A seca extrema é um problema especialmente grave em Espanha que está a enfrentar a terceira onda de calor excessivo do ano. A situação obriga a medidas de urgência e há cidades onde a água é cortada entre a meia-noite e as sete da manhã.
Luís Tosta / Wikipedia
Quase nove milhões de pessoas, em Espanha, já estão a sofrer com restrições ao consumo de água devido à seca que se verifica no país.
O número é avançado pelo jornal El País que refere que a Catalunha é a zona mais afectada, com cerca de 6,6 milhões de habitantes a viverem com limitações no uso de água.
Na Andaluzia, na fronteira com o Algarve e o Alentejo, há cerca de dois milhões de afectados, mas o problema chega a outras regiões.
Na Galiza, junto ao norte de Portugal, há municípios que proibiram o uso de água potável para actividades não essenciais, tais como regar jardins, encher piscinas ou lavar carros.
Em Badajoz, na fronteira com o distrito de Portalegre, “o consumo de água foi limitado a 189 litros por pessoa e por dia“, segundo o El País.
“Não é um aviso, o lobo já cá está”
Mas na cidade de El Borge, na região de Málaga que é banhada pelo Mediterrâneo, as medidas são ainda mais restritivas, com cortes de água todas as madrugadas, desde a meia-noite até às sete da manhã, “para dar tempo para que o depósito municipal se recupere” para poder abastecer a população durante o dia, como nota o El País.
“Isto é uma ruína, não é um aviso, o lobo já cá está”, alerta neste jornal o presidente da Câmara local, Raúl Vallejo, notando que o reservatório de água municipal está em mínimos históricos.
O corte no abastecimento de água durante a madrugada também se verifica em outras regiões, nomeadamente na Catalunha, onde “pelo menos 600 municípios” são afectados, segundo o El País.
A Península Ibérica está a ser afectada por ondas de calor intensas, com temperaturas superiores a 44 graus em várias localidades.
Espanha tem vivido especialmente este problema que agrava a crise da água. Mas Portugal também está a ser afectado pelo calor e pela seca extrema, em especial a região sul, nomeadamente o Algarve.
A barragem do Monte da Rocha, em Ourique, fornece água para todo o Baixo Alentejo mas está a 09% e não enche há uma década, embora Manuel Caetano, dono do Restaurante a Rocha, mesmo em frente da barragem, acredite que tem muita água ainda para vários anos.
A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) monitoriza 75 albufeiras e segundo os dados actualizados na semana passada a maior parte delas (40) estavam com uma capacidade entre os 81 e os 100%.
No panorama da retenção de água sobressaem no entanto três, com menos de 20% de água: Bravura (12%), no concelho de Lagos, Campilhas (10%), em Santiago do Cacém, e a pior, Monte da Rocha a 09% da capacidade.
Construída para abastecimento humano e rega, Monte da Rocha nem chegou este ano a disponibilizar água para rega, tal a pouca água que armazenou, destinada apenas a servir os concelhos de Castro Verde, Ourique, Almodôvar, Mértola e Odemira, que num total têm mais de 50 mil habitantes.
Em Fevereiro deste ano foi publicado o concurso para a obra que fará chegar a água de Alqueva a Monte da Rocha, prevista para 2025. Mas Manuel Caetano não acredita.
Reservado, Manuel Caetano escuta mais do que fala. É o dono do Restaurante a Rocha, mesmo em frente da barragem, há 42 anos. E socorrendo-se de uma boa memória afirma: “A última vez que a vi cheia foi em 2013, daí para cá tem sido sempre a descer.
Aquele que já foi um grande reservatório de água trazida pelo rio Sado, para rega e para as pessoas de cinco concelhos, tem agora pequenos lagos no centro, longe de um parque de campismo que já teve desportos náuticos na “ementa”, e longe da aldeia de Chada Velha, que “ficava um ilhéu quando a barragem enchia”, recorda, por seu lado, Adílio Guerreiro, agricultor e trabalhador da Câmara de Ourique.
Parece difícil que aqueles pequenos lagos dispersos forneçam água a cinco concelhos mas Manuel Caetano, anos a olhar a barragem, garante que água não faltará nos próximos anos. E Ilídio Martins, presidente da Associação de Regantes e Beneficiários de Campilhas e Alto Sado (Alto Sado é outro nome para Monte da Rocha), com base em dados técnicos, afiança o mesmo.
“Temos reserva para mais um ano”
A associação é a entidade gestora da barragem e segundo o seu presidente a água não faltará.
“Temos reserva para mais um ano, mas esperamos que aquela reserva que lá está seja acrescida com alguma chuva e que haja precipitação no próximo inverno, porque seria muito mau se isso não acontecesse”, diz à Lusa.
Para já, Monte da Rocha nem parece uma barragem. A erva cresce e seca nas paredes e no leito e onde devia estar água crescem os juncos, as estevas, as urzes, as silvas e pelo menos um pequeno pinheiro já lá está, sinal de que há muito a água não cobre o terreno.
As marcas da água são visíveis nas margens, algumas com datas que Manuel Caetano sabe de cor.
Sentado na esplanada do restaurante, o calor que fica pela tarde e que o espelho de água já não ameniza, Manuel Caetano diz que ainda há quem vá por lá à pesca, mas agora já ninguém leva barcos. “Agora já não dá gosto nenhum”.
Manuel Caetano fala dos tempos que viveu fora dali, por Lisboa, mas recorda sobretudo os últimos 42 anos, quando a barragem era um local de turismo, quando a estrada principal para o Algarve ali passava à porta, o restaurante sempre cheio, os carros e os autocarros estacionados a toda a volta. “Nesse tempo estávamos abertos noite e dia, nem podíamos fechar”.
Na tarde de calor só Adílio Guerreiro ali parou. Também ele andou por Lisboa mas também ele regressou a onde nasceu, a Monte da Rocha, para criar ovelhas e viver muito mais feliz, longe da confusão da cidade.
Só lamenta que a água da barragem tenha ido recuando assim e levado com ela a vida de outrora. “Infelizmente temos este azar da natureza”, diz.
Azar da natureza também para parte dos 450 elementos da Associação de Regantes, que não têm água para regar. “Somos uma das poucas associações do país que não pode regar devido à falta de água”, lamenta Ilídio Martins.
A associação abrange os concelhos de Santiago do Cacém, Odemira e Ourique, mas Ourique praticamente não tem água para regar e parte de Santiago também não.
A associação gere cinco albufeiras, duas das três que estão “no vermelho”, Campilhas além de Monte da Rocha. Campilhas encheu pela última vez em 2013 e a água deste ano é apenas para rega de emergência e para dar de beber aos animais. E soluções para Campilhas, para já, dependem dos céus.
Monte da Rocha é ainda assim diferente. Ilídio Martins afirma que tem apenas 9,5 milhões e metros cúbicos de água, que este ano nem sequer abriu para a agricultura, mas que decorre o concurso público para a execução da obra e que dentro de dois anos a água de Alqueva pode chegar ali. E compor o “azar da natureza”.
A rara chuva que caiu esta semana a sul do Tejo não chegou sequer para trazer esperança a uma região onde a seca severa ou extrema avança cada ano mais cedo.
A paisagem enche-se de contradições, entre barragens à míngua, terrenos duros, canais secos para rega, mas também a proliferação de culturas intensivas que requerem cada vez mais água que não há.
Numa extremidade da albufeira da barragem de Santa Clara, Fernando Peixeiro observa dois botes que repousam sobre terreno deixado a descoberto pelo recuo das águas. Nesta zona onde se encontra instalado o pequeno cais amovível as embarcações já dificilmente conseguem navegar.
O espelho de água daquela que é uma das maiores albufeiras da Europa mingou de tal forma nos últimos anos que tem obrigado ao sucessivo reposicionamento da estrutura.
“No ano passado ainda estava colocado aqui, ao nível deste segundo patamar”, conta o presidente da Junta da Freguesia de Santa Clara-a-Velha, apontando para um socalco mais próximo da estrada que desce até à zona de embarque, agora uns bons 10 a 20 metros mais abaixo dessa marca. “Vamos ter de o deslocar mais para baixo outra vez”, diz, resignado, num dia em que uma comitiva da autarquia está de visita ao local.
“Aqui está a obra mais importante do concelho de Odemira”, sublinha, com um misto de orgulho e nostalgia, ele que há 10 anos lidera os destinos da junta de freguesia que serve de sede à imponente barragem construída ainda nos tempos do Estado Novo e inaugurada em maio de 1969.
No entanto, se a albufeira repousa nesta freguesia interior no extremo sudeste deste concelho alentejano, os maiores beneficiários desta água estão lá no outro extremo, no litoral de Odemira, onde a paisagem tem sido tomada pela proliferação de estufas e culturas intensivas, sobretudo de frutos vermelhos.
“Nem se consegue ver o mar com o reflexo do plástico das estufas”, comenta um grupo de homens à porta de um café em Casa Nova da Cruz, na estrada que liga a São Teotónio, já às portas do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
A proliferação deste tipo de agricultura, uma cultura intensiva que requer grandes quantidades de água, tem sido apontada como uma das principais causas do estado de stress hídrico a que chegou esta zona, e um pouco toda a região sul do país (além dos frutos vermelhos de Odemira, há o cultivo do abacate no Algarve ou o olival e amendoal intensivo que tem crescido junto ao Alqueva), num período de secas aceleradas pelas alterações climáticas.
“Num contexto de falta de chuva, em que a precipitação tem vindo a reduzir significativamente, assistimos a este contra-senso que é a expansão do regadio e de culturas intensivas que implicam grandes recursos de água”, aponta ao DN Sara Correia, da associação Zero.
Com toda a região sul do país em seca severa ou extrema, o Governo decidiu proibir a implementação de novas estufas na zona do Perímetro de Rega do Mira (PRM), no concelho de Odemira, entre outras medidas, para fazer face à situação crítica da barragem de Santa Clara, que há três anos se mantém em volume morto.
Teoricamente, é uma reserva técnica que não deveria ser usada e que assegura condições mínimas para manter a biodiversidade ali existente.
Nesta albufeira, que tem capacidade para armazenar 485 milhões de metros cúbicos de água, o volume morto é atingido quando a reserva recua para 48% da capacidade (cerca de 240 milhões de m3).
Actualmente, de acordo com os últimos dados disponíveis na Agência Portuguesa do Ambiente, conta apenas 35% do seu volume máximo.
“Num contexto em que a precipitação tem vindo a reduzir significativamente, assistimos a este contra-senso que é a expansão do regadio e de culturas intensivas”, aponta Sara Correia, da associação Zero.
Ora, entre os 12 mil hectares de Perímetro de Rega do Mira (PRM), as estufas e outra culturas forçadas ocuparão entre 1500 e 4000 hectares. Os números exactos ninguém sabe bem ao certo, porque este tipo de actividade “não requer licenciamento”, lembra Fátima Teixeira, geóloga que faz parte do movimento de cidadãos Juntos Pelo Sudoeste, que se constituiu em 2019 para denunciar e combater esta “ameaça aos valores naturais da região”, na sequência de uma resolução do Conselho de Ministros que “permitiu triplicar a área de estufas”, acusa.
Fátima encontra-se com a reportagem do DN perto do Cruzamento de Almograve, na Estrada Nacional 323, para nos mostrar aquela que diz ser ” uma das maiores extensões de estufas” desta zona. Pouco depois do cruzamento, no sentido Odemira-Vila Nova de Mil Fontes, um desvio em terra batida, à direita, destapa “um mar de plástico de perder de vista”.
São centenas e centenas de estruturas, lado a lado, ao longo de cerca de um quilómetro, que quase passam despercebidas a quem segue na Estrada Nacional, pois escondem-se geralmente atrás de vegetação.
A meio deste enorme complexo encontram-se os contentores onde ficam instalados muitos dos trabalhadores que se veem à distância, a trabalhar entre as plantas, a esmagadora maioria do leste asiático.
“Há nesta altura em Odemira mais de 80 nacionalidades”, relata Fátima Teixeira, dando conta de uma outra dimensão deste fenómeno das culturas intensivas: a social, que o Juntos Pelo Sudoeste também tem denunciado nos últimos anos.
Exploração de estufas em Odemira Foto Gerardo Santos / Global Imagens
Trabalhadores do leste asiático em estufa de Odemira Foto Gerardo Santos / Global Imagens
Mas voltando à água, ou escassez dela, e ao despacho em que o Governo proibiu a instalação de novas estufas na região. É que esse mesmo despacho da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, trouxe uma surpresa que, aponta a geóloga, “veio favorecer as grandes empresas, nacionais e multinacionais, que exploram as estufas”, ao incluir estas na lista de “culturas permanentes”.
Logo, com prioridade no acesso à água distribuída para rega pelos canais que vêm desde a barragem de Santa Clara – e que neste ano de 2023 se limita a 1.800 metros cúbicos por hectare -, deixando de fora, por exemplo, as pastagens, que ficaram listadas como culturas temporárias, o que vai “impactar muitos produtores locais”.
Um desses produtores é Rui Silva, veterinário que tem 15 vacas e três hectares de terreno no Brejão. “O que a senhora ministra fez foi entregar 75% da água a 25% dos agricultores do Perímetro de Rega do Mira”, resume, indignado com uma decisão que o proíbe de usar água para rega este ano.
“Além de terem despromovido as pastagens para culturas temporárias, vedaram o acesso à água a todos os que não regaram em 2022. Ora, eu decidi não regar no ano passado para poupar água, e esta foi a minha paga”, queixa-se.
Na base dessa proibição governamental terá estado o facto de muitos pequenos produtores terem, no ano passado, vendido a sua quota de rega às grandes multinacionais por valores bem acima do legalmente estabelecido.
“Fizeram-se grandes negócios”, diz. Não foi, no entanto, o seu caso, garante: “Eu não usei a rega porque achei que a forragem que iria produzir com aquela água a que tinha direito não ia dar para mais do que um mês de alimento para os animais e optei antes por culturas de inverno. Precisamente para respeitar o valor da água”.
A questão da distribuição da água para rega no Perímetro de Rega do Mira levou mesmo o Governo a exonerar a direcção da Associação de Beneficiários do Mira (ABM), entidade responsável por essa gestão.
Rui Silva acusa a ministra de “não ter aceitado a distribuição equitativa da água por hectare de terreno, decidida pela maioria dos sócios em assembleia-geral”.
Em vez disso, diz, “decidiu por dotação, hierarquizou culturas. E criou uma realidade fictícia. Transformou o permanente em temporário e o temporário em permanente.”
Para Fátima Teixeira, do Juntos Pelo Sudoeste, não faz sentido “continuar a privilegiar culturas intensivas” quando a barragem de Santa Clara está a 35% da capacidade e com garantia de água para “apenas mais um ano”.
A geóloga compara mesmo estas estas culturas à indústria extractiva: “Usam a água barata, retiram os nutrientes do solo, utilizam plásticos, fertilizantes e pesticidas sintéticos… e quando deixarem de ter água vão para outro lado, deixando no território terrenos sem qualquer vida.
Ainda para mais, não se trata de usar um bem essencial em prol das pessoas da região ou do país. Estamos a exportar 80% da água consumida aqui em forma de framboesa.”
Junto à barragem, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Clara-a-Velha não esconde a apreensão: “Não sabemos se na próxima campanha vamos ter rega”. Mas quer confiar nos prometidos projectos de “requalificação dos canais, que podem suprir perdas que chegam actualmente aos 40%”.
Se a barragem de Santa Clara está a 35% da sua capacidade, outras há na região sul do país ainda em pior situação. Pouco mais acima, em Campilhas, já na bacia hidrográfica do Sado, o armazenamento está a 12%; Bravura, no Barlavento Algarvio, apresenta 13%. Numa e noutra foram mesmo canceladas as campanhas de rega para este ano, deixando vários produtores sem solução.
Na zona de rega de Campilhas, com forte tradição na produção de arroz, “são 1000 a 1500 hectares que ficam sem qualquer produção”, diz Rodrigo Capela, da APARROZ, agrupamento de produtores de arroz do Vale do Sado.
Mas mesmo nas zonas regadas por outras albufeiras da bacia do Sado “os problemas são enormes” com a seca reflectida nos terrenos, sublinha. Por exemplo, “maior dificuldade em controlar os infestantes, o que faz com que a cultura perca produção”.
Além disso, “com a secura dos solos, é necessária muito mais água para produzir a mesma quantidade de arroz de anos normais, o que dispara os custos”.
É o que acontece com José Cecílio, produtor de arroz que tem cerca de 100 hectares na zona de Alcácer do Sal. “Estamos a gastar o dobro da água”, garante. Nestes campos, o rei é o arroz carolino, “o melhor, aquele arroz mais soltinho”. “Diz-se que este é o “arroz de” e o outro, o agulha, é o “arroz com”.
Este é o arroz de marisco, arroz de tomate, arroz que se come sempre fresco. O outro é o arroz com qualquer coisa porque dá para aquecer e comer ao longo de vários dias”, explica. “Só nós e Itália é que produzimos bem este arroz”, diz.
José Cecílio, produtor de arroz em Alcácer do Sal Foto Gerardo Santos / Global Imagens
José Cecílio mostra a terra onde semeia o arroz Foto Gerardo Santos / Global Imagens
Agora, a água é “o factor de produção mais caro nesta actividade”, constata José Cecílio, que aponta para uns 400 a 500 euros por ano em consumo de rega. Ainda assim, o produtor sadino tem investido em “melhores máquinas e técnicas” para reduzir as necessidades de água.
A técnica da “sementeira em linha”, por exemplo, poupa “uma percentagem muito grande de água” – “em vez de 150 dias, o campo já só precisa de ficar alagado cerca de 120”, assegura Rodrigo Capela.
Actualmente, “já se conseguem médias de 9 a 10 mil metros cúbicos de água por ano”, diz Cecílio. Em 1995, quando começou a produzir arroz, “gastava-se uns 16 mil m3 e nem se tinha a preocupação de monitorizar”.
Se os custos de produção aumentaram, os preços finais de venda do arroz também, fruto da disrupção internacional provocada pela guerra na Ucrânia, o que permitiu “ir aguentando”, admite José Cecílio.
Mas o futuro é cada vez mais incerto. No entanto, constata, “não há muita alternativa ao arroz”. “Se não der [o arroz] não sei o que será destas terras”. Ainda assim, pior está a pecuária, avalia. “Aí é que o problema é grave.
Temos quebras de 80% nos fenos das pastagens, as nascentes para abeberamento estão a secar”. José mantém 150 vacas de raça autóctone mertolenga, mas “muitos estão a desfazer-se do efectivo todo”.
Em Ourique, conhecida como a capital do porco alentejano, encontramos Jorge Nobre, um criador desta que é uma das raças autóctones mais ameaçadas.
Nas suas terras, Jorge tenta manter as exigentes condições necessárias à validação da pureza dos animais, na maioria exportados para Espanha, onde na sua maioria vão ser transformados nos muito procurados presuntos Pata Negra.
Um dos requisitos obrigatórios é que o porco se alimente exclusivamente com bolota nos meses finais da engorda, de Outubro a Janeiro – a chamada fase da montanheira, em que o animal pasta no montado (o típico ecossistema alentejano), a alimentar-se do fruto do sobreiro, para poder ser vendido com o selo de qualidade da raça.
Ora, com a seca severa que atinge este território, “o montado não produz, há muitas árvores a morrer”. Logo, ressente-se a produção de bolota. “Este foi dos piores anos”, refere Nuno Faustino, presidente da Associação de Criadores de Porco Alentejano (ACPA), sediada neste concelho do Baixo Alentejo.
Nesta altura, os animais estão na fase da recria, de crescimento, um período de 14 a 16 meses que medeia entre o desmame e a montanheira final e no qual a alimentação é garantida no campo, “entre cereais e ervas”.
Mas, com os terrenos secos, “também falta erva e tem de se gastar mais em ração, o que aumenta muito os custos”, conta Jorge Nobre. “Só nos últimos dois anos aumentaram cerca de 70% os custos com as rações”, frisa Nuno Faustino.
Esta é uma zona de sequeiro que não é abrangida por qualquer perímetro de rega público. “Toda a água que existe nesta região vem da chuva. E aqui simplesmente não chove”, lamenta-se o presidente da ACPA, num dia em que, ironicamente, é presenteado com uma rara chuva caída do céu.
Ainda assim, uma precipitação praticamente “insignificante” face à dimensão do problema. “É preciso trazer alguma água a este território. Isto é sequeiro, mas não sobrevive sem água”, desabafa, em jeito de súplica.
“Se os criadores como o Jorge amanhã tiverem de ir embora, o que vamos ter nesta região? Sem ninguém a vigiar e cuidar do território, ficam os matos e os fogos descontrolados. Desertificação”.
Como fazê-lo, é “um desafio para os técnicos”, admite o suinicultor, na expectativa para ver avançar alguma das soluções que têm sido aventadas, sejam novas barragens, centrais dessalinizadoras ou “a tal autoestrada norte-sul” para a água, que permita fazer transvases de bacias hidrográficas do norte para o sul do país.
Mesmo que isso implique aumentos significativos no custo da água? “Eu agora nem posso queixar-me do preço da água, porque simplesmente não a tenho”, contrapõe.
Seca tem afectado a produção de bolota Foto Gerardo Santos / Global Imagens
Jorge Nobre, criador de porco alentejano Foto Gerardo Santos / Global Imagens
Porco alentejano é das raças autóctones mais ameaçadas pela seca Foto Gerardo Santos / Global Imagens
No cenário actual, “é a sobrevivência do porco alentejano e da pecuária extensiva que está em risco”, diz Nuno Faustino, realçando que houve já uma “redução grande do efectivo de porco alentejano, na ordem dos 30 a 50%”, nos últimos tempos, devido “aos efeitos da seca”.
“Se os criadores como o Jorge amanhã tiverem de fechar portas e ir embora, vamos ter o quê nesta região? Sem ninguém a vigiar e cuidar do território, ficam os matos e os fogos descontrolados. Desertificação”, avisa.
Satisfazer a procura ou reduzir o consumo?
Neste dilema entre a sede de uns e a vontade de beber de outros, o facto é que Portugal surge apontado como um caldeirão de alterações climáticas em todos os modelos de projecção do clima no futuro.
Na vizinhança da bacia do Mediterrâneo, a tendência é inevitavelmente para aumento de temperaturas e diminuição da precipitação, cenário propício para um território mais seco e menos produtivo, sobretudo a sul.
Para Sara Correia, que lidera o projecto MedWater, da Zero, precisamente dedicado às secas e escassez hídrica no Alentejo e Algarve, “temos que repensar que tipo de investimentos queremos fazer nessas regiões”, sendo certo, diz, que perante a escassez de água “não faz sentido adoptar políticas públicas centradas em satisfazer a sua procura crescente, ao invés de promover a redução do consumo e a eficiência hídrica”.
Em causa estão, por exemplo, os investimentos na captação de água no rio Guadiana (Pomarão) e na instalação de uma central de dessalinização, ambos financiados no Plano de Recuperação e Resiliência, como soluções para os problemas hídricos do Algarve.
Aqui, no Algarve, as albufeiras estão praticamente todas abaixo de metade e a redução das águas subterrâneas está a fazer aumentar a salinização dos aquíferos.
Mas o diagnóstico de uma seca extrema parece não enquadrar bem com a paisagem litoral mais turística do país, onde pululam grandes empreendimentos hoteleiros e vastas áreas verdes dedicadas ao golfe – há 40 campos na região.
“No Algarve, sobretudo ao longo da costa, como consequência deste modelo económico, temos observado de facto maiores exigências de recursos hídricos devido ao aumento da actividade agrícola, do turismo e do golfe”, constata a Plataforma Água Sustentável (PAS), criada em 2020 e que agrega 14 associações.
Também a PAS alerta que a solução para a crise hídrica “não será encontrada com grandes obras de construção civil que aumentam a pegada ecológica agravando, consequentemente, o consumo de água, a desflorestação e a poluição do mar, o que, por sua vez, desequilibra ainda mais o clima”.
Por isso, discorda “da construção da central de dessalinização, da Captação de Água no Guadiana, ou da construção de barragens, porque, além dos impactes ambientais conhecidos, o aumento da temperatura/evaporação e diminuição da pluviosidade tornará o volume de água a armazenar cada vez menor”. A diversificação das origens de água deverá ser antes feita “através do recurso às águas fluviais e residuais tratadas”, sugere.
Essas são práticas que já têm sido implementadas em alguns dos campos de golfe na região – o dos Salgados utiliza exclusivamente água para rega a partir da ETAR da Lagoa dos Salgados; o de São Lourenço, na Quinta do Lago, consome, parcialmente, água reciclada proveniente de uma ETAR local. Habituado a ser apontado como um dos grandes consumidores de água, o golfe rejeita “o preconceito, tantas vezes ideológico”.
“Se quisermos tomar como exemplo os 40 campos de golfe do Algarve, a uma média de 60 hectares por campo, nos quais apenas 60 a 70% da sua área é regada, estamos a falar de uma área regada total que não ultrapassa os 2.000 hectares.
Estes campos consomem anualmente entre 13 a 15 milhões de m3 de água para rega, dos quais uma parte ainda significativa é água da chuva ou de drenagem acumulada ou recuperada nos lagos construídos para o efeito nos campos”, reage ao DN a Confederação Nacional da Indústria do Golfe (CNIG), sublinhando que a totalidade dos campos de golfe do Algarve são responsáveis apenas pelo consumo de 5,8% da água consumida anualmente na região.
Se ainda se pode fazer muito na redução de perdas de distribuição no sector urbano e turístico, que estão estimadas em valores a rondar os 30%, o principal consumo de água vem mesmo, tanto no Algarve (com 60% dos consumos) como a nível nacional (aumenta para 75%), da agricultura, nota Sara Correia, da Zero.
Por isso, “é necessário repensar o tipo de agricultura que se quer, sobretudo para essas regiões do sul do país”, diz. “A água não vai dar para tudo e uma coisa sabemos: o consumo humano tem de ser garantido. O que tem de ficar para trás são as explorações agrícolas pouco sustentáveis”, acrescenta.
Em Odemira, Fátima Teixeira interroga-se: “Estas empresas [de frutos vermelhos] vangloriam-se de exportar mais de 200 milhões de euros por ano, mas esgotam os recursos dos solos.
E o que ficará depois disso? Perdemos Parque Natural, perdemos biodiversidade, ficamos sem água, com solos estéreis para as gerações futuras. Isso compensa?”.