🇵🇹 OPINIÃO
A China é o maior produtor de cereais do mundo. Produz à volta de 615 milhões de toneladas por ano. Os EUA são o segundo, com cerca de 420 milhões de toneladas e a Índia, o terceiro, com uma produção anual a rondar os 324 milhões de toneladas.
A Rússia anda na casa dos 130 milhões e a Ucrânia, que ocupa a nona posição, ambiciona com paz voltar a colheitas na ordem dos 65 milhões.
Mas o que interessa é conhecer a lista dos principais exportadores de cereais: os EUA, a Ucrânia, a Argentina, a Índia e a Rússia, por essa ordem. Isto significa que o acesso aos mercados por parte dos cereais ucranianos é importante.
E os principais importadores de cereais são a China, o Egipto, o Japão, o México e a Arábia Saudita. Assim se compreende que nos últimos doze meses, durante a vigência do acordo do Mar Negro, cerca de 25% dos cereais que passaram por esse corredor marítimo tivessem como destino a China.
A continuação do acordo, que esta semana expirou por decisão da Rússia, teria interessado à China, para além da Espanha e da Turquia, que adquiriram, respectivamente, cerca de 20% e 10% da carga transportada.
E ao nível dos países mais vulneráveis, apenas o Egipto importou um valor com algum relevo (1,55 milhões de toneladas), mais do dobro da tonelagem comprada, para fins humanitários, pelo Programa Alimentar Mundial da ONU.
A questão dos cereais e os argumentos da insegurança alimentar e do aumento dos preços nos mercados mundiais fazem parte da narrativa política internacional, com muita militância e nem sempre com o rigor necessário.
Vladimir Putin pode assim insinuar que o Ocidente não se preocuparia com a sorte dos países mais pobres, pois não teria cumprido a parte do acordo que dizia respeito à Rússia.
E que, por isso, não tinha outra solução para além de proceder ao seu termo. É mais um disparo político venenoso contra os aliados da Ucrânia e também contra a ONU. E, pelo que sei, haverá quem acredite nessa conversa falsa.
Mais ainda, já nos próximos dias 27 e 28 terá lugar, em S. Petersburgo, a 2.ª cimeira entre a Rússia e a África. Será um palco excelente para a propaganda do Kremlin.
Também, uma oportunidade para a Rússia prometer doar várias centenas de milhares de toneladas de adubos e de cereais a alguns países africanos. Em ambos os casos, tem excesso desses produtos em armazém. As promessas de dádivas serão jogadas políticas de mestre, com a intenção de ganhar trunfos para a diplomacia russa.
O problema vai ser ao nível do transporte: não será fácil fretar navios em número suficiente e dispostos a transportar mercadorias russas, o que fará aumentar enormemente os custos do transporte, e a insegurança fará disparar os prémios de seguro marítimo.
As companhias de navegação receiam ainda ser apanhadas em violação das sanções que certos países decretaram contra a Rússia.
Isto faz-me lembrar que as questões dos cereais, dos adubos, das sanções e do relacionamento do Ocidente com certas regiões do globo não têm sido contadas, por nós, com a sagacidade necessária.
Em Bruxelas, por exemplo, o discurso geopolítico parece estar entregue a amadores. Em Nova Iorque, projecta-se timidez e confusão, sem coragem ou o entendimento suficiente para decidir onde se deve colocar o acento tónico.
Dizia-se, no passado, que as grandes crises faziam emergir gigantes políticos. Agora, fazem brotar os sete anões, perante a Branca de Neve que Putin gostaria de ter como imagem em África e noutras geografias.
Entretanto, entre o trigo e o joio, teve lugar esta semana em Bruxelas uma cimeira da União Europeia com a América Latina e as Caraíbas (CELAC). Dito resumidamente, foi um desastre, com vários líderes latino-americanos a ditar a agenda e os europeus a prometer comprar o seu apoio, até 2027, investindo 45 mil milhões de euros na região.
Não se sabe donde virão esses milhares de milhões. Nem se os projectos que irão financiar são viáveis e fundamentais para o desenvolvimento dos países da CELAC.
Também não se discutiu a corrupção que é endémica nessa parte do mundo e que terá muito a ganhar com a generosidade europeia. Mas aceitou-se, sem pestanejar, que não houvesse qualquer referência à Rússia, à invasão ilegal da Ucrânia e à necessidade de reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Com dirigentes assim, até um Daniel Ortega ou um fantasista populista pesa mais que um líder baseado em Bruxelas ou que algum outro de malas aviadas para emigrar para o coração da Europa.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU
DN
Victor Ângelo
21 Julho 2023 — 00:31
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published in: 2 meses ago