🇵🇹 OPINIÃO
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
(Ruy Belo)
Por muito que se vá esboroando a diferença entre tempo de trabalho e tempo de lazer (há um interessante dossier sobre este tema na última edição da revista Electra), as férias, essa recente invenção da Humanidade (duramente arrancada pelos trabalhadores à classe possidente, só começando a haver férias pagas no ano de 1936) continuam a significar para nós um tempo que nos pertence inteiramente, que não temos que partilhar com os nossos empregadores ou os nossos chefes e de que dispomos para as aventuras da criatividade, para a vida afectiva e amorosa ou para a plena alegria do ócio.
Esse significado forte da palavra “férias” é desde logo um convite à frustração, pois o tempo nunca é inteiramente nosso, a menos que vivamos numa ilha deserta como Robinson Crusoé, mas aí o tempo que teríamos de dedicar à nossa sobrevivência iria anular qualquer veleidade de tempo livre. Só é possível o ócio se houver sociedade.
Digamos então que as férias são sempre um conflito entre a nossa liberdade e as nossas múltiplas sujeições. Mas, ainda assim, valem a pena.
O verão é a única estação em que vislumbramos o paraíso. Que seja apenas ilusão e miragem não apaga a força dessa visão, que continuará a iluminar-nos pela vida fora, do mesmo modo que a arte é uma promessa não cumprida de felicidade. Ainda Ruy Belo: “Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar/ caminha para o mar pelo verão”.
E encontramo-nos muitas vezes durante a vida com essa miragem, sempre que nos chegamos ao mar, nas leituras prolongadas pelos dias dentro, nos amores fugazes mas não menos dolorosos dos Verões, e mais tarde nos mergulhos dos filhos, que voltam à tona de água e já são os netos, pois nós “somos crianças feitas para grandes férias” e só nelas aprendemos “em que medida merecemos a vida” (mais uma vez Ruy Belo).
Escrever será compatível com o pleno gozo das férias? Para quem, como eu, escreveu sempre por dentro dos intervalos de uma vida, a questão nunca se pôs.
Do mesmo modo que já não tenho “leituras de férias”, porque leio o ano todo (e não voltam mais aquelas férias em que lia com todo o tempo a Recherche du Temps Perdu ou a Guerra e Paz), escrever ainda hoje corresponde para mim a um tempo de ócio e de criatividade e não à dureza e ao esforço daquele penoso trabalho de escrita que nos descrevem Flaubert e Saramago, os grandes.
Eu não suspendo nas férias esta minha colaboração no DN, porque a disciplina da produção de um artigo por semana faz falta ao meu trabalho pessoal de escrita.
Procuro muito tempo o tema, escapando quanto posso à mera reacção irritada aos dislates do dia, e raramente ele se me perfila, nítido como uma encomenda, evidente como o sol.
Vivo aqui também no terror da página branca e o que me faz sofrer não é o trabalho da escrita, é a sua própria ocorrência, contra a luz cega da página branca ou do écran do computador.
As férias tornaram-se mais um apelo do que uma plena realização. Nunca desligamos do peso do mundo, agora que estamos sempre em contacto e contactáveis a toda a hora, e o nosso tempo, mesmo em férias, continua a ser medido e pesado pelos mesmos relógios do tempo de trabalho.
Já não poderemos aperceber, como Ruy Belo, Deus a andar “à beira de água de calça arregaçada” e vivemos intensamente as nossas férias como imagem e saudade das férias que já foram, como esbatida visão do paraíso.
Diplomata e escritor
DN
Luís Castro Mendes
01 Agosto 2023 — 00:31
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 2 meses ago