Tudo ameaça arruinar um jovem: amor, ideias, perda de família, entrada entre os adultos.

Não sei se aos meus leitores mais jovens (se os tiver…) dirá alguma coisa o nome de Paul Nizan, um autor que muito citávamos na nossa geração, sobretudo este texto em epígrafe (para quem souber ler francês…), que dava conta da imensa confusão que significava para nós a saída da adolescência.

É verdade que nós saíamos da adolescência num mundo tão diferente do actual, que nos poderemos até sentir mais perto deste jovem intelectual francês dos Anos 40, dividido entre o seu ideal comunista e a realidade brutal e inaceitável do pacto de 1939 entre Hitler e Estaline. Mas temos de aprender a distanciar-nos dos nossos modelos de referência para compreendermos o novo e os novos.

É demasiado fácil (e muitos o fazem) partir do princípio de que os mais novos estão condenados, pela tirania redutora do digital, a desenvolverem mentes uni-dimensionais e acríticas, e pela sua formatação num mercado competitivo e pretensamente meritocrático, em individualistas egocêntricos, alheios à ideia de solidariedade e a quaisquer perspectivas de transformação social.

Os quadros de referência e a informação cultural podem ter mudado, mas as preocupações com o mundo e o desejo de o mudar permanecem vivos e activos nas novas gerações.

Este discurso lamechas e queixoso vem, quase sempre, de quem não está minimamente aberto a dialogar e a entender. A desilusão dos jovens com os rituais políticos, que à nossa geração custou muito a reconquistar, e que têm por nome comum “democracia”, corresponde à insatisfação com um sistema político que em todo o mundo democrático não tem conseguido ir ao encontro das necessidades sociais reais das pessoas, esmerando-se antes em jogos florentinos, a que só uma pequena bolha político-mediática acha graça. Abrir o terreno para propostas autoritárias parece até ser o secreto objectivo dessas políticas crescentemente impopulares.

Temos assistido à elevada consciência com que as novas gerações levam a sério a ameaça climática, com que todos nós fingimos preocupar-nos, mas que depressa passam na agenda pública da maior à menor prioridade.

Conversando com os novos, como tive oportunidade de fazer neste fim de semana, num encontro promovido pela organização do Erasmus Portugal, encontrei jovens bem informados (e se o foram pela Internet, que importa?) sobre os mais candentes conflitos contemporâneos e os mais sérios problemas internacionais.

Tive a mesma impressão ao dialogar com estudantes de Ciência Política do ISCSP e da Universidade Nova. Os quadros de referência e a informação cultural podem ter mudado, mas as preocupações com o mundo e o desejo de o mudar permanecem vivos e activos nas novas gerações.

O discurso estafado da indiferença política e social da juventude corresponde a uma falta de capacidade nossa para entrosar os ideais e projectos políticos que defendemos, cujos princípios fundamentais não mudaram com o tempo, com as preocupações e necessidades reais da juventude, no quadro de um mundo que mudou vertiginosamente, mas no qual as realidades da intolerância, da exclusão e da extorsão são as mesmas, com vestes novas e brilhantes.

Devemos ter a humildade intelectual de reconhecer que os problemas mudaram, que os quadros mentais são outros e que muito temos nós também de ouvir e aprender.

São as novas gerações que irão conduzir as mudanças do mundo, num contexto terrível e perigoso, de máxima imprevisibilidade e de crescente capacidade de fabricação de ilusões. A tarefa deles não é fácil. Eu também não diria hoje que 20 anos é a mais bela idade da vida…

Diplomata e escritor

DN
Luís Castro Mendes
19 Setembro 2023 — 00:26


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



published in: 3 dias ago

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405: A grande lavandaria

 

🇵🇹 OPINIÃO

Muitas estrelas do futebol mundial acodem ali como moscas, atraídas por salários estratosféricos. Em pleno deserto, a Arábia Saudita é o novo El Dorado da bola, onde já militam 14 jogadores e cinco treinadores portugueses, entre os quais avulta a estrela maior dos garimpeiros, o nosso Cristiano, que concorda em emprestar a fama própria para branquear o crime alheio. Mas já lá vamos.

A maior monarquia muçulmana do mundo tem em curso uma operação sem precedentes, com investimentos calculados em 25 mil milhões de euros, o equivalente à soma dos nossos orçamentos anuais para a Saúde e Educação.

O objectivo é criar rapidamente uma indústria desportiva masculina – sublinho masculina – altamente competitiva e com impacto nos mercados globais de transferências e direitos de transmissão de TV do futebol, ténis, fórmula 1 e golfe.

É como o pão e o circo dos imperadores romanos, um instrumento para mascarar o despotismo saudita, baseado na severidade moral islâmica e na escravização das mulheres. E é, também, uma arma política para lavar a face externa do regime, condenado por constantes violações dos Direitos Humanos.

A vergonha das democracias está em renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.

Petróleo à parte, a Arábia Saudita é um país que nada produz e que nem sequer é capaz de garantir a sua própria segurança, sempre confiada aos Estados Unidos.

Apesar de pertencer ao clube dos 20 países mais ricos (G20), este Estado, cujo chão foi berço do Profeta Maomé, também não foi capaz de construir uma Administração e forças de segurança à altura dos tempos, como demonstra o método selvagem de controlo das suas fronteiras com um dos vizinhos do lado, o Iémen, onde os refugiados etíopes são recebidos a tiro.

O mesmo acontece com a Internet e as redes sociais, onde qualquer pequena dissidência pode ser punida com a pena de morte – e já cá não está para o contar o professor reformado Mohammed al-Ghandi, executado há pouco por mensagens críticas ao regime nas redes sociais, onde tinha apenas dez seguidores.

Para consumo externo, os cúmplices mais visíveis do regime autoritário saudita são atletas como Cristiano Ronaldo, Karim Benzema ou Neymar, que disputam as competições em troca de contratos fabulosos, num plano de negócios que se estende a todo o futebol europeu, aos grandes clubes – alguns, aliás, já são propriedade de capital árabe – e à própria FIFA, de domínio tão masculino como as autocracias do petróleo, das quais a Arábia é o principal produtor mundial.

O ajuste com o português mais famoso do mundo saiu-lhes fartamente: segundo Carlo Nohra, dirigente da Liga Saudita, “contratar Cristiano Ronaldo ajudou a transmitir a liga para 140 países e fez crescer as receitas em 650%.”

O negócio e todos estes investimentos fabulosos são realizados pelo fundo soberano saudita, alimentado pela Aramco, a empresa petrolífera que obteve os maiores lucros do mundo, em 2022, graças à guerra na Ucrânia.

E fazem também parte de uma estratégia energética que, perante a crescente pressão das políticas de redução de emissões poluentes, consiste em retardar, com a maior parcimónia possível e ao menor custo, a transição da sua economia apenas sustentada no petróleo bruto. Eis uma das faces mais sombrias do mundo multipolar em que estamos a entrar.

Ainda anteontem, exaltando a “identidade lusa” perante emigrantes portugueses no Canadá, o Presidente da República disse que “somos fado e alma, vira e corridinho, somos caldo-verde e bacalhau, somos tudo isso, somos Cristiano Ronaldo”.

Pois sim, também, acrescento eu, mas cuidado com as espinhas: por mais que admiremos as nossas celebridades, a vergonha dos democratas e das democracias está em ignorar o contexto e renunciar a qualquer impulso ético em troca de entretenimento. A nossa passividade como espectadores antecipa a nossa passividade como cidadãos.

Jornalista

DN
Afonso Camões
19 Setembro 2023 — 00:27


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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