133: Não basta não fumar ❤️

 

🇵🇹 OPINIÃO

No Dia Mundial Sem Tabaco, é importante lembrar que fumar é a principal causa do cancro do pulmão, mas que os não fumadores também têm de estar atentos à ameaça. A prevenção é fundamental.

Hoje é o Dia Mundial Sem Tabaco e esta palavra “tabaco” traz-nos imediatamente à mente uma ameaça, o cancro do pulmão.

Especialmente para quem, como eu, faz da vida profissional um apostolado em volta do diagnóstico e do tratamento deste tumor, que ainda rouba todos os anos a vida de tantas pessoas das mais diversas idades.

Sim, o cancro do pulmão continua a ser a principal causa de morte por cancro em todo o mundo, de acordo com as últimas referências de 2020 – e o tabaco é o seu principal responsável.

Porém, neste dia sem tabaco, pensando também nos que não fumam, não podemos nem queremos deixar de alertar a população não fumadora de que não podem ficar indiferentes perante o perigo do cancro do pulmão.

Atenção, não há dúvidas de que a principal causa é o tabaco, mas o cancro do pulmão também surge num grupo muito importante de pessoas que nunca fumaram ou em pequenos fumadores – e existem certamente outras razões para isto acontecer.

Não há dúvida de que o rastreio é a estratégia mais eficiente para o controlo do cancro para além da prevenção.

O cancro de pulmão é o segundo mais comum e o mais mortal em todo o mundo. Vários ensaios clínicos foram realizados desde a década de 70 para determinar a utilidade das radiografias de tórax, com ou sem citologia de expectoração como uma ferramenta para o diagnóstico do cancro de pulmão.

Infelizmente, todos os ensaios clínicos falharam, mostrando que estes meios eram inúteis. Graças ao desenvolvimento da tomografia computorizada de baixa dose de radiação na década de 90, dois grandes ensaios clínicos randomizados – National Lung Screening Trial [NLST] e Nederlands-Leuvens Longkanker Screenings Onderzoek [NELSON] – foram iniciados no início dos anos 2000.

Foi então finalmente comprovado que a tomografia computorizada de baixa dose pode reduzir substancialmente a mortalidade por cancro do pulmão em até 20%, principalmente porque o rastreio aumentou os diagnósticos da doença em estádios precoces de 24% para cerca de 60%.

Os dados da vida real confirmam estas evidências, não existindo dúvidas que o grande paradigma da melhoria da sobrevida se deve à detecção precoce dos doentes com cancro do pulmão com aumento das terapêuticas cirúrgicas que ainda são até aos dias de hoje as potencialmente curativas

Embora o tabaco seja o agente mais importante e conhecido no cancro do pulmão, muitos tumores do pulmão ocorrem em doentes que não têm histórico de tabagismo – e esta incidência em não fumadores está a aumentar.

O verdadeiro impacto global dos não fumadores também não é claro porque o registo dos hábitos tabágicos é deficitário na maioria das bases de dados de registo de cancro do pulmão.

Conclui-se, no entanto, que o cancro no pulmão de não fumadores seria a sétima principal causa de mortalidade por cancro em todo o mundo – e que, pelo menos, um terço dos doentes com cancro do pulmão não tinha histórico de tabagismo.

Se o rastreio do cancro de pulmão se concentrar apenas em grandes fumadores, existirão mais de 30% de doentes com cancro do pulmão que não serão rastreados.

Aumentar o rastreio para cobrir os que nunca fumaram parece-nos importante para melhorar o controlo do cancro do pulmão.

O cancro do pulmão pode ser causado por outros factores de risco além de fumar cigarros, cachimbos ou charutos. De um modo geral, tabagismo passivo, vapor de óleo de cozinha, uso de carvão em ambientes fechados, terapêuticas de reposição hormonal, exposição a amianto ou metais pesados, história familiar e poluição do ar têm sido associados à chamada “carcinogénese pulmonar” em não fumadores.

Os cancros de pulmão em fumadores e não fumadores parecem ser duas doenças diferentes. A patogénese molecular, a susceptibilidade genética e os factores de risco ambientais são diferentes – e os programas de controlo podem ser também diferentes.

Pessoas com cancro de pulmão que nunca fumaram podem ter uma mutação no DNA, por exemplo, uma mutação no gene do receptor do factor de crescimento epidérmico (EGFR) ou em outros genes que lhes permitem, por essas mutações, que possam ser tratados com terapêutica personalizada.

Nos Estados Unidos, cerca de 10% a 20% dos cancros de pulmão, ou 20.000 a 40.000 cancros de pulmão a cada ano, ocorrem em pessoas que nunca fumaram ou fumaram menos de 100 cigarros na vida.

Os investigadores estimam que o fumo passivo contribui para cerca de 7.300 e o radão (um gás radioactivo de origem natural) para cerca de 2.900 desses cancros do pulmão.

O rastreio do cancro de pulmão em pessoas que nunca fumaram ainda não é recomendado com base no modelo de previsão de risco baseado nos dados da população ocidental, provavelmente porque os possíveis danos do rastreio superam o possível benefício da descoberta precoce do cancro de pulmão nesse grupo.

Em curso já há estudos de rastreio de cancro do pulmão que incluem fumadores e não fumadores para identificar o risco relativo (RR) de cancro do pulmão diagnosticado em não fumadores em comparação com fumadores.

Em suma, o risco é muito maior para os fumadores, mas os não fumadores também não podem ser esquecidos.

Pneumologista | Coordenadora Norte da CUF Oncologia e Coordenadora da Unidade de Cancro do Pulmão do Hospital CUF Porto

D.N.
Bárbara Parente
31 Maio 2023 — 01:32


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132: Trabalho digno e emprego criado em Portugal – que respostas?

 

🇵🇹 OPINIÃO

De acordo com os recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), relativos ao 1.º trimestre de 2023, a taxa de emprego situou-se em 56,4%, mantendo-se inalterada em relação ao 1.º e ao 4.º trimestres de 2022.

Revela ainda o INE que para a variação homóloga da população empregada contribuíram, principalmente, os acréscimos nos seguintes agregados: mulheres (0,8%); pessoas dos 16 aos 24 anos (18,6%); que completaram, no máximo, o 3.º ciclo do ensino básico (3,8%) ou o ensino secundário ou pós-secundário (4,3%); trabalhadores com contrato com termo (7,7%); e a tempo parcial (6,5%).

Acresce que o subemprego de trabalhadores a tempo parcial abrangeu 156 mil pessoas, o que corresponde a um aumento de 10,6% em relação ao trimestre anterior e a um aumento homólogo de 8,3%.

Ora, na prossecução dos “Objectivos Nacionais para 2030”, em que estabelece uma estratégia em Portugal para a próxima década ao nível da concretização de políticas públicas, nomeadamente, proteger o emprego e fazer da próxima década um período de convergência de Portugal com a União Europeia, assegurando maior coesão social, estes recentes dados do INE não podem deixar de inquietar.

Tanto mais que o principal propósito da Estratégia Portugal 2030 – enquadrando os 5 objectivos estratégicos para o período “2021-2027” definidos pela União Europeia e que serão as prioridades do “Portugal 2030” – será assegurar que os fundos europeus devem ajudar a criar um “Portugal + Social”, designadamente, “apoiando a melhoria das qualificações da população” e “promovendo o emprego de qualidade”, seguindo as prioridades estabelecidas no Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Como é sabido, para promover verdadeiramente trabalho digno em Portugal, o Governo deve saber responder a este preocupante aumento do recurso ao trabalho a termo.

A verdade é que, o elevado e persistente nível de contratos a termo (e de trabalho temporário) em Portugal, que se regista desde a década de 1990, tem tido resultados muito nefastos especialmente junto dos jovens, com diversas consequências sociais, designadamente demográficas, quer fazendo recuar a natalidade (dada a instabilidade profissional e o aumento do número de trabalhadores com salários com valores perto do salário mínimo nacional) quer forçando o flagelo da emigração anual de milhares de portugueses.

De acordo com o Censos de 2021, “residiam em Portugal, em Abril de 2021, cerca de 10 milhões e trezentas mil pessoas, o que representa um decréscimo de 2,1% face a 2011”.

Salienta o INE que “Portugal apenas tinha registado uma redução do seu efectivo populacional nos Censos de 1970, em resultado da elevada emigração verificada na década de 1960”.

Os dados do Censos revelam ainda que, entre 2011 e 2021, em todos os escalões etários até aos 39 anos, se assistiu a um decréscimo da população, com particular incidência no grupo dos 30 aos 39 anos.

Ora, se Portugal perde sobretudo estes jovens com idades dos 30 aos 39 anos, será premente encontrar respostas para travar esta onda de emigração, retendo os nossos melhores profissionais.

Assim, não podemos abdicar do propósito de assegurar trabalho digno e boas condições de trabalho às pessoas em Portugal, cabendo promover intervenções legislativas bem ponderadas, acompanhadas igualmente pela preocupação em assegurar um são equilíbrio entre os interesses empresariais e os interesses dos trabalhadores.

Professora universitária e investigadora

D.N.
Glória Rebelo
31 Maio 2023 — 00:52


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131: Duelos

 

🇵🇹 OPINIÃO

É preciso falar sobre os desafios para a Saúde Pública porque representam motivos de preocupação para todos. É necessário conhece-los a fim de serem eliminados a tempo. É indispensável a mobilização geral para estas lides inadiáveis.

Só assim, o futuro poderá ser vivido com confiança. Prevenir é, também, uma questão de inteligência. Firmeza. Ainda mais quando são as gerações seguintes que devem ser protegidas através de medidas tomadas hoje. Agora.

Por isso mesmo, desafios e sustentabilidade estão interligados. São convergentes, visto que o que acontece hoje reflecte-se necessariamente amanhã.

Eis três principais ameaças para o futuro:

1. As actuais alterações climáticas têm consequências para a Saúde Pública relacionadas com o aquecimento global. Têm que ser enfrentadas. Um confronto que não pode ser adiado.

Ora, está demonstrado que o efeito de estufa provocado pela libertação de gases poluentes, associados, sobretudo, à produção de energia, traduz-se pelo aumento da frequência de fenómenos climáticos extremos: ondas de calor, secas prolongadas, ciclones, cheias, etc.

Por outro lado, o aumento da temperatura ambiente cria condições favoráveis à multiplicação de vectores (artrópodes) que podem transmitir doenças como o zika, febre de dengue, febre amarela, paludismo, além de outras infecções.

Para desacelerar este processo de transição climática é urgente a adopção de medidas exigentes, em especial no que se refere à utilização de energias.

Para tal, cabe ao Estado, em conjunto com a população, promover o desenvolvimento de estratégias baseadas no binómio: libertar menos carbono & capturar o carbono libertado.

2. A crescente resistência dos microrganismos patogénicos aos anti microbianos, designadamente de bactérias em relação a antibióticos, de vírus a antivirais e de protozoários aos antipalúdicos, estão a gerar dificuldades de tratamento das doenças infecciosas.

O uso indevido de antibióticos em Medicina Humana ou Animal e Agropecuária está na origem deste fenómeno. Sabe-se que os plasmídeos que provocam a resistência aos antibióticos são fragmentos soltos de material genético (ADN) que se transmitem a novas gerações das bactérias e outras espécies de bactérias e que se encontram no ambiente (como a água).

3. As doenças crónicas têm na sua génese os comportamentos como denominador comum. Os cenários relativos à transição epidemiológica e as suas relações com o envelhecimento da população acentuam a oportunidade em promover acções de redução da magnitude destas doenças.

Cancro, doenças cérebro-cardiovasculares, diabetes, obesidade e doenças respiratórias retratam esses problemas. É importante fomentar a adopção de comportamentos promotores de saúde ao longo do ciclo de vida e atender às determinantes básicas: ALIMENTAÇÃO que tem que ser equilibrada no plano quantitativo de calorias ingeridas e na composição (menos açúcares, menos sal, menos gorduras); EXERCÍCIO FÍSICO, combatendo hábitos sedentários desde a infância (os pais devem impedir os filhos de ficarem horas à frente de monitores de TV ou de computador e voltarem aos parques para andarem de triciclo, trotineta ou bicicleta); TABAGISMO, reduzindo o consumo convencional ou de tabaco aquecido.

Moral:

No futuro, a redução dos riscos de saúde irá depender das acções concretas que hoje são tomadas. Depois será tarde proteger filhos e netos. Agora ou nunca!

Ex-director-geral da Saúde
franciscogeorge@icloud.com

D.N.
Francisco George
31 Maio 2023 — 00:43


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130: Mais umbigos que cabeças

 

🇵🇹 OPINIÃO

Os provérbios são a nossa enciclopédia de bolso, e quando acordamos para o dia com as más notícias do dia anterior convém saber que “deus é grande e o mundo é pequeno”.

Tão pequeno que cabe num guardanapo. Era esse mesmo o significado que o latim atribuía à palavra mapa, sinónimo de toalha, lenço ou trapo.

E era também mapa que chamavam ao pedaço de lona que, no silêncio expectante do circo, dava o sinal de largada para as corridas de bigas, também utilizadas como carros de guerra, como se aqueles cavalos fossem galopar pelos confins, a galgar fronteiras. Foi na superfície dessas telas que os romanos desenharam os limites do universo conhecido.

Os mapas retratam o melhor e o pior da nossa espécie: a curiosidade sôfrega e inquieta, a fome de descoberta, mas também vaidade agressiva e a sede de conquista e dominação.

Os mapas fascinam porque contam histórias e revelam paixões. Mas são também os mapas que constroem nossa visão do mundo.

As razões pelas quais o Norte nos aparece sempre virado para cima não são científicas, mas estratégicas e até ideológicas: o alto tem conotações positivas, enquanto o baixo é menosprezado. Associamos a pobreza aos países do Sul e a prosperidade aos países do Norte.

A famosa imagem da Terra obtida pela Apollo 17, em 1972 -aquela bola azul, em forma de berlinde – foi rodada para efeitos de publicação, pois só sabemos ler o planeta posicionado dessa forma.

No entanto, durante séculos o Leste costumava ocupar a posição superior, porque a luz vem do Oriente, lá onde nasce o dia.

Os mapas contam verdades, mas também algumas mentiras. São atlas das mentalidades, medos e ambições das sociedades que os inventaram.

Todos sabemos que a terra é aquela bola redondinha, mas a projecção cartográfica mais utilizada ainda hoje, conhecida como Mercator, esconde distorções interessadas.

Tão interesseiras como aquela que, em Tordesilhas, levou o nosso D. João II a reclamar como limites da expansão portuguesa as 360 léguas para lá de Cabo Verde.

Foi esse desvio no meridiano do mapa do Tratado que permitiu a Portugal explorar as terras onde hoje se encontra o Brasil.

Vistos daqui, os mapas-múndi que navegamos com a ponta dos dedos retratam um Ocidente enorme e central, sobre-dimensionado num hemisfério Norte que ocupa dois terços e relega o Sul a um minúsculo terço inferior.

Não é essa, porém, a visão dos mapas que se estudam nas escolas orientais, onde a China e o Japão ocupam posição central, ou nas australianas onde os mapas retratam o nosso mundo de pernas para o ar.

Desde que se começámos a traçar geografias em guardanapos, tendemos a acreditar que somos e estamos no centro do mundo.

Ao longo da história, muitos povos sofreram dessa miragem imprópria para habitantes de um planeta esférico. Segundo os gregos antigos, Zeus soltou duas águias nos confins do universo para saber onde ficava o centro da Terra.

Inevitavelmente, as aves encontraram-se em Delfos, lugar marcado para a posteridade na pedra oval a que chamaram de “omphalus“, ou seja, umbigo – da mesma forma que os chineses da época se julgavam o “império do meio”.

Ambos acreditavam ser o núcleo cartográfico do Universo e a única cultura civilizada, cada qual a julgar-se no epicentro de tudo. E talvez seja por isso que o mundo ainda tem mais umbigos do que cérebros.

O delírio megalómano tem muitas vezes cinzelado geografias a golpes de invasão, guerra e dominação, em nome de purezas remotas e nações triunfantes.

A história prova, porém, que pensamento e ciência resultam do cruzamento dos povos, em rotas de viagens, encontros e trocas.

Na verdade, aprendemos sobre nós mesmos quando ousamos olhar outras paisagens e ouvir outras vozes. Só os outros nos dizem quem somos.

jornalista

D.N.
Afonso Camões
30 Maio 2023 — 00:30


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129: Sapateia açoriana

 

🇵🇹 OPINIÃO

Os lugares em que vivemos na infância adquirem sobre nós, por um especial dom da memória, configurações de sonhos acordados.

Quando esses lugares deixaram muitos anos de ser por nós frequentados, mais a sua realidade se esfuma no nevoeiro da nossa memória e ganha nas nossas recordações um brilho diferente.

Como o poeta Robert Desnos dizia á amada distante. “j””ai tant rêvé de toi que tu perds ta réalité”.

Os Açores, onde vivi na minha remota infância, foram para mim durante muito tempo essa memória sonhada e cristalizada em imagens de que não podia confirmar a plena adequação à realidade.

Lembrei-me hoje dos Açores por ter já passado um ano sobre a morte do meu amigo Mário Mesquita, por ter sido reeditada a importante obra de José Medeiros Ferreira sobre a revolução portuguesa e por um meu outro amigo, o Eduardo Paz Ferreira (felizmente vivo e são) ter acabado de publicar um livro sobre esta nossa experiência melancólica de envelhecer.

Era uma geração de açorianos (a que me faltou acrescentar os nomes do Jaime Gama e do Horácio César) que se impunham nos nossos debates no meio estudantil, naqueles anos que eram os anos finais do Estado Novo (mas nós não sabíamos).

E distinguiam-se por apresentar uma alternativa política social democrata a um meio associativo universitário dividido entre uma extrema direita cada vez menos visível e presente, um Partido Comunista activo e reorganizado, após a grande repressão de 1965, uma plêiade de movimentos “esquerdistas”, fiéis, por cima dos seus combates internos, à “linha chinesa” e um movimento trotskista que tinha menor repercussão.

Na minha Faculdade, a luta travava-se entre os PCs e seus “compagnons de route” e esse outro arquipélago esquerdista, em que ganhava preponderância o MRPP.

O que então eu sentia nesse grupo de colegas açorianos era uma independência das cartilhas marxistas rudimentares que nós seguíamos e um espírito de cepticismo e dúvida em relação a todos os dogmas, que lhes acentuava um altivo e diferente posicionamento intelectual.

Não que eu fosse então atraído por este pensamento livre, eu que glosava meticulosamente os conceitos de Althusser e não via salvação fora daquele marxismo estreito e fechado da nossa geração.

Mas a minha amizade com Mário Mesquita veio abrir-me o espírito para um pensamento mais solto e heterodoxo, embora eu não me identificasse então com a Acção Socialista Portuguesa, de que estes meus amigos eram militantes, mas que, para mim, não era suficientemente revolucionária…

A revolução de Abril, os anos e as lutas do PREC vieram ensinar-me que a liberdade e a democracia são conquistas que nunca poderemos deixar cair e colocaram-me do lado dos vencedores do 25 de Novembro.

O 25 de Novembro não foi, ao contrário do que hoje se quer fazer crer, uma vitória da direita, foi simplesmente uma vitória da democracia e do 25 de Abril.

Destes meus amigos e companheiros de geração, destaco Mário Mesquita, uma inteligência rebelde, independente e avessa a quaisquer sujeições, mesmo as que pudessem vir do seu lado.

Mas talvez houvesse um espírito comum naquela geração de jovens açorianos, que era o serem radicalmente avessos a quaisquer dogmatismos.

José Medeiros Ferreira teve a lucidez, que foi única nesse tempo nos campos oposicionistas, de entender que seria das próprias Forças Armadas que viria o impulso libertador, ideia que para a maioria de nós, a poucos meses do 25 de Abril, parecia impossível de aceitar.

Jaime Gama foi meu ministro e manteve, a par da sua heterodoxia crítica, um impiedoso riso sardónico sobre todas as ilusões e os ídolos da tribo…

Eduardo Paz Ferreira construiu recentemente, através de um conjunto de obras, tão bem fundamentadas como bem argumentadas, uma crítica coerente e radical aos dogmas financistas dos nossos financeiros, aos totens e tabus dos nossos economistas.

O seu último livro é uma chamada de atenção sobre os idosos, que tantas vezes são injustamente postos de lado na nossa vida social.

Este grupo de açorianos inconformistas teve um papel vivo e estimulante para a minha geração. Porque me lembro hoje deles e dessas ilhas onde eu vivi?

Talvez porque exista alguma relação entre aquela condição de ilhéu e um cepticismo lúcido e crítico, que se não deixa embalar em ilusões, mas que não abdica na defesa dos princípios fundamentais.

À memória de Mário Mesquita

Diplomata e escritor

D.N.
Luís Castro Mendes
30 Maio 2023 — 00:35


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Falemos de habitação social – mas a sério

 

🇵🇹 OPINIÃO

Num momento de emergência habitacional, é preciso olhar para a (pouca) habitação pública existente e aprender com os muitos erros e as algumas, se houver, boas soluções. Sem nunca perder de vista o objectivo: justiça social.

Leio uma notícia no Público sobre as rendas em atraso no município de Loures. Diz a respectiva Câmara que cerca de metade dos inquilinos de habitação social tem rendas em atraso, totalizando mais de 15 milhões de euros, e que vai dar uma última oportunidade para que os incumpridores paguem, ou passará para as ordens de despejo.

Trata-se, segundo a Câmara, de 1225 agregados faltosos, e de rendas entre 9,61 e 30 euros. Sendo o valor das rendas tão baixo, para se chegar a um passivo de 15 milhões, mesmo contando com as “indemnizações moratórias” (ou seja, os juros acumulados de penalização devido ao não pagamento), é necessário que haja muita renda por pagar.

E haver muita renda por pagar só se explica de duas formas: houve quem não pagasse durante muito tempo e quem não cobrasse durante muito tempo.

Sendo que se não cobrar não é decerto desculpa para não pagar, deixar o assunto arrastar-se durante anos – porque só podemos estar a falar de anos de incumprimento – é uma forma de desrespeito pelo que é de todos tão imperdoável como a de quem não cumpriu.

Este desrespeito é algo que, ao longo de décadas de reportagens sobre bairros sociais e a questão da habitação, sempre me confundiu: por que motivo parece ser tão difícil ao Estado e às autarquias gerir a habitação social?

Porque é que não parece haver meio-termo entre o desleixo que permite passivos de milhões e as periódicas fúrias de despejo?

Veja-se o que diz a autarquia de Loures: dos agregados em incumprimento cerca de 30%, ou seja 800 famílias, nem sequer “apresentaram os papéis” – ou seja, não fizeram a necessária prova dos respectivos rendimentos “apesar de para isso terem sido alertadas várias vezes”.

Significa isto que a autarquia não sabe se aquelas pessoas continuam a ter direito à casa onde estão e se a renda que lhes é aplicada está de acordo com a sua capacidade financeira.

Em última análise a autarquia, que diz ter cerca de mil famílias em lista de espera para uma habitação social – e nesse caso, com “papéis apresentados” e necessidade certificada pelos serviços – não saberá sequer quem está a ocupar aqueles fogos.

Não é um problema novo. No início do século, por exemplo, efectuei uma reportagem sobre o Bairro da Bela Vista, em Setúbal, quando se anunciava um programa de reabilitação do edificado orçado em 10 milhões de euros.

Nesta reportagem, que foi publicada na Notícias Magazine e faz parte do livro Cidades sem nome – Crónicas da vida suburbana, um dos moradores da Bela Vista, de seu nome Francisco Sousa, propunha, perante situações como aquela que a Câmara de Loures denuncia, que a gestão do bairro passasse a ser efectuada, à imagem do bairro na Alemanha onde tinha vivido cinco anos, por quem ali residia.

Com o presidente do conselho directivo da escola básica local, um dos professores e outros moradores e trabalhadores do bairro, Francisco Sousa tinha apresentado a ideia à autarquia.

Na entrevista, elencou aquilo que qualificou como as “regras básicas” dessa gestão: a instituição de uma “renda mínima”, que aquilatava em 25 euros (estamos a falar de 2003/2004, quando o ordenado mínimo não chegava aos 400 euros), eventual perdão das rendas em atraso e um recenseamento porta a porta.

Para, explicava, “ver quem ocupou, quem vendeu a chave…”. Para este homem, a solução para quem tivesse ocupado era “a rua”, porque, considerava, “não se admite”.

Não discuti com ele a dificuldade de compaginar a ideia da habitação social como forma de dar um tecto decente a quem não o tem com a decisão de tirar tecto a quem ocupa um sem seguir as normas (e que ao fazê-lo está tirar a vez a quem se candidatou de acordo com a lei).

Não conheço quem tenha resposta boa para isso, e se não sabia encontrá-la na altura menos ainda a verei agora, quando mesmo a classe média alta se vê aflita para encontrar uma renda ou uma prestação de crédito que possa pagar – e portanto as casas de habitação pública se tornaram ainda mais preciosas.

Não sei igualmente se existe em Portugal algum bairro social no qual a gestão passe por moradores, ou também por moradores.

À partida a ideia parecia-me interessante: há um apego ao lugar e um conhecimento das questões dos quais as estruturas camarárias ou estatais podem beneficiar.

Em todo o caso, não aconteceu na Bela Vista. Quando lá voltei em 2009 – o bairro tinha sido mais uma vez palco de uma intervenção policial musculada, com muitos directos de telejornal – e procurei o morador que queria ajudar a geri-lo, encontrei-o “triste e desiludido”.

“A câmara dizia que tinha os seus gabinetes técnicos, e mandaram para aqui uns tipos todos engravatados fazer horário de expediente, sem conhecerem as pessoas”, informou-me. “Percebi que se calhar ninguém está mesmo interessado em trabalhar a sério nestas zonas.”

Não creio que seja totalmente assim – que ninguém esteja interessado em trabalhar a sério aquelas zonas -, mas o certo é que algo de tão fundamental para a coesão social como a habitação pública foi sido sempre ou quase sempre encarado como um fardo e um problema e não uma solução e uma vantagem, com o Estado a tentar despachar, assumindo milhões de passivo de rendas não cobradas, o seu parque habitacional para as autarquias e estas, mais uns milhões perdidos à frente, tentando livrar-se dele vendendo aos moradores por tuta-e-meia (como sucedeu por exemplo na Bela Vista).

Foi também por esse motivo que chegámos onde estamos, com um dos mais exíguos parques habitacionais públicos da Europa.

Um erro imperdoável – parece que agora toda a gente descobriu isso – que ainda assim não leva a que se tenha encontrado uma forma eficaz e justa de gerir o que há.

Talvez investigando casos de sucesso, no país ou no estrangeiro, e aplicando o que deu resultado, não? Talvez estabelecendo valores de renda que sejam compatíveis com o rendimento dos locatários sem serem tão baixos que se tornem irrisórios e, paradoxalmente, desvalorizem as casas aos olhos de quem as ocupa.

Talvez não permitindo que quem paga a renda se sinta idiota face ao vizinho que fica a dever anos a fio; talvez certificando que o rendimento obtido permite uma manutenção adequada, ao invés de servir de desculpa para deixar estragar. Talvez mudando todo um paradigma – esse que há décadas estigmatiza a habitação pública e os bairros que salvaram (porque salvaram) tanta gente da miséria.

O que não pode mesmo ser é deixar como está. É que assim será muito difícil acreditar que o Estado pode ser capaz de resolver esta emergência.

D.N.
Fernanda Câncio
30 Maio 2023 — 01:27


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127: Grau Zero na Política Portuguesa

 

🇵🇹 OPINIÃO

A política parlamentar, ou melhor para lamentar, portuguesa parece ter atingido o grau zero. Em sede de Comissão de inquérito à TAP assisti incrédulo ao mais baixo nível de intervenção política desde que tenho memória, ou seja desde o 25 de Abril de 1974.

O insulto, a insinuação, a mentira, a gritaria, o insulto substituíram completamente a ponderação, a lucidez, a procura da verdade, a dignidade e a rectidão que devem caracterizar os nossos representantes. Vejamos alguns exemplos.

Na inquirição ao ministro João Galamba o deputado do Bloco de Esquerda antes mesmo de formular qualquer pergunta começa por lhe chamar mentiroso e depois não se retrata quando face à explicação dada se verifica que o insulto não era verdadeiro. Isto se alguma vez um insulto pode ser verdadeiro.

Note-se, a talhe de foice, que qualquer insulto mais caracteriza quem o profere do que sobre quem recai. Um estilo, copiado do Chega, e logo seguido pela generalidade dos deputados dessa comissão.

Na audição à Chefe de Gabinete do Ministro, que procurou com ponderação, segurança e firmeza responder a todas as questões formuladas, o espectáculo não poderia ser mais vexatório para a dignidade da instituição parlamentar.

Totalmente a despropósito e em contraste com o tom sério da depoente, os deputados e assessores do PSD riam-se alarvemente, dando de si mesmo uma triste imagem de falta de seriedade, de irresponsabilidade e de ausência de rigor.

É que não estavam interessados na explicação já que tinham previamente decidido o que diriam independentemente do teor da resposta – um discurso inflamado clamando “contradição”, onde ninguém a vislumbra, e gritando insultos na direcção do governo.

Também, frequentemente, durante as audições os deputados distorceram gravemente o que os inquiridos respondiam, alterando o seu sentido, concluindo o contrário do dito, parecendo ou não perceber português ou ter intenção de manipular a audiência.

Para além da forma, trauliteira, malcriada, em tom de gritaria e pejada de insultos e mentiras, o conteúdo é do mais lamentável que se viu. Vejamos.

Quem quando a sua casa está a ser roubada por ladrão que pega lhe pega fogo, perde tempo a cogitar se deve telefonar primeiro à polícia para prender o ladrão ou aos bombeiros para apagar o fogo. Quem pede um parecer jurídico se deve primeiro telefonar à PSP ou aos Bombeiros?

Quem quando é roubado em casa não procura prender o ladrão no elevador ou impedir a sua saída do prédio? E é contra estas atitudes de completo bom senso que estes deputados se insurgem.

Quem se preocupa quando está a ser roubado em determinar com rigor, averiguando detalhadamente as funções de cada uma destas forças policiais, se face ao roubo deve chamar a PSP, a GNR ou a PJ. É o grau zero da inteligência.

A defesa do prevaricador e a tese de que o Estado não deve impedir a saída e divulgação de informação classificada é também do mais demagógico.

O que diriam se ao invés de recuperar rapidamente o computador os responsáveis deixassem cair em mãos erradas segredos de Estado? Aí sim teriam motivos de crítica e de indignação.

No meio desta peixaria, desta vergonha, em que os deputados transformaram uma comissão de inquérito, poucos tentam remar contra a maré, poucos tentam manter a elevação, fazer as perguntas que permitam perceber os erros políticos cometidos na gestão da TAP, nomeadamente no afastamento de Alexandra Reis e no processo de recuperação da empresa, processo que envolveu somas consideráveis de fundos púbicos e sacrifícios consideráveis dos seus trabalhadores.

Temos, então que assinalar o trabalho muito solitário do deputado comunista Bruno Dias que tem evitado a chicana e se tem concentrado nos temas materiais e substanciais, não participando no triste espectáculo que os outros deputados têm dado ao país. Honra lhe seja feita.

Uma oposição que se centra no essencial. É deste tipo de oposição que precisamos.

O país definha e os deputados de quase toda a oposição afadigam-se a discutir se quando se é roubado e a casa arde se deve chamar primeiro os bombeiros e depois a polícia, ou se será o inverso primeiro a polícia e só após este telefonema de deve ligar aos bombeiros.

Diz-se que Constantinopla caiu e com ela o Império Romano do Oriente porque as suas elites em vez de olharem para os problemas discutiam literalmente o sexo dos anjos.

A direita e o Bloco estão assim incapazes de oposição e centrados em dar de si um pesaroso espectáculo ao país e à Europa. É totalmente lamentável.

D.N.
Jorge Fonseca de Almeida
29 Maio 2023 — 14:53


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126: A discreta passagem do Presidente da Argélia por Lisboa

 

🇵🇹 OPINIÃO

Os dias 23 e 24 viram uma passagem quase meteórica do Presidente (PR) da Argélia, Abdelmadjid Tebboune, em Lisboa.

Digo-o desta forma, porque não vi grandes ecos nos media portugueses, a propósito da visita daquele que nos continua a permitir tomar banho de água quente, já que se trata do maior fornecedor de gás natural a Portugal. A Presidência da República bem o sabe, tal a pompa protocolar com que recebeu o PR Tebboune.

Recebido na Praça do Império com Honras Militares, execução dos dois Hinos Nacionais, salva de 21 tiros, revista e desfile da Guarda de Honra.

Marcelo não falha e Tebboune também não nos tem falhado, apesar da crescente tensão entre Argel e Madrid a propósito da disputa sahraoui, cujo Governo de Pedro Sanchez, decidiu no ano passado ensaiar uma definitiva aproximação a Rabat, afastando-se assim das intenções de Argel face aos destinos das Províncias do Sul marroquino.

Neste desalinhamento Argélia-Espanha, a “bomba atómica” argelina foi utilizada com Marrocos, através do corte total de fornecimento de gás ao Parque Industrial de Tânger, corte que também se acenou a Espanha.

É aqui que Portugal entra, já que depende dos gasodutos espanhóis para o gás argelino chegar ao eixo Portalegre/Figueira-da-Foz, que o distribui pelo país e nos permite todos os confortos domésticos, mais um não “desacelaramento” industrial e comercial.

É esta a preocupação do Presidente da Argélia, fazer frente a Espanha com um crescente desinvestimento na Península Ibérica, face a um crescente investimento na Península Itálica, sem prejudicar Portugal.

Fazê-lo, seria alienar Portugal de uma importante relação que não passa apenas pela dependência deste hidrocarboneto. A Argélia não depende de Portugal na área da construção civil, mas confia muito nos arquitectos e engenheiros portugueses.

Não foi por acaso que foi uma empresa portuguesa a construir a infra-estrutura que actualmente serve de cama ao Metropolitano de Argel. No Magrebe, os portugueses têm fama de serem os melhores construtores de pontes na Europa.

Falo de arquitectura e construção, mas Portugal também sabe e poderá construir outras pontes entre Marrocos e Argélia, entre Espanha e Argélia.

Como? Ainda vamos a tempo de sugerir a inclusão da Argélia na Candidatura tripartida Portugal/Espanha/Marrocos ao Campeonato do Mundo 2030.

Provar-se da impossibilidade desta iniciativa, até por decisão da própria FIFA, apenas porque sim, não a torna um “delírio raulesco”, antes uma iniciativa construtiva que “bem esgalhada” deixará a marca-de-água das boas intenções, que num futuro próximo poderá ter resultados práticos.

Chegará o dia em que marroquinos e argelinos terão que se sentar frente-a-frente e resolver o assunto, que estará por um destes dias a chegar o pós-guerra, período que obriga a novas perspectivas, já que a guerra também se faz para que nada fique como dantes! É isto o reajustamento geopolítico que se fala nos telejornais.

Esta visita foi a segunda visita presidencial a uma capital europeia, desde que o PR Tebboune tomou posse em Dezembro de 2019. A primeira foi precisamente a Roma e não a Madrid.

A Argélia está preocupada em não alienar Portugal e nós não “esgalhámos” mediaticamente esta visita, desde as boas intenções argelinas, até aos ovos que os seus opositores lhes mandaram em plena baixa lisboeta, logo após o terem apupado à chegada à Câmara Municipal de Lisboa.

Em duas semanas Lisboa assistiu às visitas do PM marroquino Aziz Akhannouch (12.05) e agora do PR argelino, prova da importância deste crescente “pivot geopolítico” Portugal/Espanha/Marrocos. Porque não acrescentar-lhe a Argélia e fazer deste triângulo um quadrado ainda mais promissor?

Para quem ainda não percebeu, esta guerra abriu-nos a janela que nos pode proporcionar um flic-flac que nos transportará da cauda, para a cabeça da Europa. Tudo dependerá dos políticos, que sempre fomos bons a Ginástica!

Politólogo/Arabista

www.maghreb-machrek.pt (em reparação)

D.N.
Raúl M. Braga Pires
26 Maio 2023 — 07:48


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125: Wagner e Nietzsche

 

🇵🇹 OPINIÃO

As declarações sucessivas, replicadas no consumo ocidental de informação, mas seguramente formatadas para consumo interno, dessa personagem sinistra que se chama Yevgueni Prigojin, o chefe russo do grupo Wagner, são difíceis de compreender.

A não ser numa lógica, só na aparência ambivalente, de assunção de uma nova legitimidade interna e de, ao mesmo tempo, justificação dos danos que a demora e os fracos sucessos na guerra têm exibido.

Criticar abertamente os filhos das elites russas, que se passeiam pelas redes sociais, enquanto os filhos das pessoas comuns morrem em território ucraniano e são repatriados em caixões, ou dizer que o resultado da invasão russa foi, afinal, o de militarizar a Ucrânia e tornar o seu exército um dos mais fortes do mundo, não parece ser grande discurso motivacional.

No entanto, se este discurso existe, e só poderá existir com o beneplácito ou o incentivo de Vladimir Putin, ele tem de visar precisamente a colocação de mais pressão sobre as únicas estruturas de poder paralelas ao poder de Putin: as forças armadas regulares e as elites que dominam a economia russa.

A guerra de Putin não está, portanto, a ser perdida por ele. Segundo este novo porta-voz, improvável há um ano, a guerra está a ser perdida pelos únicos elementos internos que podem ameaçar Putin, o exército e os oligarcas.

Assim, nada melhor que limitar, desde já, com o foco nestes alvos, as suas eventuais veleidades futuras.

É certo que estas declarações podem evidenciar um nível de fragilidade adicional do actual poder russo. Mas, enquanto elas existirem, nas suas distintas declinações, não deixam de ser também um sinal de que o poder de Putin ainda subsiste. O contrário seria ainda mais perigoso, na verdade.

O grupo Wagner, criado a propósito da intervenção russa na Crimeia, em 2014, e depois utilizado em diversos pontos do mundo (e também em Moçambique e, alegadamente, em Angola e na Guiné-Bissau), oscila na sua caracterização, feita no ocidente, entre ser, na prática, uma divisão especial do exército russo e uma estrutura militar autónoma dependente apenas do presidente russo e dos seus interesses, dentro e fora da Rússia.

A verdade, como tantas vezes sucede, pode bem estar no meio, para mais num contexto em que a duplicidade e a ambiguidade fazem parte do quotidiano e das regras do jogo.

Supostamente os mercenários ao serviço do Wagner ganham entre 1.000 e 2.000 dólares por mês, vendo ainda os condenados a penas de prisão, que compõem grande parte dos seus homens a combater na Ucrânia, atenuada ou anulada a sua pena.

Parece pouco, para o que está em causa. Mas a pobreza objectiva e a ilusão de liberdade, também na guerra, são sempre factores decisivos.

E o mercado internacional de mercenários, como tantos outros, alimenta-se e aproveita-se disso mesmo. Pobreza e ilusão de liberdade são o dedo invisível no gatilho. E, como dizia Nietzsche, se a loucura é rara nos indivíduos, nos grupos, nas tribos, é afinal a regra.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

D.N.
Miguel Romão
26 Maio 2023 — 07:48


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124: Resposta a Cavaco: Este país

 

🇵🇹 OPINIÃO

Para quem tenha nascido nos anos de 1970 (sensivelmente entre 1970 e 1980) e tenha, hoje, os seus 54, 50, 45, 40 anos, e seja pai, mãe, encarregado de educação, com casa para pagar ao banco, ou renda de casa a pagar ao senhorio, uma pergunta se impõe: para onde foram os três mil milhões de euros despejados na TAP?

Para quem, hoje, tenha chegado a meio da carreira tributária, a meio da carreira profissional (se a tiver), seja como professor, médico, polícia, oficial de contas, enfermeiro, agente cultural, profissional do sector terciário, pequeno e médio empresário, outra pergunta se impõe: por que houve dinheiro para os bancos e para quem trabalha congelamentos de ordenados e de progressão nas carreiras?

Para quem – desempregado de longa duração, dependente de subsídios do Estado, de redes de solidariedade social, outra pergunta se impõe: para onde foram os nossos sonhos? Para quem oiça Galamba e Cavaco uma pergunta se impõe: que país é este?

Portugal é, antes de mais, o país que, à beira de celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e não obstante as notícias de crescimento económico acima da média europeia previstas pelo BCE, conta ainda com dois milhões de pobres.

Portugal é o país onde, não obstante os inúmeros e óbvios sinais de progresso que Abril nos deu (SNS, sobretudo) há um ressentimento geral, uma vez que a sensação que todos temos é a de que, aqui, empobrecemos a trabalhar. É o país dos recibos-verdes (criação cavaquista), é o país onde, mesmo com contrato, os salários são manifestamente baixos face ao custo de vida.

País onde um Primeiro-Ministro do PSD convidou à emigração dos mais jovens em tempo de TROIKA.

País onde um outro Primeiro-Ministro, também do PSD, para ter um cargo chorudo na Europa, entregou o país a essa “má moeda” – escreveu Cavaco -, chamado Santana Lopes.

Portugal, que, com Salazar, era pouco mais que um país medieval com aviões a passar por cima, é o lugar onde, depois de uma ponte cair, um Primeiro-Ministro, agora do PS, dos mais bem preparados da nossa democracia, saiu do cargo porque Portugal não podia “cair num pântano político”.

Portugal é o país onde a classe política em exercício, criada no cavaquismo e no guterrismo, é quase toda filha das “jotas” partidárias: da JSD à JS, da Juventude Popular à Juventude Comunista, dos grupescos da IL aos arremedos de políticos que vêm do Chega.

Para os portugueses que não são filiados em partidos, a impressão que dá, ancorada em factos, é que, neste país, só quem tiver o cartão do PS ou do PSD, pode almejar a viver com alguma qualidade de vida.

Neste sentido, Portugal é ainda esse país de Rafael Bordalo Pinheiro onde todos – empresários, políticos, autarcas – mamam as tetas da “porca da política”.

Por estes e outros factos incontornáveis é que as palavras de Cavaco Silva são uma óbvia manipulação da verdade histórica, na medida em que Cavaco Silva, o político que mais tempo dirigiu o país depois de Salazar, é directamente responsável pela fragilização do Estado.

Defensor da livre iniciativa, fez, porém, entrar interesses privados em sectores estratégicos da economia, com impacto nas políticas de emprego que à minha geração foram oferecidas.

Dos salários baixos, em nome do perpétuo combate à inflação, à precariedade laboral, foi com Cavaco Silva que a minha “geração rasca” (disse um iluminado) cresceu nas escolas e nas universidades tendo o deus-dinheiro como valor absoluto.

Muitos dos políticos actuais são filhos da cábula, da praxe e da estupidez institucionalizada na educação alienante que (de)forma os jovens portugueses há décadas, incapazes de se projectarem num Portugal mais justo e digno, porque roubados na igualdade de oportunidades.

Quem é rico em Portugal, vive; quem é pobre ou da classe média, paga impostos e mata-se num quotidiano sem energia vital.

Assim, o cavaquismo consolidou, na democracia, a existência comezinha de se ser funcionário público com ordenado baixo, mas certinho.

O PS, assombrado por Cavaco, repetiu esse liberalismo à portuguesa, sem nunca combater as oligarquias instaladas. Com o cavaquismo regressaram os tiques de autoritarismo salazarista: quem se esqueceu da célebre carga policial na Ponte 25 de Abril? Quem não se lembra das cargas sobre os estudantes na 5 de Outubro?

País feito à imagem e semelhança do homem de Boliqueime, Portugal é hoje, como ontem, o país da protecção dos interesses de classe: país de serventuários dos partidos e das empresas e das famílias ricas. “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas”, disse Cavaco.

Para a minha geração, Portugal é um país onde é impossível viver. Saúde, habitação, educação: tudo caro, inacessível para os nossos rendimentos. Com a mais longa ditadura da Europa, Portugal é um país, hoje ainda, semi-analfabeto, inculto, pobre.

Vítimas, na verdade, da nossa cegueira, do nosso atavismo, aceitamos que a nossa democracia, esse regime que Cavaco deplora, seja hoje o regime da raiva e do ódio. Ora, o PS, bem como toda a Esquerda, têm de se unir contra o ódio e a raiva vindas de um político para quem Os Lusíadas tinham quatro cantos.

Montenegro, de resto, não diria coisa diferente – e que ideias de facto tem o líder do PSD para não trair a minha geração e os nossos filhos – os da classe média, os filhos dos pobres?

Professor, poeta e crítico literário

D.N.
António Carlos Cortez
26 Maio 2023 — 08:45


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