🇧🇷 OPINIÃO
Era final de tarde, mas o dia não acabaria tão logo. A brisa de Lisboa pede uma mantinha nos ombros mesmo no verão, algo que aprendi quando estive por cá no ano anterior.
Algumas terras, mais que outras, exigem que se use uma certa cobertura, uma proteção. Aprender detalhes sobre um lugar nos faz sentir menos estrangeiros, seja lá onde estivermos, inclusive num jardim.
Era a segunda edição do Lisboa Criola, sob a curadoria de Dino d”Santiago, no Jardim de Verão da Fundação Calouste Gulbenkian. Muitas coisas acontecem num jardim, de pecados à salvação, Adão, Eva e Priapo que o digam.
Talvez o disruptivo desta “primavera criola”, de três finais de semana entre junho e julho, foi o fato de não ser preciso aprender algo antecipadamente e nenhuma cobertura ou explicação serem exigidas, bastava ocupar os espaços, inclusive se podia usar os banheiros do edifício-sede da fundação, com sua emblemática arquitetura modernista portuguesa.
As portas, se fechadas estivessem, seriam abertas sem perguntas. Sempre me surpreende uma porta cedendo gentilmente ao movimento de uma vontade. A citação ao banheiro pode parecer descabida se comparada à grandeza da festa, mas é bem proposital.
Os detalhes sempre são reveladores e, cá entre nós, uma coisa é convidar as pessoas a estarem no nosso jardim, outra é deixá-las usar nosso banheiro.
Os jardins estavam lotados, nada de música costumeiramente chamada de erudita, mas ainda assim de precisa erudição. Imperava ali outra ordem. E como boa música se saboreia devagar era possível perceber, se atento estivesse, a delicadeza das misturas, os riscos assumidos nas escolhas e nas composições dos acordes, o conjunto da obra no macro e no detalhe do dia. Nada ali estava por acaso e a cena toda construía o sentido prático da tal “primavera criola”.

Lisboa Criola, festival de música nos jardins da Fundação Gulbenkian.
© D.R.
Cruzamentos e partilhas, trânsitos e movimentos, “um jardim de sotaques carregados, onde ninguém se sentirá estrangeiro”, disse Dino d”Santiago.
Muitas primaveras na história marcam revoluções e mudanças. Hoje parece que elas caminham por outros trajetos, mais sinuosos que retos, mais poéticos que analíticos, elas parecem andar por jardins e a usarem os banheiros.
Foram mais de 30 concertos e DJ sets com os ritmos, as cores e as sonoridades do Kuduro e do Afro House, do Afrobeat e do Hip-Hop, do Fado e da Música Tradicional cabo-verdiana e guineense, passando pelo R&B, o Rap, a Pop, a Soul, o Jazz e a Música Popular brasileira.
Admito que poucos artistas me eram familiares, desconhecia até alguns dos meus conterrâneos, Bia Ferreira, Vinicius Terra, Jonathan Ferr… e isso me dava, mais que os sotaques e ritmos variados, a sensação de estrangeira, que, confesso, durou o tempo da música ser ouvida pelo meu corpo todo. Porque se desconhecia nomes, algo dos ritmos eram presentes na minha própria história.
Se os jardins irregulares da Fundação Gulbenkian foram feitos para danças não sei, mas as pessoas dançaram. Nem tudo feito com um destino impede que outros tantos aconteçam. E nem sempre a melhor ocupação se dá nos lugares reservados para ela.
Se para alguns a diversidade e a diferença de si expõe as próprias fraquezas e fragilidades (às vezes somos estrangeiros na nossa própria pele) a outros encanta. Muitas eram as cores e formas.
Me chamava a atenção uma mulher de cabelos raspados, brincos imensos, blusa de algodão, bermuda jeans, maquiagem colorida, dançava inspirando o par ao lado, um homem de calça cáqui meio alfaiataria e camisa polo. Não combinavam em nada aparentemente. Ela dançava, ele parecia tentar (poucas coisas me são mais belas que as tentativas).
Se vistos na rua poderíamos dizer pertencerem a mundos inconciliáveis, mas dançavam juntos, riam juntos. Inventaria para mim uma história toda de amor entre eles, dessas que acontecem num descuido da vida, esses que criam encontros capazes de dar espaço para o novo acontecer.
Ao lado deles uma mãe amamentava o filho sem perder o embalo da música e um pai segurava a mochila (toda a família com filhos pequenos tem uma mochila).
Uma senhora mais velha dançava sentada enquanto a jovem ao lado lhe segurava a mão. Um casal de homens dançava abraçados lentamente. Vi pessoas de todas as ideias e idades, marcas, texturas e tecidos. Foram cerca de 12 mil pessoas ouvindo mais de 40 artistas.
Tom Farias ao escrever sobre esse evento disse que os jardins foram invadidos. Eu contestei o verbo, mas depois fui olhá-lo com mais vagar.
Havia sim uma invasão. Invadir é ter poder ou domínio sobre algo, um ato sempre avassalador. Mas se bom ou mau serão os detalhes e a forma de ocupar que falarão das moralidades e, acreditem, elas não estão nos beijos, nas roupas ou nas danças dos corpos.
O imoral vive no interdito e nos silêncios impostos (mas, de novo, era possível usar os banheiros e os sotaques eram carregados e vários). A invasão era a do domínio de uma arte e do gesto generoso de compartilhar.
A invasão de diferentes formas de dizer, o poder da voz. Quantos silêncios, quantas mordaças atravessam nossas histórias, quanta cantiga de ninar, quanto sussurro ritmado, e desenho de trança garantiu que melodias e lendas e caminhos sobrevivessem aos tempos, aos mares, ao açoite e ao esquecimento.
A “primavera criola” é uma redefinição e uma torção, o grito de liberdade que ecoa no tempo é música, de fazer todas as gentes a dançarem juntas.
Segundo o dicionário, “criolo” é palavra portuguesa do tempo das colónias, o nome dado ao descendente de europeu nascido em outra terra. Nesse sentido eu sou “criola” também, e sou neta de indígena, sou nativa brasileira, e sou italiana e sou bugra, mas nada disso me define por completo. Essa busca identitária, importante, sem dúvida, é somente parte do acento, um dos muitos passos da dança.
O problema é o delírio da completude. Somos parte. E o passado é só uma herança, não deveria ser sentença. Mas no Brasil (e não só) a pobreza e a cor da pele às vezes o são; e o “criolo”, forma de chamar os descendentes de pessoas negras escravizadas, pode ser sentença de morte e destino.
Mas o “criolo” também é voz, é o dialeto de Cabo Verde, o “criolo” do Golfo da Guiné (em S. Tomé, Príncipe e Ano Bom) e também os da Alta Guiné (em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Casamansa), o “crioulo” Indo-português que compreendem as línguas faladas na Índia (e também no Sri Lanka).
E existem as línguas crioulas de plantação (como o crioulo francês do Haiti, o papiamentu, o crioulo inglês da Jamaica e os crioulos portugueses) e línguas crioulas de fortaleza (como o crioulo sino-português de Macau, o crioulo indo-português de Goa e de Damão e o crioulo de Timor Leste, entre outros extintos).
Há muitos “criolos” e crioulos, muitas heranças e formas de lidar com elas, aí ao ver a biografia de vários dos artistas que ocuparam os palcos dos jardins ficava evidente quantos deles subverteram suas próprias histórias, heranças e reinventaram suas identidades.
Percebes a riqueza da “primavera criola”? Essa que só acontece quando Coré, agora Perséfone, vem do Hades visitar a Terra? A primavera que só existe quando a diversidade acontece.
E um jardim desses, um jardim “criolo”, às vésperas dos 50 anos da Revolução dos Cravos, das independências de Guiné, Angola, Moçambique, Cabo Verde, às véspera da Bienal de Veneza de 2024 – com o tema “estrangeiros em todos os lugares” – é ter a certeza de que um Mundu Nôbu (mundo novo) pode acontecer, mas precisará da arte e de boas curadorias.
Psicanalista e escritora, doutora em Ciências Humanas
DN
Samantha Buglione
30 Julho 2023 — 00:45
Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator
published in: 2 meses ago