303: Laura Diogo. Como um rumor se torna uma cruz para toda a vida

 

🇵🇹 OPINIÃO

Porque é que seres humanos normais aceitam rumores, mesmo que eles sejam falsos, destrutivos e bizarros? – é com esta pergunta cruciante, e bem actual, que o grande jurista norte-americano Cass Sunstein começa o seu livro Dos Rumores – Como se espalham boatos, por que acreditamos neles e que podemos fazer (trad. portuguesa, Publicações Dom Quixote, 2010).

Antes de mais, diz-nos Sunstein, é necessário saber como os rumores começam, e saber que começam, na maioria dos casos, por propagadores conscientes, gente que tem a perfeita noção de que está a difundir uma mentira vil.

Há propagadores egoístas, que visam promover os seus interesses prejudicando terceiros, há propagadores altruístas, que espalham boatos ao serviço de causas, e há, enfim, propagadores maliciosos, que procuram disseminar rumores, inverdades, não por interesse próprio ou em nome de uma causa, mas simplesmente para causar estragos.

Há quase 50 anos – mais precisamente, há 42 anos, em Outubro de 1981 -, a manequim e cantora Laura Diogo, coroada Miss Fotogenia no Japão, em 1979, e uma das vocalistas da banda Doce, foi alvo de um rumor gritante, que incendiou Portugal de cima a baixo e que hoje, quase cinco décadas volvidas, ainda se lhe cola como uma segunda pele, uma cruz que terá de carregar para sempre, como uma pena infamante e perpétua, pior do que lepra ou cadeia.

Tudo começou, parece, por obra e graça, ou desgraça, de dois propagadores maliciosos, dois médicos que, quando as Doce se encontravam a actuar na discoteca Skylab, na noite de 22 de Outubro de 1981, decidiram espalhar um boato em duas boates diferentes, no Stones e n” O Tesouro, dizendo que Laura Diogo tinha dado entrada nas urgências do Santa Maria após ter sido sodomizada por um jogador do Benfica, o avançado Reinaldo Gomes – ou, se quisermos, Maurício Zacarias Reinaldo Rodrigues Gomes, nascido em Bissau, na Guiné, em 2 de Novembro de 1954, que John Mortimore levou para a Luz em 1978, após ter estado no Vila Real (1973-1974), no Famalicão (1974-1978) e, de permeio, emprestado na Régua.

Uma das cantoras da banda, Fátima Padinha, diz que o boato chegaria, inclusive, a ser discutido na Assembleia da República, havendo dele registo nas actas dos trabalhos parlamentares.

Da diligente pesquisa que efectuámos, porém, o mais que se encontra desse período, buscando pelo nome do grupo, foi o então deputado da UEDS, António Vitorino, a afirmar em São Bento que o governo da AD agitava “doces amanhãs que cantam” ou o deputado da UDP, Mário Tomé, a bradar que o mesmo governo andava a assassinar operários e que “as suas palavras doces já não podem enganar ninguém”. Das moças, nem rasto.

Seja como for, é facto que a estória difamatória alastrou como faísca na pradaria (Mao Zedong) e, como também sublinha Padinha, às tantas toda a gente tinha um amigo, um tio ou um primo enfermeiro que estava de banco em Santa Maria na noite fatídica e que jurava a pés juntos ser tudo mais que verdade.

Anedotas, graçolas, piadolas, risinhos boçais e alarves, houve de tudo um pouco, naquele que foi o primeiro grande escândalo sexual do pós-25 de Abril.

O humorista Vilhena, claro, encheu o prato, o caso até inspiraria um abominável jogo para o ZX Spectrum, o “Paradise Café”, pois, na verdade, a história de Reinaldo/Laura tinha todos os ingredientes do barbarismo: um grupo de jovens raparigas, das primeiras girls band da Europa, quiçá do mundo, com poses e visuais arrojados, roupagens minimalistas, cortadas por José Carlos; um acto sexual exquis para os cardápios eróticos da altura, ainda longe do episódio Taveira; uma branca ou, melhor, uma loira com um negro, eterno clássico da javardice, mescla de racismo e sexismo, numa tradição que passa pela “Manteigui” e pela “Ribeirada”, atribuídas por erro a Bocage, que atravessa doutos autores (Paolo Mantegazza, Fisiologia da Mulher, 1893), nomes consagrados das letras (A. Cabral, Vénus Geradora, 1904; Raul Brandão, Memórias, 1919; Alfredo Gallis, Helena Lourenço ou o Preço da Virgindade, s.d.; Fausto Duarte, Auá. Novela Negra, 1934; Hernâni Anjos, Um Negro no País das Loiras, 1968), filmes de antologia (Mandingo, de 1975, com James Mason) e outros não tão antológicos assim, como os do pitéu pornográfico Backs on Blondes (para quem quiser mesmo saber mais, cf. Serge Bilé, La légende du sexe surdimensionné des noirs, Paris, 2005).

Quando a coisa estoirou, as Doce preparavam-se para ir numa tournée pela América e foi já do Canadá que decidiram passar uma procuração ao jovem advogado Agostinho Pereira de Miranda, amigo de António Avelar de Pinho, co-produtor do Fungagá da Bicharada, ex-Banda do Casaco e autor de muitos sucessos do grupo (v.g., Aliabá, um homem das Arábias ou Bem Bom).

Miranda trabalhava no escritório de Francisco de Sousa Tavares, onde defendera, em 1980, o “piratinha do ar” Rui Rodrigues, que aos 16 anos desviara um avião da TAP na Portela, e, em parceria com Miguel Sousa Tavares, Roberto Martelli, membro das Brigadas Vermelhas.

Foi apresentada queixa na Judiciária contra João Duro e Guilherme Martins, membros do corpo clínico do Santa Maria e alegados autores do boato, e requereu-se uma certidão negativa ao hospital, provando que nenhuma das Doce tinha aí sido atendida no período em causa.

“O caricato de tido isto é que as Doce tiveram de pagar a uma pessoa para fazer pesquisa nos arquivos do Hospital, porque este não disponibilizou sequer um funcionário para a tarefa, alegando falta de pessoal”, recordou Pereira de Miranda ao Diário de Notícias, de 10/8/2021, acrescentando que lhes propôs fazerem uma arrasadora conferência de imprensa na Portela, mal regressassem do Canadá, mas percebeu ser uma ideia impossível “já que estavam completamente arrasadas.”

Além da queixa na Judiciária, foi feita participação na esquadra da PSP de Belém, mas o processo, conduzido por Pereira de Miranda e, depois, por Miguel Sousa Tavares, andou quatro anos em bolandas, à espera de melhor prova, até ser arquivado, sem que Laura, as Doce ou Reinaldo recebessem um cêntimo de indemnização.

Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.

Em 2021, aquando da exibição de um documentário televisivo sobre as Doce, emitido pela RTP (Bem Bom – Realidade e Ficção adaptado do filme homónimo de 2020, realizado por Patrícia Sequeira), soube-se a origem da vil mentira: na noite de 22 de Outubro de 1981, um travesti que usava uma cabeleira loura deu entrada, alquebrado, nas urgências do Santa Maria, dizendo chamar-se Laura Diogo, o seu nome artístico; quando estudava Psicologia (que concluiria na Universidade da Florida), Laura chegaria a conhecê-lo e este pediu-lhe que o perdoasse – tarde demais, estava o mal feito e o caldo para lá de entornado.

Meses antes, em Maio de 1981, já tinha circulado outra histórica, a de que as Doce tinham sido presas após terem feito um espectáculo de striptease numa boate de Peniche, mas seria o “caso Reinaldo” que acabou por pegar, até por uma calamitosa intervenção da Ordem dos Médicos (a qual, segundo Fátima Padinha, chegou a emitir um comunicado a dizer que não tinha sido Laura, mas Padinha a ser assistida, e no Hospital Particular) e por uma não menos calamitosa intervenção do jornal Tal e Qual, que durante semanas faria manchetes com o sucedido naquela noite sangrenta.

Aparentemente, a carreira das Doce não sofreu nem terminou por causa do boato: em 1982, a banda obteve o primeiro lugar no Festival da Canção, com o mítico Bem Bom, e representou Portugal na Eurovisão, aí regressando em 1984, com O Barquinho da Esperança.

O fim das Doce, segundo as próprias, deveu-se muito mais à saída, em 1985, de Lena Coelho, por ter engravidado (foi substituída por Fernanda de Sousa, actual Ágata), e, um ano depois, de Fátima Padinha, na mira de uma carreira a solo, que não correu bem. Anunciariam o fim do grupo num programa de Júlio Isidro, despedindo-se com o duplo álbum Doce 1979-1987.

Laura Diogo tinha então 21 anos e ainda era virgem, jura Padinha. Namorava à época um estudante negro que, por causa do episódio, romperia a relação, e acabaria por fixar-se, anos depois, como psicóloga em São Francisco, na Califórnia, onde ainda hoje reside.

Numa longa e importante entrevista à revista Flash!, de 22/7/2021, a ex-mulher de Pedro Passos Coelho e mãe de duas das suas filhas, que já venceu uma batalha contra um cancro da mama e uma depressão, traça um retrato do Portugal dos anos 1980 que vale mais do que muitos tratados de sociologia, descrevendo um país paroquial e atrasado, com terras desprovidas de luz ou água canalizada, sem acessos nem redes viárias (“primeiro que se chegasse a Bragança, tinha que se sair às sete da tarde do dia anterior para chegar lá às oito da manhã”), com uma imensa distância entre a capital e a província, mas, ao mesmo tempo, com uma distribuição mais uniforme da população pelo território: “em Lisboa, as pessoas vestiam-se de uma maneira e andava-se 100 a 150 quilómetros e as pessoas já eram de outra maneira.

A ruralidade era um factor presente. O país era todo habitado, hoje em dia está todo à beira-mar. O país era vivido e havia uma décalage enorme entre o que era a urbanidade e a ruralidade.”

Fátima, que diz não ter sido vítima de qualquer assédio ao longo da sua carreira musical, recorda ainda um ponto curioso, o desprezo das elites da cultura pelo trabalho da banda: segundo ela, por alturas do lançamento de Bem Bom, Maria Teresa Horta terá dito urbi et orbi que as Doce eram mais pornográficas do que as prostitutas do Cais do Sodré. Desprezível.

E desprezível tanto mais que, como bem notou o investigador Marcos Cardão, “as Doce veicularam novas formas de vida, temáticas e imaginários” e, no Portugal a preto e branco dos anos 80, “encenaram novos modos de vida e operaram pequenas modificações sobre as condutas, contribuindo possivelmente para remover um catálogo interiorizado de interdições que actuava sobre os corpos e as consciências” (“Pois Claro! Música, política e desejo no Festival RTP da Canção, 1975-1982”, Ler História, nº 67, 2015, p. 44).

Uma vez, ouvi na rua um africano em lamento: “é sempre o preto que paga…”, dizia ele, resignado. Aqui sucedeu o mesmo.

De todos os protagonistas, Reinaldo Gomes foi, provavelmente, o que mais sofreu e perdeu: as Doce nunca o conheceram, mas Fátima Padinha afirma, sem rodeios, que “ele é que realmente foi uma pena, porque lhe estragaram a vida.

Sabemos que estava no apogeu da carreira e depois tiveram até que tirar o filho da escola porque era insultado. Tinham um menino de oito ou nove anos que teve de ir para casa dos pais da mulher, em Vila Nova de Famalicão.

A família teve mesmo de se retirar para se afastar disto tudo.” Reinaldo, cuja mulher chegou quase a pedir o divórcio na altura e que acabou por sair do Benfica, indo jogar para o Boavista (e terminando a carreira em regresso ao Sport Clube da Régua, 1987-1988), vive hoje no Luxemburgo. Em 2021, quando a TV7Dias o contactou para falar sobre o caso, ainda se mostrou atemorizado: “Tenho de falar com o meu advogado, Isso para mim é muito complicado.

Quando se bate nesse assunto, fico na mesma, como se fosse o primeiro dia.” Depois, reiterando o óbvio, afirmou que tudo não passou de “um boato maldoso” e de “uma grande mentira”.

Cass Sunstein termina o seu livro sobre os boatos e as fake news escrevendo que “o êxito ou fracasso dos rumores depende em larga medida das convicções prévias das pessoas”.

Nos anos 80, época em que, por ano, se vendiam 3,5 milhões de singles, quatro milhões de álbuns e um milhão de cassetes, um país inteiro acreditou – e, sobretudo, quis acreditar – na história de Laura e Reinaldo porque estava piamente convicto de que, por cantarem semidespidas e terem poses atrevidas, aquelas raparigas eram, teriam de ser, sexualmente promíscuas e moralmente desatinadas.

O aditivo racista acabaria por compor a história, falsa do princípio ao fim, coisa que na altura não importou a ninguém – do que se sabe, à época nenhuma voz se ergueu para defender a honra perdida de Laura Diogo, das Doce e, já agora, de Reinaldo Rodrigues Gomes. Bem Bom? Não parece.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

DN
António Araújo
16 Julho 2023 — 00:29


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302: Agnóstico

 

-Qual a diferença entre ateu e agnóstico? A principal diferença entre o ateísmo e o agnosticismo é que o ateu não acredita em deuses e negam sua existência, enquanto o agnóstico afirma que não há certeza se os deuses existem ou não.

🇵🇹 OPINIÃO

Sou agnóstico, mantenho uma relação de igual cepticismo em relação a todas as religiões e em relação ao ateísmo. Não sendo possível provar que algo não existe não sou ateu.

Não tendo até hoje, apesar do esforço das melhores e das piores mentes da humanidade, provar a existência de qualquer deus por menor que seja, também não sou crente. Sou, pois, agnóstico.

Este agnosticismo não me impede de concordar em muitos pontos com o humanismo cristão / muçulmano / budista em muitos pontos, embora prefira, naturalmente, o humanismo laico e materialista.

Também não me impede de concordar com vários escritos do Papa Francisco, nomeadamente os plasmados na encíclica Laudato Si, nomeadamente quando defende a ideia de que a propriedade privada se deve subordinar ao bem comum e que quando não o faz deve ser posta em causa. Aposto que muitos auto proclamados católicos se opõem a esta encíclica do seu Papa.

O meu agnosticismo traduz-se em termos políticos na defesa da liberdade de culto e na separação das igrejas do Estado. Esta posição costuma designar-se laicismo.

É, portanto, com preocupação que vejo o significativo investimento público que o Estado central e muitas Câmaras municipais estão a fazer nas Jornadas da Juventude Católica, subsidiando abertamente uma Igreja. Claramente discordo.

Os meus impostos não devem ir para eventos desta natureza. Os eventos religiosos devem ser pagos pelos crentes da denominação que os organiza e por quem os frequenta.

Podem ter externalidades positivas? Podem. Atraem pessoas ao nosso país? Sim. Gastam como turistas? Muito provavelmente não. Não é esse, contudo, a questão de fundo.

A questão de fundo é o envolvimento do Estado com uma religião, discriminando as restantes e os não religiosos (ateus, agnósticos e os religiosos não organizados em igrejas).

Se, por acaso improvável, o Vaticano nos desse uma fortuna em troca de proclamarmos o catolicismo religião oficial deveríamos aceitar? Obviamente que não.

Não é por algum ganho (provavelmente diminuto, mas mesmo que fosse elevado) que devemos ceder no que toca aos princípios e valores da nossa sociedade.

Para cumulo os movimentos na área da grande Lisboa, onde vive parte significativa da população portuguesa, são restringidos para os residentes a fim de permitir a livre circulação dos designados peregrinos, isto é a livre circulação dos jovens católicos.

A atribuição de direitos especiais aos católicos é, naturalmente, inadmissível. Até o Papa estaria contra.

Em suma: nada contra as Jornadas da Juventude católica, tudo contra o seu financiamento pelo Estado e contra as restrições de circulação dos residentes em favor da livre circulação dos católicos.

DN
Jorge Fonseca de Almeida
31 Julho 2023 — 11:06


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Deixa isso escrito por e-mail senão ainda te “queimas”

 

🇵🇹 OPINIÃO

Já todos tivemos aquele colega na organização, mais antigo, mais experiente, mais sábio, o verdadeiro sobrevivente, que entre dentes nos dá aquele conselho carregado de matreirice: “Deixa isso escrito por e-mail e mete o chefe dele em cc“.

A verdade é esta: o cinismo torna-se cultura numa organização a partir do momento que um colaborador precisa de documentar informações por escrito para se proteger.

Uma organização que (sobre)vive presa num ambiente cínico é uma organização onde os colaboradores vêem os seus pares como sendo desonestos, gananciosos e invejosos.

Quando um colaborador começa a desconfiar das pessoas à sua volta, e a acreditar que os seus colegas têm segundas intenções por trás daquilo que dizem e/ou fazem, a interacções sociais dentro de uma organização mudam.

O ambiente cínico começa a crescer quando alguns colaboradores desenvolvem uma percepção exagerada dos defeitos dos outros, julgando os colegas como sendo mais cínicos do que eles realmente são.

O colaborador começa a adoptar comportamentos defensivos visando a sua própria sobrevivência, preferindo enganar antes de ser enganado.

Para não ser a vítima, o colaborador antecipa-se e torna-se no perpetrador. Isto faz com que o seu colega responda da mesma forma ou pior, ou seja, o facto de se agir tendo por base uma percepção cínica do outro, aumenta a probabilidade de o outro se comportar de forma cínica, mesmo que não o fosse.

Este ciclo vicioso de natureza defensiva está na base da geração de uma cultura de cinismo organizacional.

Para um colaborador, experienciar o cinismo organizacional é como consumir todos os dias um veneno psicológico que o corrói por dentro. A ciência demonstra que ele tem, tendencialmente, mais stress e depressões, mais doenças cardiovasculares e é propenso a morrer mais cedo.

Para a organização, a produtividade é menor por consequência dos seus colaboradores não confiarem uns nos outros. A moral da equipa reduz-se e os colaboradores acabam por (querer) abandonar a organização.

Os colaboradores têm um papel fundamental na prevenção de uma cultura de cinismo.

Eles devem ser cépticos da sua percepção de cinismo dos outros, devendo questionar-se sobre a evidência que realmente possuem de que o seu colega está a actuar com base no seu interesse exclusivo e que tem a intenção de o “entalar” pelo caminho. Concomitantemente, os colaboradores devem dar uma hipótese aos colegas de estes demonstrarem do que são capazes.

De acordo com Ernest Hemingway, “a melhor forma de descobrirmos se podemos confiar em alguém, é confiarmos em alguém”. Muitas vezes, um salto de fé de um colega desencadeia uma reacção positiva e inesperada no outro, fazendo com que ele se sinta honrado e motivado para fazer de tudo para cumprir a expectativa.

O líder também tem um papel fundamental na prevenção de um ambiente organizacional cínico, devendo assumir-se como o motor da geração unilateral de confiança.

Durante a pandemia, por exemplo, e perante a inevitabilidade do teletrabalho, maus líderes começaram a pressionar os seus colaboradores, porque não os viam nas suas secretárias e sentiam estar a perder o controlo. Este comportamento só prejudicou o compromisso dos colaboradores e o rendimento das equipas.

É inegável que as nossas organizações têm sérios problemas. Mas não é uma atitude cínica de descrença no outro que irá melhorar o ambiente de trabalho. A verdade é que cada um pode mudar a sua equipa, se se mudar a si próprio primeiro.

Doutor em Ciências do Desporto

DN
Luís Vilar
31 Julho 2023 — 00:50


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300: O mais injusto dos impostos é a inflação

 

“… Só as famílias mais vulneráveis devem ser ajudadas, na mesma medida em que se ajudam as famílias que arrendam a habitação onde vivem.

O que raramente acontece…

🇵🇹 OPINIÃO

O espaço público está enxameado de heróis cuja missão é combater a política de juros de Christine Lagarde e dos seus governadores, defender a oprimida classe de proprietários e zelar pelo bem-estar da classe média.

Estiveram em silêncio quando se exigia rapidez na resposta do Banco Central Europeu (BCE), para não permitir que a inflação atingisse os níveis que atingiu, e foram rápidos a pedir que o BCE andasse mais devagar quando, finalmente, a instituição se decidiu a cumprir a missão para que foi criada.

Sendo que a maioria destes heróis são políticos no activo, significa que já esqueceram que a razão pela qual o BCE foi construído com total independência foi para livrar os cidadãos da acção populista dos que, periodicamente, comprometem o futuro imediato dos seus eleitores em troca da sua própria eleição.

O mais injusto dos impostos é a inflação e a única forma de a combater é encarecendo o dinheiro, ou seja, aumentar os juros.

Os Governos não devem ir por portas travessas fazer exactamente o que faziam quando os bancos centrais não eram dotados de autonomia.

É sempre possível argumentar que a subida dos juros empobrece a classe média que comprou casa com um empréstimo bancário, mas a verdade obriga a que se acrescente que isso só acontece com os proprietários que arriscaram fazer o seu plano de pagamentos indexado à Euribor. Ninguém pode querer sol na eira e chuva no nabal.

Foi bom enquanto vingou a política de juros baixos, é suposto isso ter gerado poupança para enfrentar estes tempos de juros mais altos. A alternativa é deixar a inflação alta permanecer muito tempo, sobrecarregando as classes mais baixas, sem capacidade de comprar casa e sem rendimentos para gerar poupança.

É por isso que querer o Estado a suportar parte significativa do agravamento dos custos das dívidas de particulares, através de financiamento directo aos proprietários, exige equidade.

Só as famílias mais vulneráveis devem ser ajudadas, na mesma medida em que se ajudam as famílias que arrendam a habitação onde vivem.

É igualmente verdade que os bancos podem fazer bastante mais do que têm feito para ajudar os seus clientes. Bancos que ficam de mão estendida quando a vida lhes corre mal, não podem viver como a cigarra enquanto os seus clientes fazem trabalho de formiga.

Bancos que aumentam os lucros agregados quase 60% e que dobraram a margem financeira (diferença entre o que pagam e o que cobram de juros) têm de ser chamados a participar no esforço do combate à inflação, não podem passar pela tormenta beneficiando dela.

Finalmente, Lagarde também tem razão quando alerta que os Governos não devem remar em sentido contrário ao do BCE, porque é contraproducente e prolonga a política dos juros altos como única forma de fazer baixar a inflação.

E não, isso não implica terminar com a ajuda aos que precisam dela para sobreviver. Quando muito, significa que os Governos não devem ir por portas travessas fazer exactamente o que faziam quando os bancos centrais não eram dotados de autonomia.

Jornalista

DN
Paulo Baldaia
31 Julho 2023 — 00:45


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299: Alverca quer ser +1 e promete arrasar CTI

 

🇵🇹 OPINIÃO

Acabou a era do aquecimento global e começou a era da ebulição global”. A frase de António Guterres, a partir das Nações Unidas, terá o caminho do costume: cinco segundos de espanto, uma eternidade de esquecimento.

Porque nada do que sucede a seguir reflecte uma mudança de atitude, uma consciência colectiva do problema. O nosso caso com o novo aeroporto é exactamente assim.

Lisboa aguenta quantos mais turistas e hotéis? Que nível de impacto pretendemos no território com uma obra colossal? Continuamos a ficar nas mãos da Vinci por umas décadas extra se fizerem um aeroporto na Margem Sul?

Não há dúvida de que melhorar a Portela e a qualidade de vida em Lisboa é muito importante. O problema é fazer-se isto à custa do aquífero de Alcochete, a maior reserva de água do país e da Península Ibérica. (Guterres? Zero.)

Ou ignorar que se vai ocupar um campo de tiro com 7.500 hectares, com destruição do ecossistema do montado, a que se junta a necessidade de encontrar outros 7.500 hectares para instalar um novo campo de tiro para o Exército. E, em paralelo com isto, rega-se o delírio com oito mil milhões em aeroporto + acessos, postergando a sua entrada em funcionamento por 10 a 15 anos.

Santarém (garantindo uma maior descentralização e eventual menor impacto ambiental) ou Alverca (uma espécie de gémeo da Portela), não são opções que mereciam estudo aprofundado?

Ou não… Como a obra demora muito, afinal também se destrói uma das maiores reservas ornitológicas da Europa porque precisamos de fazer a correr o Montijo, para depois o fechar.

Risco de colisão com as aves? A questão central, como dizia um responsável da Vinci, há uns meses, numa conversa, sintetiza-se neste ponto: “As aves não são estúpidas e fogem dali”. Sempre o paradigma que move esta absoluta prepotência humana: destruímos os ecossistemas porque sim. Guterres? Zero.

Não por acaso, o Governo isentou esta semana a Comissão Técnica Independente de encomendar os estudos de impacto ambientais básicos para distinguir as propostas. Ou seja, primeiro escolhe-se, depois martela-se o relatório ambiental até lá caber o que se quer.

Questão habitual: há alternativas? Dará pano para mangas a contestação jurídica que o grupo promotor de Alverca (José Furtado, Carmona Rodrigues, Luís Janeiro, Fernando Nunes da Silva, etc.) vai lançar sobre a Comissão Técnica Independente.

Nas mil páginas da sua proposta, Alverca tenta demonstrar que já existe ali uma infra-estrutura-base aeroportuária, é abissalmente mais barata que Alcochete e já tem acessos ferroviários à Linha do Norte – além de permitir a conexão à alta-velocidade Lisboa-Madrid através de uma ponte ferroviária mais barata entre Alverca e Barreiro.

O estudo de Alverca propõe ainda a ligação à Portela via shuttle em 14 minutos e a construção de pistas com orientação compatível com o actual aeroporto.

Questão importante: a construção de três ou mais pistas sobre o mouchão do Tejo é aceitável ou não? Seriam necessários estudos de impacto ambiental para o demonstrar.

Os promotores dizem também que as pistas ficariam dois metros acima do nível do Terreiro do Paço – ou seja, com risco controlado face à previsível subida do nível das águas.

Santarém (garantindo uma maior descentralização e eventual menor impacto ambiental) ou Alverca (uma espécie de gémeo da Portela), não são opções que mereciam estudo aprofundado?

Se Portugal não fosse gerido num dossier como este ao sabor do vento (da política), teria especialistas nacionais, a par de consultores internacionais (daqueles que constroem aeroportos) para avaliar as hipóteses. Mas optamos pelo mais difícil: uma ideia de 2008, incompatível com o caos ambiental que esta semana uma vez mais se anunciou. Guterres? Zero.

Jornalista

DN
Daniel Deusdado
30 Julho 2023 — 00:35


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298: Por trás das negociações de normalização entre a Arábia Saudita e Israel

 

🇷🇸 OPINIÃO

A recente reunião entre altas personalidades da Arábia Saudita e dos EUA é decididamente uma das tentativas mais sérias para se dar um novo passo em direcção à normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel.

Os americanos estão a tentar mediar há algum tempo para chegar a um acordo com Riade sobre várias questões e alguns detalhes foram agora publicados no New York Times, novamente por Thomas Friedman.

Claro que nem tudo o que se pode ler no jornal pode ser totalmente confirmado por nenhuma autoridade oficial, mas é muito provável que a maior parte possa ser verdade.

Os representantes sauditas, especialmente o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman, estão decididamente a tentar inserir na discussão com os EUA questões muito mais amplas, não apenas a relação com o Estado judaico.

Portanto, há dois conjuntos de questões, que potencialmente foram discutidas durante a última reunião: o que os EUA farão pela Arábia Saudita e o que Israel fará pelos palestinianos. Do lado saudita, há apenas uma questão: acordo de normalização com Israel.

De acordo com isso, os EUA apoiariam o projecto nuclear civil saudita e forneceriam ao país alguns equipamentos de Defesa muito sofisticados.

Além disso, Washington teria de dar aos sauditas as mesmas garantias de segurança que existem entre os membros da NATO, o que significa que qualquer ataque à Arábia Saudita seria um ataque aos EUA.

É óbvio que os EUA, através da Arábia Saudita, estão a enviar uma mensagem muito importante a Netanyahu sobre o que ele teria de fazer e o que obteria se o fizesse.

Pelo seu lado, Israel pararia de construir novos colonatos na Cisjordânia, não ampliaria os já existentes e não legalizaria os colonatos ilegais já existentes.

Além disso, Israel cederia parte do território da Cisjordânia, pertencente à Área C (controlo total de Israel) à Autoridade Palestiniana.

Claro que sem nenhuma anexação de qualquer parte da Cisjordânia. Por último, Israel deveria aceitar a solução dos dois Estados com os palestinianos como a única pré-condição para a paz na região.

A Arábia Saudita doaria uma ajuda financeira substancial aos palestinianos na Cisjordânia e, como foi mencionado, assinaria o acordo de normalização com Israel.

Na prática, algumas das condições podem ser implementadas teoricamente. Por exemplo, o programa nuclear na Arábia Saudita começará de qualquer maneira e os EUA não o impedirão, mas podem facilitá-lo. A venda de alguns equipamentos militares sofisticados a Riade também pode ser acertada.

O nível de garantias de segurança seria decididamente um problema sério, tendo em vista a relutância de Washington em se comprometer militarmente, neste momento, em qualquer lugar do mundo. No entanto, pode sempre haver um compromisso e a solução é relativamente alcançável.

O principal obstáculo está, obviamente, nas condições que Israel teria de implementar. É sabido que o Governo do presidente Biden dos Estados Unidos não concorda com a política do actual Governo israelita.

Os pedidos feitos pelo presidente Biden sobre a “reforma judicial” foram essencialmente ignorados pelo primeiro-ministro Netanyahu, incapaz de encontrar outro caminho com os seus parceiros de coligação ultranacionalistas.

Portanto, é óbvio que os EUA, através da Arábia Saudita, estão a enviar uma mensagem muito importante a Netanyahu sobre o que ele teria de fazer e o que obteria se o fizesse.

A explicação é simples: a condição de normalização das relações com a Arábia Saudita seria, para ele, uma grande vitória, mas a única forma de a obter é formar um novo governo com os partidos centristas da Oposição em Israel.

O actual Governo em Jerusalém nunca concordaria em parar de construir colonatos na Cisjordânia, porque esta é a questão ideológica central da sua política. Sem ela, eles não existiriam.

A questão principal permanece: Netanyahu pode fazer isso ou está disposto a fazê-lo? Temos de ser muito cépticos em relação à sua concordância, pelo menos por agora.

A única opção realista é: se as manifestações em Israel continuarem, as greves gerais começarem a paralisar o país e a situação económica se deteriorar, o primeiro-ministro israelita poderá começar a contemplar mais opções do que está a contemplar agora.

O facto mais importante seria que Benjamin Netanyahu permaneceria no poder, independentemente de quem fossem os seus parceiros no Governo, e esse poderá ser o factor decisivo.

Investigador do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal

DN
Mirko Stefanovic
30 Julho 2023 — 00:40


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A “primavera criola” é plural

 

🇧🇷 OPINIÃO

Era final de tarde, mas o dia não acabaria tão logo. A brisa de Lisboa pede uma mantinha nos ombros mesmo no verão, algo que aprendi quando estive por cá no ano anterior.

Algumas terras, mais que outras, exigem que se use uma certa cobertura, uma proteção. Aprender detalhes sobre um lugar nos faz sentir menos estrangeiros, seja lá onde estivermos, inclusive num jardim.

Era a segunda edição do Lisboa Criola, sob a curadoria de Dino d”Santiago, no Jardim de Verão da Fundação Calouste Gulbenkian. Muitas coisas acontecem num jardim, de pecados à salvação, Adão, Eva e Priapo que o digam.

Talvez o disruptivo desta “primavera criola”, de três finais de semana entre junho e julho, foi o fato de não ser preciso aprender algo antecipadamente e nenhuma cobertura ou explicação serem exigidas, bastava ocupar os espaços, inclusive se podia usar os banheiros do edifício-sede da fundação, com sua emblemática arquitetura modernista portuguesa.

As portas, se fechadas estivessem, seriam abertas sem perguntas. Sempre me surpreende uma porta cedendo gentilmente ao movimento de uma vontade. A citação ao banheiro pode parecer descabida se comparada à grandeza da festa, mas é bem proposital.

Os detalhes sempre são reveladores e, cá entre nós, uma coisa é convidar as pessoas a estarem no nosso jardim, outra é deixá-las usar nosso banheiro.

Os jardins estavam lotados, nada de música costumeiramente chamada de erudita, mas ainda assim de precisa erudição. Imperava ali outra ordem. E como boa música se saboreia devagar era possível perceber, se atento estivesse, a delicadeza das misturas, os riscos assumidos nas escolhas e nas composições dos acordes, o conjunto da obra no macro e no detalhe do dia. Nada ali estava por acaso e a cena toda construía o sentido prático da tal “primavera criola”.

Lisboa Criola, festival de música nos jardins da Fundação Gulbenkian.
© D.R.

Cruzamentos e partilhas, trânsitos e movimentos, “um jardim de sotaques carregados, onde ninguém se sentirá estrangeiro”, disse Dino d”Santiago.

Muitas primaveras na história marcam revoluções e mudanças. Hoje parece que elas caminham por outros trajetos, mais sinuosos que retos, mais poéticos que analíticos, elas parecem andar por jardins e a usarem os banheiros.

Foram mais de 30 concertos e DJ sets com os ritmos, as cores e as sonoridades do Kuduro e do Afro House, do Afrobeat e do Hip-Hop, do Fado e da Música Tradicional cabo-verdiana e guineense, passando pelo R&B, o Rap, a Pop, a Soul, o Jazz e a Música Popular brasileira.

Admito que poucos artistas me eram familiares, desconhecia até alguns dos meus conterrâneos, Bia Ferreira, Vinicius Terra, Jonathan Ferr… e isso me dava, mais que os sotaques e ritmos variados, a sensação de estrangeira, que, confesso, durou o tempo da música ser ouvida pelo meu corpo todo. Porque se desconhecia nomes, algo dos ritmos eram presentes na minha própria história.

Se os jardins irregulares da Fundação Gulbenkian foram feitos para danças não sei, mas as pessoas dançaram. Nem tudo feito com um destino impede que outros tantos aconteçam. E nem sempre a melhor ocupação se dá nos lugares reservados para ela.

Se para alguns a diversidade e a diferença de si expõe as próprias fraquezas e fragilidades (às vezes somos estrangeiros na nossa própria pele) a outros encanta. Muitas eram as cores e formas.

Me chamava a atenção uma mulher de cabelos raspados, brincos imensos, blusa de algodão, bermuda jeans, maquiagem colorida, dançava inspirando o par ao lado, um homem de calça cáqui meio alfaiataria e camisa polo. Não combinavam em nada aparentemente. Ela dançava, ele parecia tentar (poucas coisas me são mais belas que as tentativas).

Se vistos na rua poderíamos dizer pertencerem a mundos inconciliáveis, mas dançavam juntos, riam juntos. Inventaria para mim uma história toda de amor entre eles, dessas que acontecem num descuido da vida, esses que criam encontros capazes de dar espaço para o novo acontecer.

Ao lado deles uma mãe amamentava o filho sem perder o embalo da música e um pai segurava a mochila (toda a família com filhos pequenos tem uma mochila).

Uma senhora mais velha dançava sentada enquanto a jovem ao lado lhe segurava a mão. Um casal de homens dançava abraçados lentamente. Vi pessoas de todas as ideias e idades, marcas, texturas e tecidos. Foram cerca de 12 mil pessoas ouvindo mais de 40 artistas.

Tom Farias ao escrever sobre esse evento disse que os jardins foram invadidos. Eu contestei o verbo, mas depois fui olhá-lo com mais vagar.

Havia sim uma invasão. Invadir é ter poder ou domínio sobre algo, um ato sempre avassalador. Mas se bom ou mau serão os detalhes e a forma de ocupar que falarão das moralidades e, acreditem, elas não estão nos beijos, nas roupas ou nas danças dos corpos.

O imoral vive no interdito e nos silêncios impostos (mas, de novo, era possível usar os banheiros e os sotaques eram carregados e vários). A invasão era a do domínio de uma arte e do gesto generoso de compartilhar.

A invasão de diferentes formas de dizer, o poder da voz. Quantos silêncios, quantas mordaças atravessam nossas histórias, quanta cantiga de ninar, quanto sussurro ritmado, e desenho de trança garantiu que melodias e lendas e caminhos sobrevivessem aos tempos, aos mares, ao açoite e ao esquecimento.

A “primavera criola” é uma redefinição e uma torção, o grito de liberdade que ecoa no tempo é música, de fazer todas as gentes a dançarem juntas.

Segundo o dicionário, “criolo” é palavra portuguesa do tempo das colónias, o nome dado ao descendente de europeu nascido em outra terra. Nesse sentido eu sou “criola” também, e sou neta de indígena, sou nativa brasileira, e sou italiana e sou bugra, mas nada disso me define por completo. Essa busca identitária, importante, sem dúvida, é somente parte do acento, um dos muitos passos da dança.

O problema é o delírio da completude. Somos parte. E o passado é só uma herança, não deveria ser sentença. Mas no Brasil (e não só) a pobreza e a cor da pele às vezes o são; e o “criolo”, forma de chamar os descendentes de pessoas negras escravizadas, pode ser sentença de morte e destino.

Mas o “criolo” também é voz, é o dialeto de Cabo Verde, o “criolo” do Golfo da Guiné (em S. Tomé, Príncipe e Ano Bom) e também os da Alta Guiné (em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Casamansa), o “crioulo” Indo-português que compreendem as línguas faladas na Índia (e também no Sri Lanka).

E existem as línguas crioulas de plantação (como o crioulo francês do Haiti, o papiamentu, o crioulo inglês da Jamaica e os crioulos portugueses) e línguas crioulas de fortaleza (como o crioulo sino-português de Macau, o crioulo indo-português de Goa e de Damão e o crioulo de Timor Leste, entre outros extintos).

Há muitos “criolos” e crioulos, muitas heranças e formas de lidar com elas, aí ao ver a biografia de vários dos artistas que ocuparam os palcos dos jardins ficava evidente quantos deles subverteram suas próprias histórias, heranças e reinventaram suas identidades.

Percebes a riqueza da “primavera criola”? Essa que só acontece quando Coré, agora Perséfone, vem do Hades visitar a Terra? A primavera que só existe quando a diversidade acontece.

E um jardim desses, um jardim “criolo”, às vésperas dos 50 anos da Revolução dos Cravos, das independências de Guiné, Angola, Moçambique, Cabo Verde, às véspera da Bienal de Veneza de 2024 – com o tema “estrangeiros em todos os lugares” – é ter a certeza de que um Mundu Nôbu (mundo novo) pode acontecer, mas precisará da arte e de boas curadorias.

Psicanalista e escritora, doutora em Ciências Humanas

DN
Samantha Buglione
30 Julho 2023 — 00:45


Ex-Combatente da Guerra do Ultramar, Web-designer,
Investigator, Astronomer and Digital Content Creator



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296: Pedro Sánchez, o resistente

 

🇵🇹 OPINIÃO

O resultado das eleições em Espanha é complexo para se conhecer o próximo presidente do governo espanhol. Diria que é quase impossível de resolver – é um facto, há a possibilidade de bloqueio.

Tem que ser definidas as alianças e as coisas não estão fáceis.

A primeira conclusão é que as sondagens foram um fiasco, o PP e o Vox não tiveram uma maioria absoluta e por este andar ficarão na oposição. O Vox perdeu influência e isso não ajudou o PP.

O PSOE aguenta-se e resiste. No fundo o PP avança, mas o PSOE aguenta-se e pode ser governo.

Estas eleições convocadas para o dia 23 de Julho, por Pedro Sánchez ao sentir-se acossado pelo mau resultado das eleições municipais e regionais não foram clarificadoras e deixaram tudo num impasse.

Neste momento, há duas maiorias possíveis, dependendo do que cada uma das partes fizer ou disser.

Alberto Núñez Feijóo sofreu uma grande decepção porque sabe que, apesar de ter vencido pelo mínimo em votos e de ter mais 14 deputados do que o PSOE, é perfeitamente possível que não consiga governar. No fundo é uma vitória insuficiente.

A campanha de Feijóo, os pactos do PP com o Vox e uma última semana de vertigem, em que faltou a um debate, mobilizou o voto à esquerda muito mais do que estava previsto.

Pedro Sánchez pode escrever um “Manual de Resistência”.

O cenário político espanhol está completamente aberto e o novo presidente do governo no ar.

A Espanha votou um empate entre dois blocos, mas os números mostram que um dos dois, o da actual maioria, tem um assento a mais. E isso pode ser decisivo para governar o país. Caso contrário, haverá uma nova eleição.

Pedro Sánchez tem sete vidas e tudo leva a crer chefiará o próximo governo espanhol com mais ou menos negociações, sejam independentistas ou não. A esquerda nestas coisas é mais solidária e abdica de algumas questões. Num acordo tem que haver sempre cedências.

A democracia tem coisas do arco da velha, a chave decisiva para haver um governo depende de Junts, partido independentista de Carles Puigdemont fugido à justiça espanhola.

Quem está no poder, sempre que há eleições está em vantagem. Reparem que apesar da troika e todos os sacrifícios dos portugueses, o PSD, em 2015, venceu as eleições em Portugal, só foi apeado do governo pela notável habilidade de António Costa, em se aliar ao BE e PCP.

Em Espanha, Pedro Sánchez perdeu as eleições, mas pode muito bem suceder a si próprio, com um amplo acordo à esquerda.

Em democracia para governar não chega vencer, tem que se ter uma maioria absoluta ou uma maioria simples.

Aqui em Portugal, o PSD queria aproveitar a embalagem da vitória do PP, mas ficou-se pela intenção. O PSD para ser poder em Portugal tem que ser muito melhor.

Biólogo, fundador do Clube dos Pensadores

DN
Joaquim Jorge
29 Julho 2023 — 12:46


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295: Visões da Europa no Estado Novo

 

🇵🇹 OPINIÃO

A atitude de profunda desconfiança em relação a uma possível integração europeia foi dominante desde o início do regime iniciado em 28 de maio de 1926 (1).

Contudo, falar de um isolacionismo do Estado Novo, como se fosse uma constante imutável, é uma lenda não confirmada pela investigação mais atenta.

A dinâmica tensional de atracção e repulsa em relação a uma aproximação à Europa contou com firmes defensores, em ambos os pólos da tensão, no interior do regime que teve em Salazar e Caetano os seus líderes.

Apesar da manifesta desconfiança de Salazar para com os diversos momentos e facetas da integração europeia do pós-guerra, desconfiança fundada, aliás, em divergências doutrinárias sobre o papel histórico que o Estado-nação ainda teria a desempenhar no palco do porvir histórico, há traços muito nítidos de pragmatismo. Portugal apostou na EFTA, Associação Europeia de Livre Comércio, de que foi membro-fundador em 1960.

Em 1961, Portugal adere também ao GATT – Acordo-Geral sobre Pautas Aduaneiras. O Governo de Lisboa, apenas dois anos depois tentou negociar um acordo de associação com a CEE, sendo esta intenção apenas travada pela oposição do Presidente francês, Charles de Gaulle.

Em Dezembro de 1971, já no consulado de Marcello Caetano, Lisboa enceta negociações frutíferas com as Comunidades, que culminam em 22 de julho de 1972 com um duplo resultado: o Acordo de Comércio Livre Portugal-CEE, e o Acordo Portugal-CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), sobre produtos siderúrgicos (2).

Depois de 1945, Portugal procura seguir uma via dupla: manter a integridade do seu império, sem perder todas as oportunidades de crescimento ligadas à abertura da sua frágil e pouco competitiva economia a mercados mais vastos, sobretudo na Europa. Nesse sentido, os resultados foram bastante surpreendentes.

Tendo como referência a medida do PIB de 15 países desenvolvidos, onde se incluem os EUA, a Austrália, e a Nova Zelândia, o rendimento per capita nacional estava na altura do desencadear da II Guerra Média nos 30% da média do agregado dos referidos países. Em 1973 esse valor já tinha subido para 50%.

O período de mais intenso crescimento desde 1945 até à data presente, ocorreu entre 1960 e 1973, com uma taxa média anual de crescimento real do PIB de 6,5%, sendo que, devido à forte emigração que reduziu em 230 000 o número de residentes, o PIB per capita real subiu mesmo mais (6,7%) (3).

Compreende-se, por isso, o optimismo reinante no período inicial da “Primavera Marcelista”. O quebra-cabeças da reforma democrática e da guerra em três frentes ultramarinas estava por resolver, mas o motor de um crescimento persistente dava alimento aos sonhos de convergência com essa Europa de alta civilização material.

No dia 2 de Fevereiro de 1972, José Correia da Cunha, engenheiro e geógrafo, um dos membros da Ala Liberal, e primeiro rosto da política de ambiente nacional, tomava a palavra para falar das “Necessidades e Perspectivas de Desenvolvimento da Económico no Contexto Europeu”.

Depois de passar em revista o estado da economia nacional, quase a concluir a sua intervenção, o deputado afirmava: “(…) No período de 1963 a 1969 a taxa de crescimento per capita do produto nacional bruto foi, no nosso caso (6,3 %), bastante superior à da Holanda (3,8%) ou à da Áustria (3,7%).

Verifica-se, não obstante, que se estes ritmos se mantiverem, só atingiremos o actual nível da Holanda daqui a 19 anos, e que se o seu crescimento se mantiver ao ritmo actual só alcançaremos este país daqui a 53 anos. Em relação à Áustria, este raciocínio conduz-nos a prazos de 14 e 40 anos, respectivamente” (4).

Infelizmente, 50 anos depois, a distância de rendimentos entre a Áustria e Portugal, que continua abissal, parece ser o menor dos problemas na nossa integração europeia, onde depositámos não só um elevado capital de soberania como a esperança de um futuro pacífico.

Referências:
1 – Veja-se, por exemplo, como o “Plano Briand” (1929-30) para uma União Federal na Europa foi recebido friamente, devido à nossa lógica imperial: José Medeiros Ferreira, Não há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)Dita da Integração Europeia, Lisboa, Edições 70, 2014, pp. 55-61.

2 – Acílio Estanqueiro Rocha, Portugal, da Ditadura à Integração: 20 Anos na União Europeia, España Y Portugal Veinte Años de Integración Europea, Rafael García Pérez y Luís Lobo Fernandes (coordenadores), Santiago de Compostela, Tórculo Edicións, 2007, p. 11.

3 – Luciano Amaral, Economia Portuguesa. As Últimas Décadas, pp. 98-9; Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, Portugal: Os Números, Lisboa, FFMS, 2010, pp. 72-5.

4 – José Correia da Cunha, Necessidades e Perspectivas do Desenvolvimento Económico de Portugal no Contexto Europeu, Intervenção efectuada antes da Ordem do Dia da sessão n.º 156 de 2 de Fevereiro de 1972, Assembleia Nacional, X Legislatura (documento dactilografado de 11 pp), p. 11.

Professor universitário

DN
Viriato Soromenho-Marques
29 Julho 2023 — 00:21


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294: Rendas altíssimas tiram atractividade a Portugal

 

– “… Este impulso para puxar pelos preços das rendas para além do que é razoável, está assim a afastar muitas pessoas de Portugal e a criar problemas de natureza social, principalmente nas cidades com maior procura, como é o caso de Lisboa ou o Porto, e está a originar críticas severas interna e externamente pela desproporção dos preços relativamente a espaços de habitação que não valeriam nem metade do que é pedido.

Infelizmente é a dura realidade do arrendamento que já não vem de agora mas de há duas décadas atrás.

🇵🇹 OPINIÃO

De 2022 para 2023, Portugal desceu de quarto lugar para décimo na atractividade de estrangeiros para se instalarem no país, segundo a pesquisa de um dos sites de referência nesta matéria, o Expat Insider 2023.

Uma das principais razões para esta perda de atractividade é o preço da habitação, que disparou de uma maneira insana, fazendo até com que os estrangeiros mais abastados desistam.

Além disso, nos sites internacionais da especialidade, é também o problema principal referido, o que é bem o retrato da difícil situação do arrendamento devido aos preços incomportáveis, que tem como uma das consequências empurrar os portugueses e outros cidadãos para as periferias.

Pode dizer-se que é a lei da oferta e da procura que está a funcionar, proporcionando ganhos muito, mesmo muito, confortáveis a agências imobiliárias e a proprietários individuais.

Mas é também este conjunto de circunstâncias, que alimenta a espiral especulativa, que cria dificuldades no acesso à habitação a pessoas com menos posses e ainda mais para os migrantes económicos, que muitas vezes são vítimas de exploração e obrigados a amontoar-se em casas sem condições.

Este impulso para puxar pelos preços das rendas para além do que é razoável, está assim a afastar muitas pessoas de Portugal e a criar problemas de natureza social, principalmente nas cidades com maior procura, como é o caso de Lisboa ou o Porto, e está a originar críticas severas interna e externamente pela desproporção dos preços relativamente a espaços de habitação que não valeriam nem metade do que é pedido.

Estamos a falar, por exemplo, de T0 com menos de 20m2 a mais de 3.300 euros de renda mensal, um absurdo que, só por si, dá uma imagem geral muito negativa de Portugal como destino para estadias mais prolongadas.

Se não houver razoabilidade e bom senso, de nada nos servirá sermos um país atractivo, calmo e pacífico, com uma boa qualidade de vida e com um povo aberto e acolhedor.

Uma forma de acabar com esta espiral especulativa, que é um dos objectivos do programa Mais Habitação, é colocar mais casas no mercado e impor um tecto ao aumento das rendas, por mais que isso desagrade aos proprietários.

O problema é que numa situação de forte escassez no mercado de arrendamento e depois do boom do Alojamento Local, aquelas medidas demoram sempre algum tempo a produzir efeitos.

Portanto, quando muitas vezes se atribui aos estrangeiros a responsabilidade pelo descontrolo dos preços, que representam uma percentagem muito diminuta no total das compras e dos arrendamentos, devia-se era olhar sobretudo para o comportamento das agências imobiliárias e dos proprietários e pensar bem nas situações que se estão a criar.

Muito particularmente, responsabilizar os estrangeiros pelas dificuldades do mercado, representa não apenas um ato gratuito de hostilidade, como ajuda a criar o ambiente para que eles se sintam menos bem acolhidos e até para que possam surgir actos de xenofobia, o que não é inédito.

E assim se começa a destruir a imagem de tudo o que de bom os estrangeiros procuram no nosso país e assim se mata a galinha dos ovos de ouro que tanta gente faz viver.

É bom que gostem de nós e que nos procurem. É importante para a auto-estima e para o desenvolvimento económico.

Os estrangeiros valorizam muito a qualidade de vida, a hospitalidade e simpatia dos portugueses, a história e a cultura, a beleza do país, o mar e os rios e a gastronomia saborosa e variada, pelo que seria importante que não infligíssemos danos colaterais a todas estas características que fazem de Portugal um país magnífico.

Por outro lado, é preciso ainda ter bem presente que Portugal não é o centro do mundo. O mundo é muito grande e tem muitos lugares encantadores com gente fantástica também há procura de estrangeiros para se instalarem no país. A concorrência é grande.

O México tem sido nos últimos anos um dos países mais procurados e, logo a seguir, vem a Espanha, que ocupa o primeiro lugar na categoria “qualidade de vida”.

Portanto, se não houver razoabilidade e bom senso, de nada nos servirá sermos um país atractivo, calmo e pacífico, com uma boa qualidade de vida e com um povo aberto e acolhedor. É melhor, por isso, estarmos atentos ao que fazemos com os nossos recursos e com o que se vai passando pelo mundo.

Deputado do PS

DN
Paulo Pisco
29 Julho 2023 — 00:21


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