Este é “talvez o principal problema” do Serviço Nacional de Saúde, admitiu Manuel Pizarro: “Temos de resolver”.
Miguel A. Lopes / LUSA O ministro da Saúde, Manuel Pizarro
O ministro Manuel Pizarro considerou este sábado inaceitável haver utentes a irem de madrugada para a porta dos centros de saúde para conseguirem ser atendidos, notando que, actualmente, este é “talvez o principal problema” do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“Eu, evidentemente, que não posso considerar que seja aceitável que as pessoas tenham de ir de madrugada para o centro de saúde para conseguirem ter uma consulta. Isso é algo que nós temos de resolver e vamos resolver paulatinamente”, disse Manuel Pizarro à agência Lusa.
Falando em Coimbra, no final de uma reunião de trabalho com diversas entidades representantes de pessoas com doença, iniciativa comemorativa do 44º aniversário do SNS, Manuel Pizarro frisou que o problema de ter utentes de madrugada à porta das unidades de cuidados de saúde primários “resulta de uma incapacidade de planeamento” que tem de “assumir”.
“Não foram preparados os profissionais necessários para fazer uma transição geracional que nós tínhamos obrigação de perceber que iria acontecer nestes anos.
Os anos entre 2020 e 2024 são anos em que atingem a idade de reforma, os médicos especialistas de medicina geral e familiar dos grandes cursos médicos da década de 70 [do século XX]”, argumentou o titular da pasta da Saúde.
Para Manuel Pizzaro, neste momento, o problema “não se trata, já, da capacidade do SNS atrair os jovens profissionais” (…) mas sim que, até ao final do próximo ano, “muitos médicos irão atingir a idade da reforma”.
A esse propósito, o ministro lembrou que no concurso realizado em maio, mais de 90% dos médicos que tinham acabado a especialidade ficaram no SNS, um total de 314 clínicos de medicina geral e familiar.
“Eu estou convencido que o conjunto das medidas que tomámos [para] alargamento da formação dos especialistas em medicina geral e familiar – têm entrado mais de 500 em cada um dos últimos anos – agilização dos concursos por forma a que se fixem no SNS e generalização das USF [unidades de saúde familiar] modelo B, que é um modelo que também atrairá mais esses profissionais, não apenas pelo aspecto remuneratório, vão permitir resolver esse problema”, argumentou.
“Não vale a pena esconder que, até ao final de 2024, vamos continuar a enfrentar muitas dificuldades”, avisou Manuel Pizarro.
Sobre a reunião de trabalho este sábado realizada no auditório do Hospital Pediátrico de Coimbra e que se estendeu por cerca de cinco horas, o ministro da Saúde manifestou a “profunda convicção de que a participação dos cidadãos e, desde logo, dos cidadãos que vivem com doença, no Serviço Nacional de Saúde, é um elemento absolutamente essencial”.
“São eles que nos permitem ter uma informação mais exacta, que vai para além da frieza dos números. Nós precisamos de números, mas quem descreve a humanidade que tem de estar subjacente ao SNS, são eles […] muitas vezes.
Não apenas com informação sobre a forma como as nossas medidas estão, de facto, a ser implementadas no terreno, como têm muitas sugestões e propostas a fazer para melhorar o SNS”, disse Manuel Pizarro.
🇵🇹 PORTUGAL // ABORTO // SNS // VIOLAÇÃO DE DIREITOS
Três meses após o ministro da Saúde declarar que entraves no acesso ao aborto no SNS se resolveriam “em semanas”, governo ainda não esclareceu que medidas pretende tomar.
Numa situação idêntica à portuguesa, a Itália, onde 35% dos hospitais não fazem interrupção de gravidez (em Portugal são 30%), foi condenada pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais por violação do direito de acesso à saúde e discriminação.
“Tem de vir à urgência, fazer uma ficha e dar a indicação de que quer interromper. Na urgência é feita uma ecografia a ver se está ainda dentro do prazo legal e depois é encaminhada à consulta.”
Mas faz-se aí no hospital?
“Não, não, as senhoras são encaminhadas para fora, para o continente. Não é cá que se faz. Peça a informação ao médico que fizer a ecografia, está bem?”
É assim que a 26 de Abril respondem, no hospital do Divino Espírito Santo, de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, à mulher que telefona a dizer que quer interromper a gravidez: tem de fazer uma viagem de 1445 quilómetros.
Na lista que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) publicou no final de Fevereiro, “Estabelecimentos de saúde oficiais e oficialmente reconhecidos para realização da interrupção da gravidez por opção da mulher”, este era o único hospital que surgia “sem informação” – ou seja, não se indicava se efectuava ou não, fazendo concluir que não respondeu ao pedido de informação da DGS. O telefonema do DN permite tirar as dúvidas que restassem: não faz.
O hospital do Divino Espírito Santo é assim um dos 13 hospitais do Serviço Nacional de Saúde – quase um terço do total de 44 – que não fazem interrupção da gravidez até às 10 semanas por vontade da mulher.
Na maior ilha dos Açores, com 135 mil habitantes (mais de metade da população do arquipélago), e uma elevadíssima taxa de risco de pobreza, não existe qualquer outra alternativa legal para quem quiser interromper a gravidez até às 10 semanas a não ser a viagem para Lisboa.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) paga as despesas às mulheres que se dirigem ao hospital para esse efeito e são encaminhadas para o continente, mas os custos envolvidos na deslocação não se limitam ao preço do voo e do alojamento. Há a necessidade de perder vários dias de trabalho/estudo (pelo menos uma semana, já que a lei prevê, depois da “consulta prévia”, um período de reflexão obrigatório de três dias e outra consulta na sequência da IVG), a possibilidade de disrupção familiar e a grande dificuldade em manter a situação privada. Para além de poder implicar também, devido às contingências logísticas, o perigo de ultrapassar um prazo legal que é o mais curto da Europa.
Aliás, não foi possível perceber qual o tempo de espera que, no caso do Hospital do Divino Espírito Santo, decorreria até à ecografia de datação, pois só presencialmente, na urgência, esta pode ser requerida. Um procedimento que não parece adequar-se às normas estatuídas pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) para o circuito da IVG, as quais estabelecem a necessidade de criar um processo o mais directo e célere possível, de modo a “minimizar o número de pessoas a contactar pela mulher”, e, com o intuito de “facilitar o acesso, promover a qualidade da prestação de cuidados de saúde, bem como diminuir o medo da crítica”, garantir “a confidencialidade e privacidade” (da Circular Normativa n.º 11/SR da DGS, de 21 de Junho de 2007).
Dos três hospitais dos Açores – o mencionado, o Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo e o Hospital da Horta – só o da Horta (na ilha do Faial, 14 356 habitantes) faz IVG; o de Angra do Heroísmo (na Terceira, a segunda ilha mais populosa do arquipélago, com 53 311 habitantes) também “manda” as mulheres para Lisboa, para a Clínica dos Arcos, um dos dois estabelecimentos privados que em Portugal fazem IVG (o outro é o SAMS, também na capital do país). Ou seja, nos 2346 quilómetros quadrados dos Açores, para mais de 246 mil habitantes, só há um estabelecimento de saúde a disponibilizar um serviço garantido pela lei da República.
Dificuldade no acesso ao aborto legal é violação do direito à saúde, diz Conselho da Europa
O caso extremo dos Açores vem reiterar o que o DN reportou numa série de artigospublicadosem Fevereiro: apesar de o aborto até às 10 semanas por vontade da mulher ser um direito consagrado desde 2007, em várias zonas do país o acesso a esse cuidado de saúde é muito dificultado, obrigando as mulheres àquilo que uma das entrevistadas descreveu como “uma corrida de obstáculos”.
Há mesmo situações nas quais as mulheres não obtêm resposta em tempo útil no SNS, sendo obrigadas a recorrer directamente ao privado. Uma das entrevistadas pelo jornal teve de pagar do seu bolso a interrupção na Clínica dos Arcos por não conseguir que o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, lhe marcasse consulta antes das 10 semanas de gravidez; seria depois, devido à publicação da sua história no DN, ressarcida pelo hospital. Um caso idêntico, ocorrido no Algarve, com o Centro Hospitalar de Faro, foi relatado numa deliberação de 2022 da Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Não existindo dados sobre aborto clandestino, não é de estranhar que as dificuldades com que as mulheres se confrontam no acesso ao aborto legal estejam a “mandar” uma parte delas para procedimentos ilegais.
A investigação levou o DN a concluir que o SNS viola a lei do aborto, asserção confirmada pelo conselho de administração da ERS nas audições que o parlamento efectuou, na respectiva Comissão de Saúde, na sequência das notícias publicadas pelo jornal . “Muitas vezes há dificuldades na articulação entre serviços, obrigando as mulheres a andar de lado para lado à procura de um papel e limitando o acesso; noutros locais não há protocolos com outras entidades”, certificaram os responsáveis do regulador, que entre 2017 e 2022 realizou sete processos de inquérito relativos à IVG. “O hospital se não tem consulta tem de encontrar solução no público ou privado, e houve casos em que se verificou que isso não era feito”.
Mas, além da legislação nacional, também a europeia está em causa – demonstram-no duas deliberações recentes do Comité Europeu dos Direitos Sociais sobre dificuldade de acesso ao aborto legal em Itália.
Apreciando duas queixas, apresentadas pela Federação Internacional para o Planeamento Familiar e pela Confederação Geral Italiana do Trabalho (o maior sindicato do país), o Comité dá-lhes provimento e condena a Itália por violação do direito à saúde, por discriminação no direito à saúde e por discriminação no direito ao trabalho.
O principal motivo das condenações é o facto de as autoridades italianas não terem tomado as medidas necessárias “para remover as causas de perigo para a saúde, em particular assegurando que os abortos requeridos de acordo com as regras legais são efectuados em todos os casos, mesmo quando o número de médicos e outros profissionais de saúde objectores de consciência é elevado”, e terem permitido que uma percentagem importante dos hospitais – 35% – recusassem, alegando objecção de consciência dos profissionais, providenciar esse serviço.
“As mulheres que procuram serviços de aborto podem encontrar, na prática, dificuldades substanciais na obtenção desse acesso, apesar de a lei o garantir (…). Em alguns casos, dado o carácter urgente dos procedimentos, as mulheres que desejam interromper a gravidez podem ser forçadas a procurar outros serviços de saúde, em Itália ou no estrangeiro (…), ou a interromper a gravidez sem o apoio e o controlo das autoridades de saúde competentes, (…) ou ser de todo impedidas de aceder aos serviços de aborto a que têm direito legal”, concluiu o Comité, considerando que essas situações “podem envolver riscos consideráveis para a saúde e o bem-estar das mulheres em causa”, violando assim o seu direito à saúde.
Discriminação territorial, social e de género
Quanto à condenação por discriminação no direito à saúde, é assim explicada: “Há dois tipos essenciais de discriminação que são alegados na queixa [da Federação Internacional para o Planeamento Familiar]. Discriminação baseada no estatuto territorial e/ou sócio-económico entre mulheres que têm acesso relativamente desimpedido ao aborto e as que não têm; discriminação baseada no género e/ou o estatuto de saúde entre mulheres que procuram aceder aos procedimentos de interrupção legal da gravidez e homens e mulheres que procuram aceder a outros cuidados de saúde legais que não são disponibilizados de modo igualmente restritivo. O Comité considera que estes diferentes alegados factores de discriminação estão estreitamente relacionados e constituem uma alegação de discriminação em “sobreposição”, “interseccional” ou “múltipla”, através da qual certas categorias de mulheres em Itália são alegadamente sujeitas a um tratamento menos favorável, sob a forma de impedimento de acesso a estabelecimentos onde haja aborto legal, pelo efeito combinado do seu género, estatuto de saúde, localização territorial e estatuto sócio-económico. Em essência, a organização queixosa [a Federação Internacional do Planeamento Familiar] alega que, uma vez que a estas mulheres destas categorias vulneráveis é negado acesso efectivo aos serviços de aborto, em consequência de as autoridades competentes não terem adoptado as medidas necessárias para compensar as deficiências dos serviços causadas pelo facto de os profissionais de saúde exercerem o direito à objecção de consciência, isso constitui uma discriminação.”
Uma asserção que colhe a concordância deste órgão europeu. “Baseando-se na informação fornecida pela organização queixosa e não contraditada pelo governo, o Comité nota que, como resultado da falta de médicos e outro pessoal de saúde não objector num determinado número de estabelecimentos de saúde em Itália, as mulheres são forçadas em alguns casos a andar de um hospital para outro dentro do país ou a viajar para o estrangeiro; em alguns casos, isto é danoso para a saúde das mulheres em causa. Consequentemente, o Comité considera que as mulheres em causa são tratadas de forma diferente, no que respeita aos cuidados de saúde, em relação a outras pessoas na mesma situação, sem justificação.”
O direito à saúde é um dos direitos garantidos pela Carta Social Europeia, tratado de 1991 do Conselho da Europa (CdE), subscrito quer pela Itália quer por Portugal. Se a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, fiscalizada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, garante, nos Estados do CdE, os direitos civis e políticos, a Carta garante os direitos sociais; é considerada a “Constituição Social da Europa“.
O Comité é um órgão eleito pelo Comité de Ministros do CdE para fiscalizar a observância da Carta; as suas deliberações – que decorrem quer da análise dos relatórios bianuais que os países têm de apresentar, quer da apreciação de queixas colectivas, como é o caso das referidas neste artigo – são geralmente confirmadas pelo comité de ministros, de que faz parte o representante de Portugal; foi o caso das duas condenações da Itália.
Tendo como base provisões legais a que os estados signatários da Carta se obrigaram, as decisões e conclusões do Comité devem ser respeitadas. Malgrado não terem aplicação directa nos sistemas legais de cada país, estabelecem jurisprudência e podem constituir a base para melhoramento, na legislação e nas decisões dos tribunais, dos direitos sociais a nível nacional.
Não adianta ser grátis se não está acessível
Nas suas deliberações sobre o acesso ao aborto em Itália, o Comité refuta todos os argumentos apresentados pelo respectivo governo, nomeadamente o de que, sendo o aborto (como se passa em Portugal) integralmente pago pelo Serviço Nacional de Saúde, está disponível para todas as mulheres, independentemente da sua capacidade económica – o que contrariaria a acusação de violação do direito à saúde e de discriminação no acesso a esse direito.
“Se um serviço não está acessível na prática, é irrelevante se é grátis ou tem de ser pago”, deliberou este órgão europeu. “Além do mais, as mulheres que veem negado o acesso ao serviço de aborto na zona onde vivem podem ter de incorrer em custos económicos substanciais se são forçadas a viajar para outras regiões ou para o estrangeiro. E o factor tempo é também crucial: mulheres a quem é negado o acesso ao serviço de aborto na sua região podem ser impossibilitadas de sequer fazer valer o seu direito ao serviço noutro local devido ao prazo apertado em que este é passível de ser exercido, e que pode não permitir encontrar alternativas.”
Enfatizando o facto de a Carta obrigar os Estados a providenciar os cuidados de saúde “onde e quando são necessários”, o Comité adverte que essa obrigação ainda se aplica com mais intensidade a procedimentos que só podem decorrer num prazo curto, como é o caso do aborto.
Note-se que em Itália a interrupção de gravidez por vontade da mulher é desde 1978 permitida até aos 90 dias – ou seja, mais duas semanas que em Portugal.
Já os problemas de acesso parecem muito semelhantes nos dois países: dos 408 hospitais italianos com unidade de obstetrícia apenas 263 efectuavam, no momento das queixas, abortos até às 12 semanas por vontade da mulher. 145, ou seja mais de 35%, não disponibilizavam tal serviço, alegando objecção de consciência de todos os médicos. Esta percentagem pode ser ainda maior: em Abril de 2016, em resposta à segunda condenação pelo Comité, o governo italiano afirmou que 60% das unidades de saúde efectuam abortos, elevando assim a percentagem das objectoras para 40%.
O número de médicos objectores de consciência – ao contrário do que se passa em Portugal, o estado italiano possui uma contabilidade nacional actualizada – chegava aos 70% nos obstetras e ginecologistas e aos 51% nos anestesistas. No pessoal não médico, era de 44%.
Como já referido, o Comité deliberou que, face à diminuição, ao longo dos anos, do número de estabelecimentos de saúde nos quais era possível efectuar uma interrupção, as autoridades italianas nada tinham feito, propiciando uma situação em que muitas mulheres enfrentavam períodos de espera “excessivos e proibitivos”.
Grande parte das “desistências” terão ocorrido a partir de 2013: de acordo com o estudo de 2019 de Miguel Areosa Feio, O Silêncio das Inocentes – Objecção de Consciência e Outras Barreiras na Implementação da Interrupção Voluntária de Gravidez, “em Portugal, entre 2008 e 2013, 46 das 50 instituições de saúde declaravam fazer IVG”. A percentagem de hospitais sem esse serviço terá assim, numa década, quase quadruplicado (de 8% para 30%).
Tempos de espera “excessivos e proibitivos” também em Portugal
Por outro lado, os tempos de espera em Portugal antes da primeira consulta – ou seja, entre o primeiro contacto com o SNS e a “consulta prévia” à IVG – verificados pelo jornal na sua investigação vão muito para além do máximo de cinco dias previsto na lei.
De todos os hospitais para os quais se tentou telefonicamente, entre Janeiro e Abril, marcar essa consulta, só num – o da Horta (Açores) – havia vaga para o dia seguinte. Em todos os outros o prazo para a marcação ultrapassava os cinco dias. Aliás no Hospital de Santa Maria a contabilidade desse prazo foi comunicada ao DN em Fevereiro como sendo, em 2022, de “6,91 dias úteis”, aumentando nos dois primeiros meses de 2023 para “7,52 dias úteis”. Sendo bom lembrar que nem a gravidez faz pausa ao fim de semana nem a lei se compadece com tais contas, sete dias úteis são – no mínimo – nove dias corridos, ou seja praticamente o dobro do intervalo máximo que a lei prevê entre o contacto e a consulta.
Noutro hospital, o Garcia de Orta, em Almada, o circuito imposto às mulheres que querem interromper a gravidez tem de ser iniciado no Centro de Saúde, no qual se prescrevem as análises e a ecografia de datação. Estas têm de ser efectuadas pela mulher numa “rede de entidades convencionadas”, após o que tem de voltar ao Centro de Saúde para, só então, se realizar a consulta prévia e se dar início ao período de reflexão obrigatório de três dias; é também a mulher que tem de se dirigir ao hospital, “com toda a documentação”, para marcar, presencialmente, a IVG.
O resultado deste circuito – que contraria, como várias deliberações da ERS sublinham, o que está disposto na regulamentação e na lei, desde logo por não permitir que as utentes se dirijam directamente ao hospital – são tempos de espera longuíssimos, como o jornal constatou junto de duas mulheres que quiseram interromper a gravidez no Garcia de Orta em 2021 e 2023. Uma delas teve o seu primeiro contacto com o SNS, para efectuar a IVG, a 30 de Janeiro, segunda-feira, no respectivo centro de saúde; a 10 Fevereiro, 11 dias depois, ainda não conseguira sequer efectuar a ecografia obstétrica (tinha duas marcações, uma para 20 de Fevereiro e outra para 27). Desesperada, ligou para o hospital a perguntar se não lhe podiam fazer a ecografia; ter-lhe-ão respondido “não é o protocolo”.
Parece claro que estamos no domínio daquilo a que o Comité qualifica como “tempos de espera excessivos e proibitivos”.
Governos negam que objecção de consciência seja problema
As semelhanças entre o caso italiano e o português não se ficam por aqui. O governo italiano, na sua contestação perante o Comité, usou argumentação parecida com a apresentada pelo executivo português face às conclusões da investigação do DN.
Invocando a descida do número dos abortos – “a redução do número de mulheres que interrompem a gravidez é muito mais elevada que o aumento do número de profissionais de saúde objectores de consciência” -, e o facto de a maioria das interrupções ser efectuada antes das 10 semanas, com uma taxa de complicações baixa (3 a 4%), a Itália concluía que “o nível de objecção de consciência, parcialmente equilibrado pela mobilidade dos profissionais e convénios com serviços especializados de obstetrícia e ginecologia (…), não parece ter um impacto directo no recurso ao aborto e consequentemente na violação dos direitos das mulheres.”
Também o ministro Manuel Pizarro, quando esteve a 5 de Abril na Comissão de Saúde do parlamento para responder aos deputados sobre o acesso ao aborto legal em Portugal, descreveu a aplicação da lei de 2007 que permite a IVG como “um caso de sucesso da sociedade e do SNS”, invocando a diminuição do número das interrupções ao longo destes 16 anos e a idade gestacional mediana – sete semanas, entre as mais baixas da Europa -, para certificar que “não estamos a falhar, estamos a ser bem sucedidos nesta matéria”, e que “a objecção de consciência não tem sido impedimento à organização dos serviços”.
Aliás na mesma série de audições parlamentares o inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, embora assumindo que o número de hospitais portugueses a não fazer IVG é “muito alto” (situou-o em 28,9%, o que não bate certo com as contas do DN, nem com os números apresentados por Pizarro – o ministro informou o parlamento que só 29 hospitais fazem IVG, implicando uma percentagem de estabelecimentos objectores acima dos 33%), e que a inspecção estava a iniciar uma auditoria para descobrir porquê, também manifestou estranheza face às situações denunciadas pelo jornal. “O tema da interrupção voluntária da gravidez não foi objecto de nenhuma denúncia à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde”, certificou. “Há a necessidade de investigar esta narrativa de um problema grave do SNS em torno da interrupção da gravidez, porque ele não foi observado por nós a partir desses indicadores [as denúncias].”
Uma posição contrastante, como já referido, com a da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), a qual reconhece a existência de constrangimentos graves no acesso ao aborto e que, na sequência da publicação da investigação do DN, decidiu “fazer um estudo aprofundado sobre a IVG abarcando todos os estabelecimentos oficiais e reconhecidos, para ter uma ideia real do que se passa e servir de apoio à decisão dos responsáveis políticos.”
O resultado, segundo anunciou a ERS, deverá ser divulgado em maio. Já o relatório da Inspecção, que estava previsto para “meados de Abril”, está atrasado: inquirida pelo DN, informou que o documento será conhecido ainda este mês.
Médicos não objectores também com direitos violados
Não saber (ou não querer saber) o que se passa é também uma violação do direito à saúde das mulheres que pretendem interromper a gravidez, como releva a segunda deliberação do Comité Europeu dos Direitos Sociais sobre Itália.
Nesta deliberação, de 2016, o país voltou a ser condenado por, já após a primeira condenação, não ter tomado medidas de monitorização, regulatórias e de concretização no sentido de assegurar que a recusa de serviço por parte de médicos objectores não põe em risco o direito das mulheres aos cuidados de saúde.
Na queixa em causa, da Confederação Geral Italiana do Trabalho, denunciava-se também o facto de que essa ausência de medidas do Estado italiano, além de prejudicar o acesso ao aborto legal por parte das mulheres, tinha implicações nas condições de trabalho dos profissionais de saúde que não recusam esse serviço. A Confederação acusava a Itália de violar os direitos dos médicos que querem providenciar a interrupção de gravidez por falhar na sua protecção de discriminação e assédio no local de trabalho.
Já a Federação Internacional para o Planeamento Familiar citara, na sua queixa, uma médica do hospital de San Camillo, na região de Lazio (na qual se situa Roma, e que é a segunda mais populosa do país, com quase seis milhões de habitantes), que tinha, no parlamento, certificado ser o seu o único hospital em toda a região a efectuar o aborto medicamentoso. Acrescendo que dos 30 ginecologistas/obstetras da unidade só três não eram objectores: “Nos últimos quatro anos estamos sob ataque contínuo, nós, os que decidimos defender a lei da República. O que significa que, na minha opinião, a objecção de consciência é o aspecto mais grave deste problema [a dificuldade de acesso ao aborto legal]. Devíamos falar disso, porque os médicos que fazem interrupção de gravidez são cada vez menos e têm de, constantemente, justificar o que fazem.”
O Comité deliberou que efectivamente existia, por parte da Itália e em relação aos médicos não objectores, uma violação das normas da Carta que asseguram o direito ao trabalho “livremente empreendido” e o direito a “condições de trabalho justas”.
“No que respeita às alegações de discriminação no trabalho, a discriminação baseada na objecção de consciência ou na não objecção são ambas proibidas pelos artigos 1 e 2 da Carta. (…) A Confederação apresentou provas vastas e variadas de que os médicos não objectores enfrentam vários tipos de desvantagens cumulativas no seu trabalho, tanto directas como indirectas, em termos de quantidade de trabalho, distribuição de tarefas, oportunidades de promoção, etc. (…) O governo não apresentou qualquer prova contradizendo os factos apontados pela Confederação. Não demonstrou que a discriminação não é generalizada. A diferença de tratamento (as desvantagens a que é submetido o pessoal não objector) entre os médicos não objectores e os médicos objectores baseia-se apenas no facto de que os primeiros efectuam serviços médicos de acordo com a lei, pelo que não há nenhum motivo razoável para tal diferença de tratamento. Consequentemente, essa diferença é discriminatória, violando os artigos 1 e 2 da Carta.”
No final de Fevereiro, num artigo no Observador sobre objecção de consciência para a IVG, uma obstetra foi citada como tendo dito que as interrupções de gravidez “deviam ser feitas por profissionais de saúde, pessoas treinadas para isso, não por um médico obstetra, treinado para fazer nascer uma vida. (…) Há contradição entre a realização de um ato médico como um parto e a realização de um aborto”.
Em Março, o DN confrontou a Ordem dos Médicos, a direcção executiva do SNS e o ministério da Saúde com esta afirmação, perguntando como veem estas entidades o facto de uma médica declarar publicamente que os seus pares que efectuam IVG estão a desvirtuar o objectivo da especialidade, e se tal não constitui um desrespeito e uma estigmatização desses obstetras.
Citando o Código Deontológico dos médicos portugueses, o qual estabelece que “o médico objector não pode sofrer qualquer prejuízo pessoal ou profissional pelo exercício do seu direito à objecção de consciência”, o jornal quis saber se o princípio inverso se não aplica, e de que forma ministério e Ordem têm cuidado de certificar que os médicos não objectores não sofrem prejuízos pessoais ou profissionais por não objectarem. Até este momento, nenhum dos inquiridos respondeu.
De resto, o DN não recebeu, por parte do ministério da Saúde, resposta a qualquer das perguntas que lhe endereçou no início de Março sobre o cumprimento da lei do aborto em Portugal. E, apesar de Manuel Pizarro ter reagido, em Fevereiro, à investigação do jornal assegurando que os problemas de acesso se resolveriam “em semanas” – “Estamos a fazer esse levantamento e em alguns dias, em poucas semanas, teremos o levantamento completo, e mais que o levantamento, teremos medidas de correcção, não tenham nenhuma dúvida. O Serviço Nacional de Saúde tem a obrigação de assegurar o acesso das mulheres à IVG no quadro da lei” -, não foram até agora, três meses depois, apresentadas quaisquer medidas.